Cada manhã, antes mesmo de abrir os olhos, reconheço minha cama, meu quarto. Mas se durmo à tarde, em meu estúdio, experimento às vezes, ao acordar, um espanto pueril: por que sou eu? O que me surpreende - como à criança quando toma consciência de sua própria identidade - é o fato de encontrar-me aqui, agora, dentro desta vida e não de outra: por que acaso? Se a considero do exterior, em primeiro lugar parece inacreditável que eu tenha nascido. A penetração de um determinado óvulo por um determinado espermtozóide, implicando o encontro e o nascimento de meus pais e de todos os seus ancestrais, não tinha uma chance entre milhares de ocorrer. Foi um acaso, conforme o estado atual da ciência, totalmente imprevisível, que me fez nascer mulher. Depois, para cada instante de meu passado mil futuros diferentes me parecem concebíveis: adoecer e interromper meus estudos; não conhecer Sartre; qualquer outra coisa.
Jogada no mundo, fui submetida a suas leis e a seus acidentes, dependendo de vontades alheias, de circunstâncias, da história: estou, portanto, justificada por sentir minha contingência; o que me atordoa é que ao mesmo tempo não o estou. O problema não existiria se eu não tivesse nascido: tenho que partir do fato que existo. E, certamente, o futuro daquela que fui podia fazer-me diferente do que sou. Mas então seria essa outra quem se interrogaria sobre si mesma. Para aquela que diz: eis-me, não há conciliação possível. No entanto, essa necessária coincidência do sujeito com sua história não é suficiente para dissipar minha perplexidade. Minha vida: familiar e distante, ela me define e eu sou exterior a ela. O que é exatamente esse objeto bizarro?
(In: Balanço final. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1972, p. 9)