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domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobre os ossos dos mortos - Olga Tokarczuk


"Cresci numa bela época, que infelizmente já passou. Havia nela uma enorme disposição para mudanças e a capacidade de criar ideias revolucionárias. Hoje em dia ninguém tem a coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo - envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares - os sentidos - sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa "a queda das pétalas". As pétalas do mundo caíram" - (p. 60).
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 "E talvez o próprio Blake, se estivesse vivo, diria, ao ver tudo isso, que ainda havia lugares no universo não tomados pela decadência, o mundo não virou do avesso e o Éden ainda existe. Ali o ser humano não age de acordo com as regras da razão, estúpidas e rígidas, mas segundo o coração e a intuição. As pessoas não matam o tempo se pavoneando com aquilo que sabem, mas criam coisas extraordinárias fazendo uso de sua imaginação. Assim, o Estado não exerce o papel de um grilhão, não constitui o fastio do cotidiano, mas ajuda as pessoas a realizarem os seus sonhos e suas esperanças. E o ser humano não é apenas uma engrenagem no sistema desempenhando um papel predeterminado, mas um ser livre. Era isso que passava pela minha mente, fazendo do meu tempo em repouso quase um prazer.
Às vezes eu acho que apenas os doentes são de fato sãos" - (p. 83).
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"Os animais mostram a verdade sobre um país (...). A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa" - (p. 99).


"Quando ouvi o relato de Boas Novas sobre sua vida, comecei a formular perguntas que começam com "Por que você não...", seguidas pela descrição do que, em nossa opinião, se deveria fazer naquele tipo de situação. Meus lábios estavam a ponto de articular um desses insolentes "por que você não", mas mordi a língua.
Quem faz isso são as revistas, e, por um momento, eu queria ser como elas: apontam para aquilo que não foi feito, para as falhas e o que foi negligenciado; por fim, nos colocam diante de nós mesmos nos enchendo de autodesprezo.
Então eu não disse nada. As histórias de vida de alguém não são assunto para ser discutido. Deve-se ouvi-las e retribuir na mesma moeda. Por isso eu também falei sobre a minha vida para Boas Novas e a convidei para ir à minha casa e conhecer as meninas" - (p. 123).
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"Aliás, acho que a psique humana se constituiu para nos incapacitar de enxergar a verdade. Para nos impedir de ver o mecanismo sem obstáculos. A psique é nosso mecanismo de defesa - é responsável por não nos permitir entender aquilo que nos rodeia. Ocupa-se principalmente de filtrar as informações, embora as possibilidades do cérebro sejam enormes. Seria impossível suportar tamanho conhecimento, visto que todas as partículas do mundo, por menores que sejam, estão compostas de sofrimento" - (p.208).
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"Quem é que dividiu o mundo em útil e inútil, e quem lhe deu o direito de fazê-lo? (...). Quem foi o dono da mente que se atreveu a tanta arrogância para julgar quem é melhor ou pior? Uma árvore enorme e cheia de buracos sobreviveu por vários séculos sem ser derrubada, porque não se podia fazer nada com ela. Esse exemplo deveria animar pessoas como nós. Todos conhecem o benefício do útil, mas ninguém conhece o proveito do inútil" - (p. 230).

(São Paulo: Todavia, 2019).



Mais sobre o livro:


Canção de Ninar - Leila Slimani


"A solidão agia como uma droga da qual ela não sabia se queria abdicar. Louise vagava pela rua, desconcertada, os olhos tão abertos que doíam. Na solidão, ela começou a olhar para as pessoas. A vê-las de verdade. A existência dos outros se tornou palpável, vibrante, mais real que nunca. Observava nos menores detalhes os gestos dos casais sentados nos terraços. Os olhares oblíquos dos velhotes abandonados. A afetação dos estudantes que fingiam estudar, sentados no encosto de um banco. Nas praças, na saída de uma estação do metrô, reconhecia o estranho desfile dos que estão perdendo a paciência. Esperava com eles a chegada de alguém. A cada dia ela reencontrava os companheiros de loucura, falantes solitários, malucos, mendigos.
A cidade, nessa época, estava cheia de loucos".
(São Paulo: Planeta: 2018, p. 86).