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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só garotos - Patti Smith

 
 
"Só garotos" é um livro em que Patti Smith conta do seu encontro com Robert Mapplethorpe, encontro que rendeu uma jornada para além das vivências sexuais, das infinitas possibilidades e finitas impossibilidades do amor.
Quando Patti e Robert se esbarraram eles eram apenas "garotos" e o germe que faria deles donos de um estilo único estava a espreita de florescer. Em comum havia a paixão pela pintura, poesia, música e tudo que dissesse respeito as agonias ínverbalizáveis do ser humano.
Eles compartilharam vivências peculiares e cuidaram um do outro. Mantiveram-se juntos mesmo quando a vida os lançou em caminhos diferentes. O que tiveram não  foi uma dita "parte importante" da vida de cada um...não, foi mais. Foi algo fermentador da maturação de cada um enquanto sujeito, foi o que os fortaleceu para se empossarem plenamente da existência. Não foi "parte da vida" pois foi a própria vida. Foi "para além" da vida. Foi o que deu a certeza para o que era uma suspeita de ambos: a arte como única saída viável para a sufocante absurdidade das conveniências mundanas.
Patti desde cedo não se rendeu. Ela foi a garotinha que não viu sentido em repetir as ladainhas que a sua mãe lhe impingia todas as noites antes de dormir; para ela rezar de acordo com sentenças ditadas era tão pecaminoso quanto crer em um Deus com o qual não pudesse ser sincera. Patti ousou criar seu próprio modo de conversar com Deus, e aí vemos o primeiro vestígio da artista.
Mais tarde, quando uma gravidez inesperada a assaltou, Patti não quis sequestrar a liberdade de um jovem parceiro em troca de reconhecimento social, tal como os "bons costumes" previam. Ela deu vida à filha e a deixou a salvo sem sacrificar a felicidade de outrem.
Patti seguiu adiante. Saiu de casa, morou na rua, roubou pincéis.
 Escapou de um curso universitário medíocre e usou, sem se permitir ser usada, de empregos que garantiam parcamente suas necessidades básicas enquanto ela corria atrás do que queria.
Robert também não se rendeu. Ele, que tinha do "bom e do melhor" (menos amor) com os pais, que lhe pagavam os estudos e esperam que ele se tornasse um profissional gráfico de sucesso, pai de família e dito cidadão respeitável, também saiu de casa. Passou fome, teve febre, e sobreviveu de migalhas até encontrar na fotografia o seu modo de estar dignamente no mundo.
No meio do caminho de Patti e Robert houve pedras, diversas pedras...daquelas grandes e brutas. Mas no meio do caminho de Patti e Robert houve Patti....e houve Robert, para lapidar uma vida possível.
"Só garotos" é a inesquecível narrativa de Patti sobre este caminho.
 
 
Trecho do livro:
 
"A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.
 
Querido Robert,
Sempre que estou na cama acordada me pergunto se você também está acordado na cama. Você está com alguma dor ou se sentindo sozinho? Você me tirou do período mais negro da minha juventude, dividindo comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver com você e nunca faço um verso ou desenho uma curva que não venha do conhecimento que consegui durante o nosso valioso tempo juntos. O seu trabalho, oriundo de uma fonte fluida, remonta à canção nua da sua juventude. E você fala em ficar de mãos dadas com Deus. Lembre-se, aconteça o que acontecer, você sempre esteve segurando essa mão, aperte-a com força Robert, não solte.
Na outra tarde, quando você dormiu no meu ombro, eu também cochilei. Mas antes pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você ainda é o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti".
 
*
 
(Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 252).