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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A vida mentirosa dos adultos - Elena Ferrante

 

"Eu detestava aquele Pai que havia criado seres tão frágeis, expostos continuamente à dor, facilmente perecíveis. Detestava que ele observasse como nós, fantoches, lidávamos com a fome, a sede, as doenças, os terrores, a crueldade, a soberba e até mesmo com os bons sentimentos que, sempre sob o risco da má-fé, ocultavam a traição. Detestava que ele tivesse tido um filho parido por uma mãe virgem e o expusesse ao pior, como acontecia com as mais infelizes das suas criaturas. Detestava que aquele filho, embora tivesse o poder de fazer milagres, usasse aquele poder para jogos poucos resolutivos, nada que realmente melhorasse a condição humana. Detestava que aquele filho tendesse a brigar com a mãe e não tivesse coragem de sentir raiva do pai. Detestava que o Senhor Deus deixasse aquele filho morrer entre tormentos atrozes e que, ao seu pedido de ajuda, não se dignasse a responder. Sim, era uma história que me deprimia. E a ressureição final? Um corpo horrivelmente massacrado que voltava à vida? Eu tinha horror dos ressuscitados, não conseguia mais dormir à noite. Por que vivenciar a experiência da morte se depois voltamos à vida por toda a eternidade? E que sentido tinha a vida eterna em meio a uma multidão de mortos ressuscitados? Era mesmo uma recompensa ou uma condição de intolerável horror? Não, não, o pai que residia no céu era exatamente como o pai desafeiçoado dos versículos de Mateus e de Lucas, aquele que dá pedras, serpentes e escorpiões ao filho que tem fome e pede pão. Se eu conversasse a respeito com meu pai, corria o risco de acabar dizendo: esse Pai, papai, é pior do que você. Por isso, eu justificava todas as criaturas, até as piores. A condição delas era dura e, quando ainda assim conseguiam exprimir, de dentro do seu lodo, grandes sentimentos verdadeiros, eu ficava do lado delas" - (pp. 261-262).

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(In. A vida mentirosa dos adultos. Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020).

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Mais sobre o livro:

https://istoe.com.br/a-vida-mentirosa-dos-adultos-reafirma-paixao-e-coragem-na-voz-de-elena-ferrante/

https://blog.intrinsecos.com.br/tag/a-vida-mentirosa-dos-adultos/

https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/como-e-feia-essa-menina

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dias de abandono - Elena Ferrante (trechos)

"Mostrar-se resistente, sê-lo. Eu tinha que dar um bom exemplo do que eu era. Somente impondo-me esta obrigação poderia me salvar".
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"...estava lá no meio da densidade das árvores sem nome, a mim me parecia mais uma aquarela do que a realidade. Estavam atrás de mim e aos meus lados. Álamos? Cedros? Acácias? Rubiáceas? Nomes ao acaso, o que eu sabia? Ignorava tudo, até o nome das árvores debaixo da minha casa. Se tivesse de escrever, não teria conseguido. Os troncos apareciam-me todos sob uma lupa poderosa. Não havia dist~^anciã entre mim e eles e, ao contrário, a regra reza que para contar é necessário, antes de qualquer coisa, tomar a distância, um metro, um calendário, calcular quanto tempo passou, quando espaço se colocou entre nós e os fatos, as emoções a serem narradas. Eu, ao contrário, sentia que tudo estava sempre em mim, respiração contra respiração. Mesmo naquela ocasião me parecia, por um momento, não estar vestida com minha camisola mas com um longo manto no qual estava pintada a vegetação do parque Valentino, as avenidas, a ponte Principessa Isabella, o rio, o prédio onde morava, até o cão pastor. Por isso estava tão pesada e inchada. Levantei-me choramingando de vergonha e de dor de barriga, a bexiga cheia, eu não aguentava mais".
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"Eu não dava tapas, nunca o havia feito, no máximo eu ameaçava. Mas talvez para as crianças não houvesse diferença alguma entre a ameaça e o que realmente se faz. Eu, pelo menos - agora me lembrava -, quando pequena era assim, talvez até já depois de grande. O que poderia me acontecer caso eu violasse uma proibição de minha mãe acontecia de qualquer jeito, independentemente da violação. As palavras realizavam de imediato o futuro e queimava-me ainda hoje a ferida da punição quando eu nem mesmo me lembrava da culpa do que eu poderia ou gostaria de ter feito. Lembrei-me de uma frase recorrente da minha mãe: "Pare ou te corto as mãos", dizia quando tocava os seus materiais de costureira. E aquelas suas palavras para mim eram como tesouras internas, longas e com um metal bem afiado, que saíam pela boca, mandíbulas de lâmina que se fechavam sobre os pulsos deixando tocos costurados com agulha e linha do carretel.
"Eu nunca te dei tapa nenhum", disse.
"Não é verdade".
"No máximo eu disse que daria. Tem uma boa diferença".
Não há diferença alguma, pensei, e me assustei ouvindo esse pensamento na minha mente".
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"...eu não sabia encontrar uma resposta para a interrogação, qualquer resposta possível parecia-me absurda. Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do por quê".
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"Preciso, para escrever bem, para ir até o âmago de cada pergunta, de um lugar menor, mais seguro. Apagar o supérfluo. Restringir o campo. Escrever a verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo".
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"O que aconteceu com você naquela noite?"
"Tive uma reação de excesso que rompeu a superfície das coisas".
"E depois?"
"Caí".
"E onde você parou?"
"Em lugar nenhum. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada".

domingo, 15 de janeiro de 2017

A filha perdida - Elena Ferrante

 
" Eu observava minhas filhas quando elas estavam distraídas e sentia por elas uma complicada alternância entre simpatia e antipatia. Bianca é antipática, eu pensava às vezes, e sofria por isso. Depois eu descobria que ela era muito querida, tinha amigas e amigos,  sentia que só quem a achava antipática era eu, a mãe dela, e aquilo me dava remorso. Eu não gostava de sua risadinha de escárnio. Não gostava de sua ânsia de querer sempre mais do que os outros: à mesa, por exemplo, ela pegava mais comida do que todos, não para comer, mas para ter certeza de que não perderia nada, deque não seria negligenciada ou passada para trás. Eu não gostava da sua mudez teimosa quando ela percebia que havia errado, mas não conseguia admitir o erro.
Você também é assim, dizia meu marido. Talvez fosse verdade, e o que me parecia antipático em Bianca se tratasse somente do reflexo da antipatia que eu sentia por mim mesma. Ou não, não era tão simples, tudo era mais intrincado. Mesmo quando reconhecia nas duas garotas aquilo que eu considerava minhas qualidades, sentia que algo não funcionava. Tinha a impressão de que elas não sabiam usá-las bem, de que a melhor parte de mim mesma, no corpo delas, resultava em um enxerto equivocado, uma paródia, e ficava com raiva, sentia vergonha.
Na verdade, pensando bem, o que eu mais amava nas minhas filhas era o que me parecia estranho. Delas - eu sentia - agradavam-me mais os traços que haviam puxado ao pai, mesmo após o fim tempestuoso do casamento. Ou os traços que tinham vindo de seus antepassados, dos quais eu nada sabia. Ou os traços que pareciam, na combinação dos organismos, uma invenção caprichosa do acaso. Em outras palavras, quanto mais eu me sentia próxima delas, mais parecia não carregar a responsabilidade por seus corpos.
Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sofrimentos delas. Acusavam-me em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos, justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte. Tons de voz quase imperceptíveis. Um gesto pequeno, um modo de bater as pálpebras, um sorriso-careta. O passo, o ombro que pende um pouquinho à esquerda, um balançar gracioso dos braços. A impalpável mistura de movimentos mínimos que, combinados de um certo modo, tornam Bianca sedutora e Marta, não, ou vice-versa, e então causam soberba, dor. Ou ódio, porque a potência da mãe parece sempre se dar de maneira injusta, desde o nicho vivo do ventre".
 
(In. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 59-60).


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ferrante com Freud - A amiga genial

 
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015,  p. 61).
 
 
Unheimilich = “relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338). 
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Unheimlich é o que aparece quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
 (Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).