"Até o Natal de 1938, quando Bispo extrapolou o senso comum, suas epifanias passavam despercebidas. Ele levava uma vida prosaica e só se excedia nas manifestações de humildade. Um dia, ao ver o Dr. Humberto na sala, cigarro aceso, sem cinzeiro por perto, juntou as duas mãos grossas em forma de concha e não hesitou:
- Pode jogar as cinzas.
- Não Bispo, pega o cinzeiro ali para mim, por favor - retrucou Humberto, desconcertado.
- Pode jogar, minha mão é o seu cinzeiro - insistiu Bispo, de vigília, até o fim do cigarro" (p.49).
"[Bispo] defendia a família [que o abrigava] com zelo de patriarca. Sentava ao pé da cama de Belinha, olho esbugalhado, sem fresta ao cansaço. Ali permanecia até alta madrugada, se necessário, corpo em vigília.
Belinha estava grávida, ele a protegia. Quando ela deu à luz a menina Margareth, certa noite uma passagem causou espanto. A mãe entrou no quarto do bebê e encontrou Bispo ao lado do berço, assustado, às voltas com assombrações.
- O que foi, Bispo?
- Acabei de ver o seu pai aqui, ele veio ver a neta.
Belinha sorriu, afinal, seu pai estava morto. De qualquer forma, perguntou pelo fantasma. Bispo descreveu-o em detalhes, feições, medidas, sem nunca tê-lo visto, sequer em fotografia. Ao final, elogiou o terno azul-marinho que ele vestia.
A mulher de Humberto arrepiou-se. Seu pai havia sido enterrado com esta roupa e, em vida, era o seu traje predileto. Na dúvida, Belinha remexeu o armário do quarto à procura de fotos antigas, já que não tinha o hábito de expor recordações em porta-retratos (...). Ao encontrar um antigo retrato do pai, cercado por colegas da juventude, perguntou:
- Qual deles esteve aqui?
- Este - respondeu Bispo, certeiro.
Sem hesitar, pôs o dedo no rosto do pai de Belinha, o da imagem " (p.55).
(In: Arthur Bispo do Rosário - O senhor do labirinto. Luciana Hidalgo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 [1996]).