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terça-feira, 28 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (IV)

"Que essa massa humana durante dezoito anos o havia oprimido como uma atmosfera prenhe de tempestade, só se tornava claro para Grenoille agora que começava a escapar disso. Até então, acreditava que era do mundo em geral que ele precisava escapar. Não era, porém, do mundo, mas das pessoas. Parecia que num mundo vazio de gente até dava para viver (p. 104).
"E ele fugia avante, reagindo cada vez mais sensivelmente ao cheiro do homem, que se tornava cada vez mais raro. Assim, o nariz conduziu-o para regiões cada vez mais remotas do país. afastando-o cada vez mais dos seres humanos e empurrando-o com ímpeto cada vez maior na direção do pólo magnético da maior solidão possível (p. 106).
"Sabe-se de homens que procuram a solidão: penitentes, fracassados, santos ou profetas. Retiram-se preferencialmente para desertos, onde vivem de gafanhotos e mel silvestre. Algumns vivem também em cavernas, claustros ou em ilhas remotas, ou se enfiam - algo mais espetacular - em gaiolas penduradas em varas, no ar. Fazem isso para estar mais perto de Deus. Mortificam-se com a solidão e através dela se penitenciam. Agem na crença de levarem uma vida que agrade a Deus. Ou ficam esperando durante meses ou até anos para que, na solidão, lhes advenha uma mensagem divina que, depois, querem divulgar o quanto antes entre os homens.
Nada disso adequava-se a Grenoille. Não tinha em mente nada parecido com "Deus". Não se penitenciava nem esperava qualquer inspiração do alto. Só para a sua própria e única diversão é que se retraía, só para estar mais perto de si mesmo. Banhava-se em sua própria existência, não desviado por nada mais, e achava isso maravilhoso. Jazia na gruta de rochedos como o seu próprio cadáver, como o cadáver de si mesmo. mal respirando, o coração mal batendo - e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum farrista jamais viveu no mundo" (p. 109-110).
"Quase não saía. Da vida corporativa, dos encontros regulares dos companheiros e dos desfiles dos artesãos, ele participava com frequencia suficiente para que nem ausência nem presença chamassem atenção. Não tinha amigos nem conhecidos, mas tomava muito cuidado no sentido de não ser considerado arrogante nem marginal. Deixava que os outros oficiais considerassem a sua companhia aborrecida e pouco interessante. Era mestre na arte de gerar monotonia e de parecer desajeitado - mas não exagerando a ponto de ficarem gozando à sua custa ou de virem a usá-lo como vítima das pesadas brincadeiras da corporação. Deixavam-no em paz, e ele não queria outra coisa" - (p.158).
"A fragrância das pessoas em si era, para ele, indiferente. Tratava-se de uma fragrância que ele podia imitar suficientemente bem com substitutivos. O que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram as suas vítimas" (p.164).
"O que ele sempre havia desejado, ou seja, que as outras pessoas o amassem, tornava-se, no instante do seu êxito, insuportável, pois ele mesmo não as amava, mas as opdiavas. E de repente soube que jamais encontraria satisfação no amor, mas tão somente no ódio, no odiar e no ser odiado.
Mas o ódio que sentia pelas pessoas permaneceu sem eco. Quanto mais ele as odiava nesse momento, tanto mais elas o adoravam, pois nada percebiam dele senão a sua aura, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado, e este era, de fato, divinamente bom.
Agora ele teria preferido eliminá-las da face da terra, essas pessoas estúpidas, fedorentas, erotizadas, exatamente como outrora, no país da sua alma negra como carvão, eliminara os cheiros estranhos. E desejava que notassem o quanto ele as odiava e que por isso, por causa desse único sentimento real, elas odiassem de volta e, por sua vez, liquidassem com ele, como afinal, originalmente prtendiam. Uma vez na vida ele gostaria de se externar (...). Uma vez, uma única vez, queria ser considerado em sua verdadeira existência e receber de outra pessoa uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro, o ódio" (p.205-6).
"Tinha poder para tanto. Um poder que era mais forte que o poder do dinheiro, do terror ou da morte: o insuperável poder de fazer as pessoas amarem. Só uma coisa esse poder não podia: não podia fazer com que ele mesmo cheirasse para si próprio. E ainda que chegase a aparecer diante do mundo, através do perfume, como um Deus - se ele não podia cheirar a si mesmo e, por isso, jamais saberia quem ele era, - nada disso importava, não importava o mundo, ele própriom o seu perfume" - (p.216).
 
(In: Perfume - História de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985).

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (III)

Para o pequeno Grenoille, o estabelecimento de Madame Gailard foi uma benção. Provavelmente não teria sobrevivido em nenhum outro lugar. Mas aí, junto a essa mulher tão pobre por dentro, deu-se bem. Quem, como ele, tinha sobrevivido ao proóprio nascimento no lixo não se deixava expulsar tão facilmente do mundo. Era capaz de comer sopa aguada dias e dias, sobrevivia com o leite mais diluído, suportava os legumes e as carnes mais podres. Ao longo da infância, sobreviveu ao sarampo, disenteria, varicela, cólera, a uma queda de seis metros num poço ea queimadura no peito com água fervente. É verdade que trazia disso cicatrizes, arranhões, feridas e um pé meio aleijado que o fazia capengar, mas sobreviveu. Era duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada ano passado. Precisava de um mínimo de alimentação e vestimenta para o corpo. Para a alma, não precisava de nada. Calor humano, dedicação, delicadeza, amor - (...) eram completamente dispensáveis para Grenoille. Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver. O grito depois do seu nascimento, o grito sobre a mesa de limpar peixe, o grito com o que ele se tinha feito notar e e levado a mãe ao cadafalso, não fora um grito instintivo de compaixão e amor. Fora bem pensado, quase se poderia dizer um grito maduramente pensado e pesado, com que o recém-nascido se decidira contra o amor e, mesmo assim, a favor da vida. Nas circunstâncias, isto era impossível sem aquilo e, se a criança tivesse exigido ambos, então teria, sem dúvida, fenecido miseravelmente. Também teria podido, no entanto, escolher naquela ocasião a segunda possibilidade que lhe estava aberta, calando e legando o caminho do nascimento para a morte sem desvio pela vida, e assim teria poupado a si e ao mundo uma porção de desgraças. Mas, para se omitir tão humildemente, teria sido necessário um mínimo de gentileza inata, e isto Grenoille não possuía. Foi um monstro desde o início. Ele se decidiu em favor da vida por pura teimosia e maldade.
Obviamente, não se decidiu, é claro, como se decide um adulto, usando razão e experiência mais ou menos grandes, para escolher entre as diferentes opções. Decidiu-se de um modo vegetativo, assim como um feijão jogado fora decide se deve germinar ou deixar para lá.
Ou como um carrapato em cima de uma árvore, ao qual a vida não oferece outra coisa senão uma hibernação permanente (...).
Esse carrapato era Grenoille. Vivia encapsulado em si mesmo, à espera de melhores tempos. Ao mundo não dava senão as suas fezes; nenhum sorriso, nenhum grito, nenhum brilho nos olhos, nem sequer um cheiro próprio. Qualquer outra mulher teria repelido esse menino monstruoso. Mas não Madame Gaillard. Ela não sentia que ele não tinha chiero nenhum, e ela não esperava qualquer manifestação afetiva dele, pois a sua própria afetividade estava bem lacrada".
(In: Perfume - a história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.24-6).

domingo, 12 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (II)

"...Não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou fenecer, que não fosse acompanhada de fedor.
Naturalmente, em Paris o fedor era maior, pois Paris era a maior cidade da França. E em Paris, por sua vez, um lugar havia onde o fedor imperava de modo infernal, entre a Rue aux Fers e a Rue de la Ferronnerie, ou seja, no Cimetière des Innocents. Ao longo de oitocentos anos, tinham sido para ali trazidos os mortos do hospital Hôtel-Dieu e das comunidades eclesiais das redondezas; ao longo de oitocentos anos, carretas traziam ali, dia após dia, cadáveres às dúzias, jogados em longas covas; ao longo de oitocentos anos, acumulados nas criptas e ossários, camadas e mais camadas de ossinhos. E só mais tarde, às vésperas da Revolução Francesa, depois que algumas das covas haviam desabado rigorosamente e o fedor do saturado cemitério havia levado os moradores das cercanias não mais a meros protestos, mas a verdadeiros levantes, é que ele foi finalmente fechado e transferido, tendo os milhões de ossos e crânios sido enterrados nas catacumbas de Montmartre e, no seu lugar, surgiu uma praça com uma feira livre.
Bem ali, no lugar mais fedorento de todo o reino, foi que nasceu Jean Baptiste Grenoille, a 17 de julho de 1738. Era um dos dias mais quentes do ano. O calor pairava como chumbo por todo o cemitério e empurrava para as ruas vizinhas os gazes da putrefação que cheiravam a uma mistura de melões podres e chifre queimado. Quando as dores começaram, a mãe de Grenoille estava numa peixaria da Rue aux Fers e escamava pescadas, as quais acabara de viscerar. Os peixes, presumidamente recolhidos do Sena naquela manhã, já fediam tanto que o seu fedor se sobrepunha ao dos cadáveres. Mas a mãe de Grenoille não percebia nem o cheiro dos peixes nem o dos cadáveres, pois o seu nariz era praticamente insensível a odores e, além disso, doía-lhe o corpo, e a dor tirava-lhe toda sensibilidade para sensações externas. Queria só uma coisa: que a dor cessasse, e deixar para trás o quanto antes o horror do parto. Era o seu quinto. Os quatro anteriores ou semimortos, pois a carne ensaguentado que dela saíra não se diferenciava muito das vísceras dos peixes que lá estavam atiradas pelo chão, e também não vivia muito mais tempo, e à noite era jogado tudo junto em carretas e levado para o cemitério ou lá para baixo do rio. Assim deveria também ocorrer hoje. A mãe de Grenoille era uma mulher ainda jovem, nos meados dos vinte anos, que além de gota e de sífilis e de uma leve tísica, não tinha nenuma doença grave; esperava ainda viver muito tempo, talvez uns cinco ou dez anos, e até um dia casar e ter de verdade filhos, como a honrada esposa de um artesão enviuvado ou coisa parecida...
A mãe de Grenoille queria que tudo já estivesse acabado. E quando as dores se tornaram mais intensas, ela se acocorou debaixo da mesa de limpar peixe e lá pariu, como já das quatro outras vezes, e cortou com a faca de peixe o cordão dessa "coisa recém-nascida". Em seguida, porém, por causa do calor e do mau cheiro, que ela só percebia como algo insuportável, anestésico (...) ela desmaiou, caiu de lado, resvalou debaixo da mesa para o meio da rua e lá ficou, com a faca na mão (...); lentamente, ela recobra os sentidos.
O que lhe teria acontecido? Nada. O que estaria fazendo com a faca? Nada. De onde viria o sangue de sua saia? Dos peixes.
Ela se levanta, joga fora a faca e vai se lavar.
Nesse instante, contrariando as expectativas, a "coisa recém-nascida" começa a chorar debaixo da mesa de limpar peixe. Procura-se, encontra-se o bebê num enxame de moscas e entre vísceras e cabeças de peixe, é puxado para fora. Ex-officio ele é entregue a uma ama, a mãe é presa. E porque ela é ré confessa e sem delongas reconhece que por certo teria deixado a coisa perecer, como aliás já fizera com quatro outros, é processada, condenada por múltiplo infanticídio e, poucas semanas mais tarde, é decapitada na Place de Grève".
(In: O perfume - história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.11-3).


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (1)

"As pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta. ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas".
(O perfume. Patrick Suskind. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 8 - epígrafe).