"Que essa massa humana durante dezoito anos o havia oprimido como uma atmosfera prenhe de tempestade, só se tornava claro para Grenoille agora que começava a escapar disso. Até então, acreditava que era do mundo em geral que ele precisava escapar. Não era, porém, do mundo, mas das pessoas. Parecia que num mundo vazio de gente até dava para viver (p. 104).
"E ele fugia avante, reagindo cada vez mais sensivelmente ao cheiro do homem, que se tornava cada vez mais raro. Assim, o nariz conduziu-o para regiões cada vez mais remotas do país. afastando-o cada vez mais dos seres humanos e empurrando-o com ímpeto cada vez maior na direção do pólo magnético da maior solidão possível (p. 106).
"Sabe-se de homens que procuram a solidão: penitentes, fracassados, santos ou profetas. Retiram-se preferencialmente para desertos, onde vivem de gafanhotos e mel silvestre. Algumns vivem também em cavernas, claustros ou em ilhas remotas, ou se enfiam - algo mais espetacular - em gaiolas penduradas em varas, no ar. Fazem isso para estar mais perto de Deus. Mortificam-se com a solidão e através dela se penitenciam. Agem na crença de levarem uma vida que agrade a Deus. Ou ficam esperando durante meses ou até anos para que, na solidão, lhes advenha uma mensagem divina que, depois, querem divulgar o quanto antes entre os homens.
Nada disso adequava-se a Grenoille. Não tinha em mente nada parecido com "Deus". Não se penitenciava nem esperava qualquer inspiração do alto. Só para a sua própria e única diversão é que se retraía, só para estar mais perto de si mesmo. Banhava-se em sua própria existência, não desviado por nada mais, e achava isso maravilhoso. Jazia na gruta de rochedos como o seu próprio cadáver, como o cadáver de si mesmo. mal respirando, o coração mal batendo - e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum farrista jamais viveu no mundo" (p. 109-110).
"Quase não saía. Da vida corporativa, dos encontros regulares dos companheiros e dos desfiles dos artesãos, ele participava com frequencia suficiente para que nem ausência nem presença chamassem atenção. Não tinha amigos nem conhecidos, mas tomava muito cuidado no sentido de não ser considerado arrogante nem marginal. Deixava que os outros oficiais considerassem a sua companhia aborrecida e pouco interessante. Era mestre na arte de gerar monotonia e de parecer desajeitado - mas não exagerando a ponto de ficarem gozando à sua custa ou de virem a usá-lo como vítima das pesadas brincadeiras da corporação. Deixavam-no em paz, e ele não queria outra coisa" - (p.158).
"A fragrância das pessoas em si era, para ele, indiferente. Tratava-se de uma fragrância que ele podia imitar suficientemente bem com substitutivos. O que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram as suas vítimas" (p.164).
"O que ele sempre havia desejado, ou seja, que as outras pessoas o amassem, tornava-se, no instante do seu êxito, insuportável, pois ele mesmo não as amava, mas as opdiavas. E de repente soube que jamais encontraria satisfação no amor, mas tão somente no ódio, no odiar e no ser odiado.
Mas o ódio que sentia pelas pessoas permaneceu sem eco. Quanto mais ele as odiava nesse momento, tanto mais elas o adoravam, pois nada percebiam dele senão a sua aura, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado, e este era, de fato, divinamente bom.
Agora ele teria preferido eliminá-las da face da terra, essas pessoas estúpidas, fedorentas, erotizadas, exatamente como outrora, no país da sua alma negra como carvão, eliminara os cheiros estranhos. E desejava que notassem o quanto ele as odiava e que por isso, por causa desse único sentimento real, elas odiassem de volta e, por sua vez, liquidassem com ele, como afinal, originalmente prtendiam. Uma vez na vida ele gostaria de se externar (...). Uma vez, uma única vez, queria ser considerado em sua verdadeira existência e receber de outra pessoa uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro, o ódio" (p.205-6).
"Tinha poder para tanto. Um poder que era mais forte que o poder do dinheiro, do terror ou da morte: o insuperável poder de fazer as pessoas amarem. Só uma coisa esse poder não podia: não podia fazer com que ele mesmo cheirasse para si próprio. E ainda que chegase a aparecer diante do mundo, através do perfume, como um Deus - se ele não podia cheirar a si mesmo e, por isso, jamais saberia quem ele era, - nada disso importava, não importava o mundo, ele própriom o seu perfume" - (p.216).
(In: Perfume - História de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985).