Pesquisar este blog

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Não me fira - Caio Fernando Abreu

"Minha cara incendiava. Ele apagou o cigarro dentro do pequeno capacete militar invertido, sustentado por três espingardas cruzadas. E me olhou de frente, pela primeira vez, firme, sobrancelhas agudas sobre o nariz, fundo, um falcão atento à presa, forte. A mosca levantou vôo da ponta do meu nariz.
Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranquila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete, repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só resta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém.
Feito cometas, faíscas cruzaram na frente dos meus olhos. Tive medo de cair. Mas as folhas mais altas dos cinamomos começaram a se mover. O sol quase caindo no Guaíba. E não sei se pelo olhar dele, se pelo nariz livre da mosca, se pela minha história, pela brisa vinda do rio ou puro cansaço, parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências.
Pois, seu Hermes, então tu é o tal que tem pé chato, taquicardia e pressão baixa? O médico me disse. Arrimo de família, também?
Sim, meu sargento, menti apressado, aquele médico amigo de meu pai. Uma suspeita cruzou minha cabeça, e se ele descobrisse? Mas tive certeza: ele já sabia. O tempo todo. Desde o começo. Movimentei os ombros, mais leves. Olhei fundo no fundo frio do olho dele.
Trabalha?
Sim, meu sargento...menti outra vez.
Onde?
Num escritório, meu sargento.
Estuda?
Sim, meu sargento.
O quê?
Pré-vestibular, meu sargento.
E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?
Não, meu sargento.
Odontologia? Agronomia? Veterinária?
Filosofia, meu sargento.
Uma corrente elétrica percorreu os outros. Esperei que atacasse novamente. Ou risse. Tornou a me examinar lento. Respeito, aquilo, ou pena? O olhar se deteve, abaixo do meu umbigo. Acendeu outro cigarro, Continental sem filtro, eu podia ver, com o isqueiro em forma de bala.
Espiou pela janela. Devia ter visto o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte das ilhas. Voltou os olhos para mim. Pupilas tão contraídas que o verde parecia vidro liso, fácil de quebrar.
Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria.
Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. Olhou em volta, o alemão, o crioulo, os outros machos. E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte.
Caminhei para a porta, tão vitorioso que meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tardezinha. Abriram caminho para que eu parasse. Lerdos, vencidos. Antes de entrar na outra sala, ouvi o rebenque estalando conta a bota negra.
Sem-tido! Estão pensando que isso aqui é o "cu-da-mãe-joana"?"

(Trecho do conto Sargento Garcia, publicado originalmente no livro Morangos Mofados. In. Melhores Contos de Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global, 2006).