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quinta-feira, 28 de julho de 2011

Mim não conjuga verbo: sobre a distinção entre "eu ideal" e "ideal de eu"

"Se o eu ideal é o outro como imagem com valor cativante, o ideal do eu é  o outro como falante" - Coutinho Jorge, 2009, p.42.
A imersão na dimensão simbólica é um marco na "ex-istência" de todo ser vivente, pois lhe confere o estatuto de sujeito, "aquele que deseja". Deseja o quê? O que desde já, está perdido para sempre.
"Ser" sujeito é ser como um diamante bruto que foi lapidado pela linguagem, o qual a luz do existir, ao atravessá-lo, se desdobra em múltiplos desafios: que fazer da incompletude, desse gozo que nunca é pleno, mas antes uma vaga lembrança? Como lidar com o desencontro sexual, esse Real que comparece no Simbólico? Haverá modo de deixar uma marca neste mundo que "já está" há milênios, e que continuará a girar, indiferente ao cerrar de nossos olhos?
"Diferenciar-se" é um significante que marca a minha existência desde o princípio; sei que isso poderá soar retundante aos ouvidos de quem está familiarizado com o vocabulário da Psicanálise, mas para estes evoco, em defesa da minha narrativa, uma pontuação de André Gide: "Todas as coisas já estão ditas, mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre".
Dizia minha mãe que eu fui um bebê muito intrigante, posto que era difícil distinguir meus apelos de fome dos de dor. Aos poucos, porém, meus choros de dor se tornaram mais agudos - talvez aí o matema que me inscreve já estivesse dando seus indícios....
Ao entrar para a escola, tentando rabiscar as primeiras letras, frequentemente era advertida que deveria firmar melhor o meu traço, pois do contrário ninguém compreenderia o que eu quisesse dizer; era impossível para os outros distinguirem um "b" de um "l", um "v" de um "r". Quando me apropriei da técnica de caligrafia passei a escrever tão firme que frequentemente manchava de tinta minhas mãos e as bordas de caderno.
Mais adiante, outra dificuldade de linguagem se apresentou. A professora do primário, raivosa, entoava:
- Mim não conjuga verbo. Mariana. Mas será possível que você não consiga compreender?
- Não consigo, professora. Dizer "eu" e dizer "mim" não dá na mesma?
- É claro que não. Guarde de uma vez por todas a explicação que vou te dar: "mim" não faz nada sozinho, precisa que alguém lhe dê um sentido, só existe enquanto objeto de outro. "Eu posso", mas "mim" não pode nada; "mim não conjuga o verbo, mas é conjugado por ele". Compreendeste?
Passaram-se vinte anos até que, lançando-me ao estudo dos escritos psicanalíticos, dificuldade semelhante se apresentou: distinguir o "eu ideal" de "ideal de eu". Foi então que Lacan me forneceu a pista para decifrar o enigma, escrevendo, no que tange ao eu ideal,"Je", do francês "eu", e quanto ao ideal de eu, "moi", do francês "eu", mas "eu" enquanto objeto, "mim".
À pista dada por Lacan liguei as advertências da professora, então tudo ficou mais claro: no "eu ideal"- "Je"- a relação com o outro é dual, especular: toma-se o outro como imagem de si, faz-se uma projeção, o que confere ao eu uma unidade; no "ideal de eu"- "moi" -, a relação se dá entre um trio, onde a linguagem liga o outro a mim, ou seja, o outro é um ser que me fala, e a existência eu apreendo por introjeção dessa fala; ao mesmo tempo semelhante e diferente, o outro profere o verbo ao qual me assujeito, afinal, "mim não conjuga verbo".
Entre a  professora e  Lacan teci uma trama que  corrobora tanto as palavras do grande professor - "o inconsciente é atemporal" - quanto as de seu melhor aluno -" o inconsciente é estruturado como linguagem", onde um "significante só tem sentido em relação a outro significante", costurando uma teia em que a cada dia acrescentamos novos fios. O modo como tricotamos é o que nos diferencia....

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Hiatus Irrationalis - Jacques Lacan

Coisas, que corram em vós o suor ou a seiva,
Formas, que nascidas sejam da forja ou do sangue,
Vossa torrente não é mais densa que meu sonho;
E, se não os oprimo com um desejo incessante

Atravesso vossa água, desabo na areia,
onde me atrai o peso do meu demônio pensante.
Só, ele bate no duro chão onde o ser se eleva,
Ao mal cego e surdo, ao deus privado de sentido.

Mas, assim que parece todo verbo na minha garganta,
Coisas, que nascidas sejam do sangue ou da forja,
Natureza, eu me perco no fluxo de um elemento:

Este que aninha em mim, o mesmo vos subleva,
Formas, que corram em vós o suor ou a seiva,
é o fogo que me faz vosso imortal amante.
(Poema escrito em 1929 e publicado nos Cahiers d´art em 1933)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

De objeto a sujeito: o bebê - Marco Antônio Coutinho Jorge

"A criança deve ser levada, por um prodigioso dispêndio de amor, de ternura e de cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual era a sua intenção, pois, em caso contrário, as pulsões de destruição logo entram em ação". - Ferenczi

"A proximidade da criança do não-ser, muito maior do que a do adulto, favorece que ela deslize e retorne para ele muito facilmente. A "experiência da vida" afasta o bebê do não-ser do qual ele adveio, desde que se lhe apresentem bons motivos para se apegar a ela. Assim, o bebê adquire uma espécie de "imunização progressiva contra os atentados físicos e psíquicos".
(...) Os frequentes casos de morte súbita em neonatologia, na maioria das vezes inexplicáveis pelo discurso médico, adquirem assim, para nós, um contorno palpável: trata-se de um não acolhimento pelo amor e pelo desejo do Outro.
Spitz investigou o desenvolvimento infantil fazendo um estudo comparativo entre o desenvolvimento de crianças de um excelente orfanato e o de crianças do berçário de uma prisão. Se, por um lado, no orfanato, apesar de organizado e limpo, elas demonstraram um sensível atraso mental e debilidade física acentuada, na prisão, onde mantinham contato (ainda que não permanente) com as mães, além de serem o objeto privilegiado da atenção das outras prisioneiras, seu desenvolvimento era não só sadio como até acelerado. Spitz concluiu que a privação afetiva completa no primeiro ano de vida era responsável pelo "hospitalismo", cujo prognóstico é bastante grave; quando a privação era parcial, respondia por estados de depressão. Em seu trabalho, cita como epígrafe uma antiga observação, feita em um diário de 1760 por um bispo espanhol: "En la Casa de Niños Expositos el niño se va poniendo triste muchos de ellos mueren de tristeza".
(...) A constância dos cuidados maternos no início da vida do bebê é responsável por sua saúde psíquica.
Winnicott resume suas formulações salientando que a mãe "fornece continuidade" e acrescenta que, aos poucos, ela poderá se tornar cada vez menos atenta às necessidades do bebê - isso de acordo com a evolução da criança e sua condição cada vez maior de poder prescindir desse cuidado.
(...) Observando ainda que a criança, no caso de mulheres presas, "se torna um evidente substituto fálico", Spitz nos ajuda a compreender o quanto a fantasia dis progenitores em relação ao bebê pode ser decisiva, na medida em que, investindo narcisicamente o corpo do bebê, protege-o da tendência à auto-destruição que parece espreitá-lo desde sempre. É preciso supor que a fantasia amorosa dos pais é, assim, o primeiro escudo protetor em relação à pulsão de morte originária no bebê; ela constitui a primeira forma de erotismo da qual este participa, no caso, na condição de objeto do amor e do desejo do Outro. Posteriormente, será a sua fantasia de sujeito que irá preservá-lo dos ataques destrutivos da pulsão de morte, mas então ele estará na condição de sujeito do desejo, numa relação com o objeto causa do desejo.
Colette Soler assinala a referência feita por Lacan à síndrome do hospitalismo, ao final de sua "Nota sobre a criança" endereçada a Jenny Aubry, chamando a atenção para o fato de que
as necessidades vitais podem ser satisfeitas por cuidados relativaamente a`^onimos, mas, na falta desse "interesse particularizado" evocado por Lacan, a criança fica carente do Outro intérprete, bem como do Outro a ser interpretado, através do que ela mesma poderia vir a sê-lo num desejo não anônimo.
Pode-se esquematizar a travessia em jogo na constituição do sujeito no que diz respeito à fantasia da seguinte forma, mostrando que o essencial é a passagem do lugar de objeto (do Outro) para o lugar de sujeito ( numa relação desejante com o objeto perdido): (...) passagem de a para S/ - sujeito barrado.

(In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan - A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.162-4).

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Van Gogh - O suicida da sociedade - por Antonin Artaud

"É possível falar da boa saúde mental de Van Gogh que, no curso de toda a sua vida, apenas assou uma das mãos e, fora isso, não fez mais do que amputar a orelha esquerda, num mundo onde se come todos os dias vagina cozida à la sauce vert ou sexo de recém-nascido espancado e colérico, tal como é colhido ao sair do sexo materno.
E isto não é uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repetido e observado em toda a terra.
E é assim que, por mais delirante que possa parece tal afirmação, a vida presente se mantém em sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem, de delírio, de desregramento, deloucura crônica, de inércia burguesa, de anomalia psíquica (porque não foi o homem mas o mundo que se tornou anormal), de assumida desonestidade e de insigne hipocrisia, de sórdido desprezo por tudo o que mostre raça (...)
Isto é nocivo porque a consciência doente tem a esta altura interesse capital em não se livrar da doença.
Foi assim que uma sociedade deteriorada inventou a psiquiatra para se defender das indagações de certas mentes superiores, cuja capacidade de adivinhar a incomodava " (p.27-8).
(...) "Porque o que a pintura de Van Gogh ataca não é um determinado conformismo de costumes, mas o conformismo das próprias instituições. E nem mesmo a natureza exterior, com seus climas, marés de tempestades equinociais, pode manter, depois da passagem de Van Gogh, a mesma gravitação de antes.
Com mais razão ainda no plano social, as instituições se desagregam e a medicina afigura-se a um cadáver inútil e corrompido, que declara Van Gogh louco" (p.29).
(...) "E o que é um autêntico alienado?
É um homem que preferiu tornar-se louco, no sentido em que é socialmente entendido, a conspurcar uma certa idéia superior da honra humana.
Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger, por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas.
Porque um alienado é tam´bém um homem que a sociedade se negou a ouvir e quis impedí-lo de dizer insuportáveis verdades" (p.32-3).
(...) "Van Gogh não morreu de um estado de delírio próprio, e sim por ter servido corporalmente de campo a um problema em tornodo qual, desde suas origens, se debate o espírito iníquo desta humanidade, que é o da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outro.
E onde fica neste delírio o lugar do eu humano?
Van Gogh buscou o seu durante toda a vida com uma energia e uma determinação estranhas" (p.39).
(...) "Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão.
E inertes" (p. 45).
(...) "Cardadas pela ferramenta de Van Gogh, as paisagens mostram sua carne hostil, a hostilidade de suas entranhas expostas, que não se sabe qual estranha força por outro lado está prestes a provocar metamorfoses" (p.46).
 "A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença, e se não a provocou e criou, peça por peça, para se atribuir uma razão de existir; mas a psiquiatria nasceu da turba plebéia de seres que quiseram conservar o mal na fonte da doença e que, assim, extirparam de seu próprio nada uma espécie de guarda suíça para deter em seu nascedouro o impulso de rebelião reinvidicador que está na origem do gênio.
Há em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma idéia assustadora, e que só no delírio consegue encontrar uma saída para as coerções que a vida lhe preparou" (p. 53).
(...) "Van Gogh se representou a si mesmo num grande número de telas e, por mais claras que fossem, sempre tive a penosa impressão de que ele foi obrigado a mentir acerca da luz, quea Van Gogh roubaram uma luz indispensável para abrir e traçar seu caminho em si mesmo (...) porque Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior que lhes permite, em todas as circunstâncias, enxergar mais longe infinita e perigosamente mais longe do que o real imediato e aparente dos fatos (...). No fundo de seus olhos de carniceiro, que parecem depilados, Van Gogh se entregava sem interrupção a uma dessas operações de alquimia sombria, que tomam a natureza por objeto e o corpo humano por caldeirão ou cadino" (p.55-6).
(...) "Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, construiu, inventou, a não ser para sair do inferno.
Prefiro, para sair do inferno, as naturezas desse convulsionário tranquilo às fervilhantes composições de Breughel, o Velho, ou de Jerônimo Bosch, que, em face dele, são artistas, enquanto que Van Gogh é apenas um pobre ignorante que se esforça para não se enganar" (p.61).
(...) o pensamento é o luxo da paz (...) a humanidade não quer pagar o preço de viver, de entrar neste conflito natural de forças que conpõem a realidade para extrair daí um corpo que nenhuma tempestade poderá danificar. Ela preferiu contentar-se em simplesmente existir.
Quanto à vida, é no gênio do artista que ela tem o hábito de ir procurá-la.
Ora, Van Gogh, que tinha assado a própria mão, jamais teve medo de guerrear para viver, isto é, para arrebatar o fato de viver à idéia de existir, e tudo pode certamente existir sem pagar o preço de ser, e tudo pode ser sem pagar, como Van Gogh, o desatinado, o preço de irradiar e de rutilar.
Foi isto que a sociedade lhe arrebatou para fazer a cultura turca, esta honestidade de fachada que tem o crime como origem e apoio.
E por isso Van Gogh morreu suicidado, visto que o consenso da consciência geral não pode mais tolerá-lo.
(...) Só a guerra perpétua explica uma paz que é apenas passagem, assim como o leite prestes a derramar explica a caçarola na qual ferve.
Desconfie das belas paisagens de Van Gogh turbilhonantes e pacíficas,convulcionadas e pacificadas.
É a saúde entre duas recaídas da febreardente que vai passar.
É a febre entre duas recaídas de uma inssureição de boa saúde.
Um dia a pintura de Van Gogh armada de febre e de boa saúde, voltará para lançar no ar a poeira de um mundo enjaulado que seu coração já não podia suportar "(p.79-81).
(In: Van Gogh - O suicida da sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007).

Download do livro disponível no link:

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Lacan & as pantufas

"O inconsciente é um saber articulado em torno de uma falta de saber institual...um saber não-todo que, dessa falta, só faz reconstituir a dimensão de seu enigma".
*
"A passagem do instinto para a pulsão é tributária de uma perda sofrida por nossa espécie, a partir da qual se instalou uma falta em todos os indivíduos. Trata-se de uma falta que está na origem e, por isso, opera como causa do desejo".
Marco Antônio Coutinho Jorge, em: Fundamentos da Psicanálise de Freud à Lacan - a clínica da fantasia, 2010, p.65.
Era manhã de sábado; o sol ainda tímido se escondia atrás das nuvens e eu, um tanto sonolenta mas não o suficiente para me manter na cama, vesti um casaco e saí à varanda, para podar e regar as plantas.
O cortiço jazia silencioso; muito cedo para que sua efervescência natural eclodisse. Entre o estalar de uma e outra folha seca, meus ouvidos se deteram no som de passos que vagarosamente se arrastavam. Ergo os olhos para além da mureta: um ser de cinquenta centímetros de altura, e trajando pantufas de leão, me fitava com seus olhos de oceano:
- Que tá fazendo, Mari?
Era a Gabriela, filha da minha prima caçula.
- Estou regando as plantas, respondi.
- Posso ficar aqui com você?
- Pode, claro. Você já tomou café?
- Ainda não. Mas não tô com fome. Mas Mari...você quer que eu fique com você?
- É claro que quero. Fico muito feliz que você esteja aqui comigo.
Continuei a regar as plantas. Gabriela olhava atenta.
- E esses leões, estão esquentando seu pé?
- Sim, são muito quentinhos. Você devia comprar desses pra você, e não ficar andando com esses chinelos. Mas sabe de uma coisa, eles não são leões de verdade.
Fiz expressão de surpresa.
- Há....não???!!!! Me parecem ter uma juba tão grande....
- Sabe como eu sei que eles não são de verdade?
Me encurvei de modo a colocar os ouvidos à altura de seus lábios, e sussurrando respondi:
- Não, não sei.
- Eles não falam, tia. Não podem ser de verdade.
- Hum...entendi.
- Tia Mari, por que é que você tem que regar as plantinhas?
- Porque elas tem sede, e como não sabem falar, se a gente não der água pra elas, elas morrem.
- Que nem um bebê?
- Isso, que nem um bebê.
- E quando é que um bebê deixa de ser bebê e vira gente de verdade?
- Hum....essa é uma pergunta muito difícil de se responder. Sabia que um monte de gente já pensou sobre isso e não conseguiu responder direito?
- Verdade?
- Verdade, Gabi. Você tem alguma idéia sobre isso?
- Eu tenho, tia, eu tenho. Acho que um bebê vira gente de verdade quando ele aprende o que é falar. Mesmo que ele não fale direito ainda, mas compreende quando falam com ele, o que pode ou não fazer.
Eu disse então baixinho, quase que para comigo mesma:
- Quando ele entra no mundo da linguagem.
- Isso mesmo, tia.
Totalmente atônita, repliquei:
- Você entendeu o que eu disse?
- Completamente, tia. É exatamente isso que faz do bebê ser gente.
- Me diz uma coisa, Gabi: quantos aninhos você tem?
Ela levantou três dedinhos e disse:
- Tenho isso. Não sou mais um bebê, né tia? Eu já sei falar....
- Claro que não, você já é uma mocinha.
- Além do mais, tia, eu sei o que me faz falta. Posso te ajudar com as plantas?
Enchi a jarra pela metade e passei para as suas mãozinhas, que dellicadamente depositaram a água nos vasos.
- Olha, tia, olha que engraçado!!! Tem umas plantinhas que vazam a água logo que eu ponho, e tem outras que demoram mais. Como é que pode?
- E você por acaso faz xixi logo que bebe água?
- Eu não tia. Então é a mesma coisa?
- A mesma coisa não é, Gabi, mas é parecido.
- A mesma coisa nunca vai ser, né tia? As plantas não entendem o que a gente diz. Elas podem até nos dizer alguma coisa, mas elas não tem dentro delas aquilo que você disse...como é mesmo tia?
- Linguagem.
- Isso, exatamente.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Leitura lacaniana do Hamlet

O mote característico: to be or not to be tornou-se popular, embora ninguém entenda bem o sentido. Até parece uma piada. Mas também a tragicidade do lema grego: melhor não ter nascido.
Não é casual que o texto de Hamlet tenha sido escrito logo depois da morte do pai de Shakespeare, em 1601. Digno de nota também é o fato de que Shakespeare perdera um filho precocemente, e que se chamava Hamlet. Não seria possível que o poeta estivesse descrevendo, em sua obra, seus próprios sentimentos, algo autobiográfico?
Na peça, o pai é um rei muito admirável, o ideal tanto de rei como de pai, e que morreu misteriosamente. Teria sido picado por uma serpente, enquanto dormia no jardim, ou teria sido envenenado, pelo ouvido, por uma planta tóxica chamada meimendro.
Detalhe importante: de acordo com a cultura dinamarquesa, ofereceu-se um lauto banquete no dia do enterro do rei. Logo nodia seguinte, Cláudio assume o trono e casa-se com a rainha viúva. Novo banquete comemorativo, no qual se aproveitaram as sobras de comida do dia do enterro.
Na sequência, o pai de Hamlet aparece, então como ghost, fantasma, para revelar ao filho Hamlet as condições de sua morte, pedindo vingança.
Lacan considera insuficiente a hipótese freudiana,segundo a qual, os modernos seriam mais neuróticos do que os antigos. Insatisfatório também é explicar a inibição do herói, pelo fato de que Cláudio realiza o desejo incestuoso de Hamlet, de matar o pai e dormir com a mãe. O desejo pessoal de vingança, somado à ordem expressa do fantasma do pai, seriam mais do que suficientes para que Hamlet agisse. Se não o faz, é que algo de errado acontece em seu desejo.
Qual seria, no registro da consciência, seu desejo? É a sua noiva Ofélia, que ele amava, mas, a partir de então, rejeita-a, e expressa um horror à sua feminilidade. Hamlet não trata mais Ofélia como uma mulher. Segundo Lacan, ela se torna, a seus olhos, a portadora de filhos de todos os pecados, aquela que está destinada a engendrar os pecadores e que sucumbirá sob todas as calúnias. O pai de Ofélia, Polônio, oferece uma interpretação selvagem, dizendo, segundo Lacan: Se Hamlet está melancólico, é porque escreveu cartas de amor para a sua filha, e ele, Polônio, conforme seu dever de pai, ordenou a esta responder rudemente. Dito de outra forma, nosso Hamlet está doente de amor. Ofélia enlouquece e se afoga no riacho, talvez suicidando-se.
Segundo Lacan, a resposta a este imbrólio está, essencialmente, na relação de Hamlet com seu próprio ato. Trata-se de um ato a realizar, e Hamlet depende dele. O que se evidencia, durante toda a peça, é a procrastinbação, típica do neurótico obsessivo, adiando o fato sempre para o dia seguinte. Lacan insiste em que este ato não é o ato edipiano. Hamlet é, desde o início, culpado de ser. Para ele, é insuportável ser.
Acontece que o pai de Hamlet lhe disse, enquanto fantasma, que foi surpreendido pela morte na flor de seus pecados. (Ele foi assassinado no jardim, dormindo). Através da vingança, Hamlet iria ocupar este lugar marcado pelo pecado do outro, um pecado não pago. Ao contrário de Édipo, que não sabia, e que pagou caro, com a própria morte, a morte de sua esposa-mãe e de seus filhos-irmãos, nosso Hamlet sabe, e não pagou o preço de existir.
Então, se ele matar Cláudio, vai ter que pagar o preço com sua vida também. Logo, seu dilema, motivo de sua inibição, é: SER vingador OU NÃO SER vingador. No plano da consciência, escolheu ser, já que fazia tentativas de vingança, mas, na instância inconsciente, decidiu-se pelo não ser, porquanto boiocotava todas as chances reais que se lhe ofereciam.
A dificuldade da escolha é crucial, porque a tragédia está em ambas as alternativas. Se executar a vingança, terá a segunda morte, a morte biológica, como castigo. Se não se vingar, carregará a angústia dos remorsos de consciência, ou seja, a primeira morte, do desejo.
Lacan destaca, então, a questão do desejo, dizendo que o homem não está simplesmente possuído pelo desejo, mas tem que encontrá-lo às suas custas e a duras penas. Ele só o encontrará no limite, numa ação que culmina com a morte.
No encontro de Hamlet com o espectro do pai, este lhe revela o horror do local em que vive um sofrimento insuportável. E lhe dá uma ordem: fazer cesar, de qualquer jeito, o escândalo da luxúria da rainha. Aconselha-o também a se proteger a si mesmo nas relações com sua mãe. Trata-se agora do desejo da mãe. E Hamlet sugere claramente à mãe que não tenha mais relações com Cláudio.
Hamlet planeja surpreender e matar Cláudio na cama. Mas indaga se, com isso, não o estaria levando para o céu, enquanto seu pai penava no inferno. No fundo, Hamlet é cúmplice de Cládio quanto ao desejo da mãe. Ele já cometeu, inconscientemente, o mesmo crime de desejar a mãe, logo, atacar Cláudio é atacar a si mesmo. O desejo pela mãe está recalcado em Hamlet. Ele pensa também no suicídio, mas, da mesma maneira que no homicídio, teria que pagar caro. E assim, to be or not to be recebe outro sentido: eternidade no céu, ou no inferno.
E este desejo, com o qual Hamlet se debate, não é só seu desejo pela mãe, é também o desejo de sua mãe. Quando Hamlet a instiga a retomar o caminho da dignidade e dos bons costumes, ela lhe pergunta: Você quer me matar? Até onde você quer ir? Durante esta conversa, Hamlet percebe alguém se mexendo atrás da cortina. Supondo ser Cláudio, decide que chegou a hora. Com a espada, atravessa, por engano, o corpo de Polônio.
Um dos pontos altos da peça é a cena da luta corporal dentro da cova de ofélia. Hamlet continuava espreitando a chance de matar Cláudio, tendo-se feito até passar por louco, ou por bobo da corte. Mas, como Cláudio se sentia meio responsável pela morte de Ofélia, e incomodado pelo exagerado luto de Laerte, irmão dela e seu desafeto, convida Hamlet para se debater em duelo com Laerte, seu amigo. Hamlet aceita lutar em nome dauqele que, justamente, gostaria de eliminar. E Hamlet mostrou-se exímio na esgrima. Mas Cláudio foi desonesto, mandando colocar veneno mortal na ponta da espada de Laerte. Um simples ferimento condenou Hamlet à morte.
Estamos já no final da peça, e Hamlet, mesmo ferido, elimina Laerte e, depois de 36 tentativas, fica, enfim, livre para realizar seu ato, matando Cláudio. Mas só depois de ter matado outros, por engano, e depois que sua mãe se envenenou, por engano, bebendo o vinho que Cláudio ia oferecer a Hamlet. Com sua morte, Hamlet puniu-se e pagou seus pecados.
Ao dilema shakespereano, Freud, na óptica lacaniana, contrapõe o seu: to have or not to have, ter ou não ter o falo. E Lacan acrscenta que o homem se caracteriza por ter sem ser, e a mulher, por ser sem ter. Toda a questão do Hamlet é ser ou não ser o falo da mãe.
Para a psicanálise, onde está a tragédia paterna em Hamlet? Por algum motivo não declarado, o rei não soube ocupar o lugar de objeto de desejo da rainha, entreando-se facilmente a Cláudio, com o qual ela já devia estar comprometida, por ocasião do assassinato real. Ao sair de cena, e não interditar ao filho o desejo da mãe, o pai abre espaço e induz Hamlet a substituí-lo, vingando-se, e ter que ocupar um lugar proibido e trágico.
(In: Doze lições de Freud à Lacan. Geraldino Alves Ferreira Netto. São Paulo: Pontes, 2010. p.232-5).