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sexta-feira, 16 de abril de 2021

Somos adultos - Natalia Ginzburg

 


"E agora somos verdadeiramente adultos: é o que pensamos numa manhã, olhando no espelho nosso rosto sulcado, escavado; olhando-o sem nenhum orgulho, sem nenhuma curiosidade, com um pouco de misericórdia. Temos de novo um espelho entre quatro paredes; quem sabe daqui a pouco tenhamos de novo um tapete, talvez uma luminária. Mas perdemos as pessoas mais queridas: então, que nos importam os tapetes e as pantufas vermelhas? Aprendemos a separar e a guardar os objetos dos mortos; a voltar sozinhos aos lugares onde estivemos com eles; a interrogar, sentindo o silêncio ao redor. Já não temos medo da morte: olhamos a morte toda hora, a cada minuto, recordando seu grande silêncio sobre o rosto mais querido.
E agora somos verdadeiramente adultos - pensamos - e nos sentimos surpresos de que ser adulto seja isto, e não tudo aquilo que acreditávamos na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas da terra. Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre nosso comportamento atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não tínhamos entendido como era irreparável e sem remédio, a morte: somos adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que trazemos dentro de nós. Somos adultos por aquele breve momento que um dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as coisas da terra e renunciamos a possuí-las e as restituímos à vontade de Deus; e de repente as coisas da Terra nos pareceram em seu lugar preciso sob o céu, e assim todos os seres humanos, e nós mesmos suspensos a olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e memórias, tudo nos pareceu em seu exato lugar sob o céu. Naquele breve momento encontramos um equilíbrio para nossa vida oscilante; e nos parece que sempre poderemos reencontrar aquele momento secreto, buscar ali as palavras para o nosso ofício, nossas palavras para o próximo; olhar o próximo com olhos sempre justos e livres, não com o olhar temerosos ou arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será seu senhor ou seu servo. Durante toda a vida só soubemos ser senhores ou servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro senhorio nem verdadeira servidão sobre a terra. Assim, agora, tornando àquele nosso momento secreto, tentaremos enxergar nos outros se eles já viveram um momento idêntico, ou se ainda estão longe disso: é o que importa saber. Na vida de um ser humano, este é o momento mais alto: e é necessário que estejamos com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos".



(In. Natalia Ginzburg. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, pp. 107-108).

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morra, amor - Ariana Harwicz

 

"Quero ir ao banheiro desde que acabou o almoço, mas é impossível fazer qualquer coisa além de ser mãe. E dá-lhe choro, chora, chora, chora, vou ficar doida. Sou mãe, pronto. Eu me arrependo, mas nem posso dizer. Para quem. Para ele, sentado os meus joelhos, metendo a mão no meu prato com seus restos frios, brincando com o osso de galinha? Não. Deixa isso que você engasga. Jogo um biscoitinho para ele. Ele me devolve. Tenho a boca cheia da sua saliva, de migalhas. Tenho tomate grudado no braço. Não o deixo terminar e lhe meto outro biscoito, ele se entala. Não me preocupo com o que possa pensar de mim. Eu o trouxe ao mundo, já é o suficiente. Sou mãe em piloto automático. Choraminga e é pior do que o choro. Eu o levanto, lhe ofereço um sorriso falso, aperto os dentes. Mamãe era feliz antes do bebê. Mamãe se levanta todos os dias querendo fugir do bebê e ele chora mais. Quero ir ao banheiro, mas esse cacarejo interminável, essa queixa, faz com que seja impossível. Que quer de mim. O que você quer? Não me deixa deixá-lo. Arqueia-se. Ontem tive que ir fazer com ele, hoje prefiro fazer na roupa. Ligo para o meu marido. Preciso de reforços. Enquanto ligo eu o levo pendurado em um ombro, vai me destroncar, gruda algo viscoso no meu umbigo. Atende, por favor, atende. Oi, escuta, amor, você precisa vir não aguento mais. Não, não dá para demorar tanto, você tem que vir já, você não está entendendo, não está querendo entender, não aguento até de noite, e desligo na cara dele porque ele se faz de desentendido; que pelo menos se assuste e venha. E ficamos rodando enredados no cabo para o caso de ele ligar e o levo até a porta para ver se passa alguém a quem eu o possa dar. Mas não há vizinhos como os que preciso. Há bastardos. E se eu bater n porta da velha que vive com as janelas gradeadas e suas tartarugas agressivas? Certamente poderia distraí-la, seria como ter uma televisão, como ir ao cinema. Ninguém passa, ninguém o quer, nada se mexe, ar parado dos diabos. Eu o deixo largado aos meus pés. Ele se retorce, se estica, grita comigo, arranca a fralda e desabotoa meus sapatos, come a tira de couro. Eu o olho como um caranguejo olha para um menino. Um carro de corrida passa com uma família. Têm a cara para fora das janelinhas. É noite e continuo apoiada na porteira, me vejo grávida, quando achava que levava dentro de mim uma gárgula. Eu me vejo parindo, expulsando. Picam a gente, tenho que entrar e acender a lareira, tirar o almoço repleto de formigas vermelhas levando comida para o inverno que vem. O pai nem piscou. Eu o levo nas costas e entro com ele suado e faminto, as unhas afiadas. Tenho que fazer macarrão ou sopa para ele, ir pegar alguma verdura na horta do vizinho, mas me dá leseira. Ser mãe é tão pouco excitante. Morro de vontade. Uma bola se forma dentro de mim. Eu o deixo cair, cruzo as pernas. Corro e me fecho. Chora como os asiáticos nos enterros rasgando as vestimentas. Não aguento e abro a porta para ele, penso quão asqueroso é isso tudo" - (pp.89-90).
(In. Morra amor. Ariana Harwicz. São Paulo: Editora Instante, 2019).

Mais sobre o livro:

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Christopher Robin - um reencontro inesquecível (trecho).

"- Christopher Robin. Que dia é hoje?
- É hoje.
- Meu dia favorito.
- O meu também, Pooh. O meu também.
- Ontem, quando era amanhã, foi um dia muito agitado pra mim".

*

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ferrante com Freud - A amiga genial

 
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015,  p. 61).
 
 
Unheimilich = “relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338). 
*
Unheimlich é o que aparece quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
 (Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).


quinta-feira, 30 de junho de 2016

A outra cena.... por Amos Oz

 
Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: "O Levante é cheio de micróbios".
(...) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer.
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho.
De fato, teve um infarto.
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, "O Levante é cheio de micróbios", aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios.
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (...). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou - nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios"
 
(De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 45-48).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme:









quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só garotos - Patti Smith

 
 
"Só garotos" é um livro em que Patti Smith conta do seu encontro com Robert Mapplethorpe, encontro que rendeu uma jornada para além das vivências sexuais, das infinitas possibilidades e finitas impossibilidades do amor.
Quando Patti e Robert se esbarraram eles eram apenas "garotos" e o germe que faria deles donos de um estilo único estava a espreita de florescer. Em comum havia a paixão pela pintura, poesia, música e tudo que dissesse respeito as agonias ínverbalizáveis do ser humano.
Eles compartilharam vivências peculiares e cuidaram um do outro. Mantiveram-se juntos mesmo quando a vida os lançou em caminhos diferentes. O que tiveram não  foi uma dita "parte importante" da vida de cada um...não, foi mais. Foi algo fermentador da maturação de cada um enquanto sujeito, foi o que os fortaleceu para se empossarem plenamente da existência. Não foi "parte da vida" pois foi a própria vida. Foi "para além" da vida. Foi o que deu a certeza para o que era uma suspeita de ambos: a arte como única saída viável para a sufocante absurdidade das conveniências mundanas.
Patti desde cedo não se rendeu. Ela foi a garotinha que não viu sentido em repetir as ladainhas que a sua mãe lhe impingia todas as noites antes de dormir; para ela rezar de acordo com sentenças ditadas era tão pecaminoso quanto crer em um Deus com o qual não pudesse ser sincera. Patti ousou criar seu próprio modo de conversar com Deus, e aí vemos o primeiro vestígio da artista.
Mais tarde, quando uma gravidez inesperada a assaltou, Patti não quis sequestrar a liberdade de um jovem parceiro em troca de reconhecimento social, tal como os "bons costumes" previam. Ela deu vida à filha e a deixou a salvo sem sacrificar a felicidade de outrem.
Patti seguiu adiante. Saiu de casa, morou na rua, roubou pincéis.
 Escapou de um curso universitário medíocre e usou, sem se permitir ser usada, de empregos que garantiam parcamente suas necessidades básicas enquanto ela corria atrás do que queria.
Robert também não se rendeu. Ele, que tinha do "bom e do melhor" (menos amor) com os pais, que lhe pagavam os estudos e esperam que ele se tornasse um profissional gráfico de sucesso, pai de família e dito cidadão respeitável, também saiu de casa. Passou fome, teve febre, e sobreviveu de migalhas até encontrar na fotografia o seu modo de estar dignamente no mundo.
No meio do caminho de Patti e Robert houve pedras, diversas pedras...daquelas grandes e brutas. Mas no meio do caminho de Patti e Robert houve Patti....e houve Robert, para lapidar uma vida possível.
"Só garotos" é a inesquecível narrativa de Patti sobre este caminho.
 
 
Trecho do livro:
 
"A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.
 
Querido Robert,
Sempre que estou na cama acordada me pergunto se você também está acordado na cama. Você está com alguma dor ou se sentindo sozinho? Você me tirou do período mais negro da minha juventude, dividindo comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver com você e nunca faço um verso ou desenho uma curva que não venha do conhecimento que consegui durante o nosso valioso tempo juntos. O seu trabalho, oriundo de uma fonte fluida, remonta à canção nua da sua juventude. E você fala em ficar de mãos dadas com Deus. Lembre-se, aconteça o que acontecer, você sempre esteve segurando essa mão, aperte-a com força Robert, não solte.
Na outra tarde, quando você dormiu no meu ombro, eu também cochilei. Mas antes pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você ainda é o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti".
 
*
 
(Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 252).
 
 
 
 
 


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

É isto um homem? - Primo Levi (trechos)

"Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar, 
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou não, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los" - (p. 9-10).
*
"desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado" - (p.16).
*
"Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer "infinito". Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã,no segundo. Assim, opõe-se a ela a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam a cada isntante a nossa atenção da  desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária, e portanto, suportável.
Foram justamente as privações, as pancadas, o frio, a sede que, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: dela poucos homens são capazes, e nós éramos apenas exemplares comuns da espécie humana" - (p.17-8).
*
"Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível , e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota" - (p.25-6).
*
"A explicação é repugnante, porém simples: neste lugar tudo é proibido, não por motivos inexplicáveis e sim porque o Campo foi criado para isso" - (p.36-7).
*
"...porque o Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais..." - (p. 55).
*
"A convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza. Para nós, a questão é mais simples.
Hoje, e aqui, o nosso objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em outra coisa" - (p. 102).
 
"Na história e na vida parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa assim: "a quem já tem, será dado; de quem não tem, será tirado". No Campo, onde o homem está sozinho e onde a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, essa lei iníqua vigora abertamente, observada por todos. Com os mais aptos, os mais fortes e astuciosos, até os chefes mantêm contatos, às vezes quase amistosos, porque esperam poder tirar deles, talvez, mais tarde, alguma vantagem. Quanto aos "muçulmanos", porém, aos homens próximos do fim, nem adianta dirigir-lhes a palavra; já se sabe que eles só se queixariam, ou contariam como comiam bem em sua casa (...).
Nas estatísticas de entradas e saídas do Campo, poderia ler-se o resultado desse implacável processo de seleção natural. Em Auschwitz, no ano de 1944, dos velhos prisioneiros judeus (dos outros não vamos falar, suas condições eram diferentes), dos kleine Nummer, "números pequenos" inferiores ao número 150 mil, sobravam apenas algumas centenas, e nenhum deles era um Haftling normal, que vegetasse nos Kommandos normais e que se contentasse com a ração normal. Restavam apenas os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os homossexuais jovens e atraentes, os amigos ou conterrãneos de alguma pessoa influente do Campo; e, além deles, alguns indivíduos especialmente cruéis, fortes e desumanos, que alcançaram cargo de Kapo, de Chefe de Bloco ou outro, por designação dos SS que, nessa escolha, demonstravam possuir um conhecimento satânico dos homens. Sobravam ainda aqueles que, embora sem exercer funções especiais, com a sua astúcia e energia conseguiam sempre "ajeitar as coisas", merecendo não apenas as vantagens materiais e a reputação, mas também a tolerância e consideração dos poderosos do Campo. Quem não souber tornar-se Organisator, Kombinator, Prominent (oh, a eloquência cruel desses vocábulos!) acaba, em breve, "muçulmano" . Na vida normal, existe um terceiro caminho, aliás, o mais comum. No Campo, não existe.
Sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebia, comer apenas a ração, obedecer à diosciplina do trabalho do Campo. Desse modo, a experiência demonstra que não se aguenta quase nunca mais do que três meses. A história - ou melhor, a não história - de todos os "muçulmanos" que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se;  ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoranara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os "muçulmanos", os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar "morte" a sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria esse imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento" - (p. 129-132).
*
"Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de maneira incompreensível; pensar é, também, um mal porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite.
A gente cansa da alegria, do medo, até da dor; cansa também da espera" - (p. 251-2).
(In. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988).

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Liberté et Patrie - Jean Luc Godard (trechos)


"Se aprende a palavra pensar, e sabe-se como usá-la, mas, dependendo das circunstâncias, não se pode descrevê-la".
*
"E tem de errar muitas vezes, para não voltar a errar...".
*
" - Pai, qual é o melhor modo de saber se alguém é digno de confiança?
- Pergunte: "O que você leu"? Se responder: " Homero, Shakespeare, Balzac", então não é digno de confiança. Mas se responder: "Depende do que você quer dizer com ler", então há esperança".

Link para o curta de Godard na íntegra e legendado no youtube:


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Masculin, Feminin - Jean-Luc Godard (trechos)



" - Por que você quer sair comigo esta noite?
- Porque você é linda, e todos precisamos de ternura.
- Não há mais nada em mim que o atraia?
- Sim. Tudo".
*
Não se pode viver sem ternura. Seria mortal".
*
"É difícil dizer o que se quer se não se está acostumado".
*
"Se matar um homem, você é um assassino.
Se matar milhões, é um conquistador.
Se matar todos os homens, é Deus".

 


Link do youtube com o filme legendado:

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O sonho de um homem ridículo - Dostoiévski

"Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim - aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto - não de mim mesmo, mas por amá-los, se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender.
Antes, porém, eu me sentia muito consternado por parecer ridículo. Eu não parecia, eu era. Sempre fui ridículo, e sei disso, talvez, desde que nasci. Talvez desde os sete anos já soubesse que sou ridículo. Depois fui para a escola, depois para a universidade, e ora - quanto mais estudava, mais aprendia que sou ridículo. De modo que todos os meus estudos universitários como que só existiram, afinal, para me provar e me explicar, à medida que neles me aprofundava, que sou ridículo. A cada ano aumentava e se fortalecia em mim essa mesma consciência do meu aspecto ridículo em todos os sentidos. Todos riam de mim, o tempo todo. Mas ninguém sabia nem suspeitava que, se havia na terra um homem mais sabedor do fato de que sou ridículo, esse homem era eu, e era justo o que mais me ofendia, que eles não soubessem disso, mas aqui o culpado era eu mesmo: sempre fui tão orgulhoso que por nada no mundo jamais iria querer confessar o fato a ninguém. Esse orgulho cresceu em mim ao longo dos anos, e se acontecesse de me deixar confessar, diante de quem quer que fosse, que sou ridículo, creio que imediatamente, na mesma noite, estouraria os miolos com h, como eu sofria na adolescência com medo de não aguentar e de repente achar de algum jeito me confessando aos amigos. Mas desde que me tornei moço, apesar de reconhecer mais e mais a cada ano a minha horrível qualidade, por um motivo qualquer fiquei um pouco mais tranquilo. Por um motivo qualquer, justamente, porque até hoje não sei bem por que motivo. Talvez porque na minha alma viesse crescendo uma melancolia terrível por causa de uma circunstância que já estava infinitamente acima de todo o meu ser: mais precisamente - ocorrera-me a convicção de que no mundo, em qualquer canto, tudo tanto faz. Fazia muito tempo que eu vinha pressentindo isso, mas a plena convicção surgiu no último ano, assim, de repente. Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e sentir com todo o meu ser que diante de mim não havia nada. No começo me parecia sempre que, em compensação, tinha havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes também não tinha havido nada, apenas parecia haver, não sei por quê. Pouco a pouco me convenci de que também não  vai haver nada jamais. Então de repente parei de me zangar com as pessoas e passei a quase nem nota-las. De fato, isso se manifestava até nas mínimas ninharias: estou, por exemplo, andando na rua e vou dando encontrões nas pessoas. E não era por andar mergulhado em pensamentos: sobre aquilo que eu tinha para pensar, já então cessara completamente de pensar: tudo me era indiferente. E se ao menos eu tivesse resolvido as questões; ah, não resolvi nenhuma, e quantas havia? Mas para mim tudo ficou indiferente, e as questões todas se afastaram.
 Então, depois disso, eu conheci a verdade. Conheci a verdade em novembro passado, mais precisamente em três de novembro, e desde então me lembro de cada instante da minha vida. Isso aconteceu numa noite tenebrosa, na mais tenebrosa noite que pode haver. Eu voltava para casa então às onze horas da noite, e pensei justamente, eu me lembro, que não poderia haver hora mais tenebrosa...." - (p.91-3).
*
"A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade - é superior à felicidade" - é contra isso que é preciso lutar! E é o que vou fazer. basta que todos queiram, e tudo se acerta agora mesmo" - (p.123).
 
(In. Duas narrativas fantásticas. A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Editora 34, 2011).


O olho e o espírito - Merleau Ponty

 
"É preciso que o pensamento de ciência - pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral- torne a se colocar num "há" prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os "outros", que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me freqüentam, que freqüento, com os quais freqüento um único Ser atual, presente, como animal nenhum freqüentou os de sua espécie, seu território ou seu meio" - (p.14-5).
*
"Mas a humanidade não é produzida como um efeito por nossas articulações, pela implantação de nossos olhos (e muito menos pela existência dos espelhos que, não obstante, são os únicos a tornar visível para nós nosso corpo inteiro). Essas contingências e outras semelhantes, sem as quais não haveria homem, não fazem, por simples soma, que haja um só homem.
A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras nem, aliás, a descida do autômato de um espírito vindo de alhures, o que suporia ainda que o próprio corpo é sem interior e sem "si". Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer..." - (p.17-8).
*
"Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo"- (p.18).
*
"Não se pode fazer um inventário limitativo do visível como tampouco dos usos possíveis de uma língua ou somente de seu vocabulário e de suas frases. Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi ...sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade" (p.19-20).
*
"...disse André Marchand na esteira de Klee: "Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer traspassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir". O que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado. Diz-se que um homem nasceu no instante em que aquilo que no âmago do corpo materno era apenas um visível virtual se faz simultaneamente visível para nós e para
si. A visão do pintor é um nascimento continuado"- (p.22).


 (In. O olho e o espírito. São Paulo: Cosacnaify, 2004).



terça-feira, 3 de setembro de 2013

O inconsciente estético - Jacques Ranciere

Não se tratará, aqui, de psicanalisar Freud. As figuras literárias e artísticas por ele escolhidas não me interessam porque remeteriam ao romance analítico do Fundador.
Interessa-me saber a que servem de prova e o que lhes permite servir de... prova. Ora, em sua ampla generalidade, essas figuras servem para provar isto: existe sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece evidente, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino. Tais figuras não são o material com que a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura. Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante. Em suma, se o médico Freud interpreta fatos "anódinos", desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses "exemplos" sirvam à sua demonstração, é porque eles são em si mesmos testemunhos de um determinado inconsciente" - (p.10-1).
*
"Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética. Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios.
Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo. (...) o romancista de Os miseráveis nos mergulha num esgoto que diz tudo, como um filósofo cínico, e reúne em pé de igualdade tudo aquilo que a civilização utiliza e rejeita, suas máscaras e insígnias, bem como seus utensílios cotidianos. O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos. Ele afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa ou o esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro, como farão o sonho ou o ato falho - mas também a mercadoria marxiana -, desde que sejam primeiro transformados em elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria" - (p.36-8).
*
"O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabal...ho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do Inconsciente" - (p.41).
 
*
"a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho - bobo ou sujo por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da "fantasia", que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica" - (p.47-8).
 
(O inconsciente estético. Jacques Ranciere. São Paulo: Editora 34, 2009).



terça-feira, 27 de agosto de 2013

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

 
"Em meus anos mais vulneráveis da juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que tiver vontade de criticar alguém - ele disse -, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.
Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais. Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados. A mente anormal detecta e se apega muito rapidamente a essa qualidade quando ela se manifesta em alguém normal, e por isso me ocorreu de, na faculdade, me acusarem injustamente de ser um homem político, só porque eu guardava as angústias secretas de homens extravagantes e desconhecidos (...). Abster-se de julgamentos é questão de esperança infinita" - (p.65-6).
*
"Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida, como se ele guardasse alguma semelhança com aquelas máquinas intrincadas que registram terremotos a quilômetros de distância. Essa receptividade nada tinha a ver com a frouxa vulnerabilidade que muitos qualificam de "temperamento criativo" - era um talento extraordinário para a esperança, um prontidão romântica tal como nunca encontrei em ninguém e dificilmente tornarei a encontrar. Não - Gatsby saiu-se bem no final; é aquilo que estava à espreita em Gatsby, a espécie de poeira imunda que flutuava na superfície de seus sonhos, que matou temporariamente meu interesse pelas tristezas inúteis e pelas alegrias fugazes dos homens" - (p.66).
As quatro versões de Gatsby no cinema.
"Ele sorriu de forma compreensiva - muito mais que compreensiva. Era um daqueles raros sorrisos com o ar de eterno consolo, do tipo que você só encontra umas quatro ou cinco vezes na vida. Parecia encarar a eternidade do mundo inteiro por um instante, e então se concentrava em você com uma irresistível tendência a seu favor. Parecia compreendê-lo até o ponto em que você desejava ser compreendido, confiar o tanto que você gostaria de confiar em si mesmo, e assegurá-lo de haver transmitido exatamente a impressão que, em seu melhor momento, você desejaria passar" - (p. 111).
*
"Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo" - (p.158).
 
(In. O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011).
 


Diário de luto - Roland Barthes (trechos)

"Irritação. Não, o luto (a depressão) é bem diferente de uma doença. De que desejam curar-me? Para encontrar que estado, que vida? Se há trabalho, aquele que nascer dele não será um ser comum, mas um ser moral, um sujeito do valor - e não da integração" (p.8).
*
"Solidão = não ter ninguém em casa a quem dizer: voltarei a tantas horas, ou a quem poder telefonar (dizer): pronto, cheguei" - (p.42).
*
"Meu espanto - e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no coração do amor" - (p.63).
*
"Frio, noite, inverno. Estou aquecido, porém sozinho. E compreendo que será preciso habituar-me a estar naturalmente nesta solidão, nela agir, trabalhar, acompanhado, colado à "presença da ausência" - (p. 67).
"Não posso suportar que reduzam - que generalizem - meu pesar (...) é como se o roubassem de mim" - (p.69).
*
"O Irremediável é, ao mesmo tempo, o que me dilacera e o que me contém..." - (p.87).
*
"Recomeçar sem descanso. Sísifo" - (p.136).
*
Em mim, lutam a morte e a vida (descontinuidade e como que ambiguidade do luto) (quem vencerá?) - mas, por enquanto, uma vida boba (pequenas ocupações, pequenos interesses, pequenos encontros).
O problema dialético é que a luta desemboque numa vida inteligente, e não uma vida-écran" - (p. 147).
*
"Luto.
Impossibilidade - indignidade - de confiar a uma droga - sob pretexto de depressão - o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma "possessão" - uma alienação (algo que nos torna estrangeiros) - enquanto ele é um bem essencial, íntimo..." - (p. 159).
*
"Habito minha tristeza e isso me faz feliz.
Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" - (p.169).
*
"Continuo (dolorosamente) espantado de poder - finalmente - viver com minha tristeza, o que quer dizer, literalmente, que ela é suportável. Mas - sem dúvida - é porque posso, bem ou mal (isto é, com o sentimento de não o conseguir) dizê-la, fraseá-la. Minha cultura, meu gosto pela escrita me dá esse poder apotropaico, ou de integração: integro, pela linguagem.
Minha tristeza é inexprimível mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra "intolerável" realiza, imediatamente, certa tolerância" - (p. 171).
 
(In. Diário de Luto. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2011).
 


Fahrenheit 451 - Ray Bradbury (trechos favoritos)


"O rosto de Clarisse, agora voltado para ele, era um frágil cristal leitoso dotado de uma luz suave e constante. Não era a luz histérica da eletricidade, mas... o quê? A luz estranhamente aconchegante e rara e levemente agradável de uma vela. Certa vez, quando criança, durante uma queda de energia, sua mãe havia encontrado e acendido uma última vela e houve um breve instante de redescoberta, de uma iluminação tal que o espaço perdera suas vastas dimensões e se fechara aconchegante em torno deles, mãe e filho, a sós, transformados, torcendo para que a energia não voltasse tão cedo..." - (p.27).
"Lançou de novo o olhar à parede. Como o rosto dela se parecia também com um espelho! Impossível. Pois quantas pessoas seriam capazes de refletir a luz de uma outra? As pessoas quase sempre eram - procurou uma comparação, encontrou-a em seu ofício - archotes, que ardiam até se extinguir. Quantas pessoas existiam cujos rostos eram capazes de captar e devolver a expressão da outra, seus pensamentos e receios mais íntimos?...Quantos minutos haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco?"- (p.31).
"Escuridão. Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras a si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta" - (p. 32).
"Bem, afinal de contas, estamos na era do lenço descartável. Assoe seu nariz numa pessoa, encha-a, esvazie-a, procure outra, assoe, encha, esvazie. Cada um está usando as fraldas da camisa do outro. Como torcer para o time da casa quando não se tem nem um programa nem sabemos os nomes? Por falar nisso, que camisa estão usando quando entram em campo?" - (p.38).
"Você não é como os outros. Eu vi alguns; eu sei. Quando eu falo, você olha para mim. Ontem à noite, quando eu disse uma coisa sobre a lua, você olhou para a lua. Os outros nunca fariam isso. Os outros continuariam andando e me deixariam falando sozinha. Ou me ameaçariam. Ninguém tem mais tempo para ninguém. Você é um dos poucos que me toleram. É por isso que eu acho tão estranho você ser bombeiro. É que, de algum modo, não combina com você" - (p. 45).
"Quem dera pudessem ter levado sua mente para uma lavagem a seco, esvaziado seus bolsos, e a tivessem vaporizado, limpado e remontado e a devolvessem pela manhã. Quem dera..." - (p.37).
"-Por que você não está na escola? Todo dia eu a vejo vagando por aí.
- Ah, eles não sentem a minha falta - disse ela. - Dizem que sou antissocial. Não me misturo. É tão estranho. Na verdade, eu sou muito social. Tudo depende do que você entende por social, não é? Social para mim significa conversar com você sobre coisas como esta. - Ela chacoalhou algumas castanhas que haviam caído da árvore do jardim da frente. - Ou falar sobre como o mundo é estranho. É agradável estar com as pessoas. Mas não vejo o que há de social em juntar um grupo de pessoas e depois não deixá-las falar, você não acha? (...) nunca fazemos perguntas; pelo menos a maioria não faz; eles passam as respostas para você, pim, pim, pim, e nós, sentados ali, assistindo a mais quatro horas de filmes educativos. Isso para mim não é nada social. Parece um monte de funis e muita água jorrando da torneira, entrando por um lado e saindo pelo outro, e depois eles vêm nos dizer que é vinho, quando não é" - (p.52).
"Como uma pessoa fica tão vazia?, perguntou a si mesmo. Quem esvazia a gente?" - (p.68).
"- Me deixe em paz - disse Mildred. - Eu não fiz nada.
- Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?" - (p.76).
"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra (...). Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com os "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com o reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o temerim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido" - (p.86-7).
"Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes, porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com a minha mulher; ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido" - (p.109).
"Eu me agarrei firme ao mundo algum dia. Já pus um dedo nele; é um começo" - (p.197).
 
(In. Fahrenheit 451. Ray Bradbury. São Paulo: Globo, 2012).
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Sobre o livro:
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O filme de Truffaut no youtube: