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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morra, amor - Ariana Harwicz

 

"Quero ir ao banheiro desde que acabou o almoço, mas é impossível fazer qualquer coisa além de ser mãe. E dá-lhe choro, chora, chora, chora, vou ficar doida. Sou mãe, pronto. Eu me arrependo, mas nem posso dizer. Para quem. Para ele, sentado os meus joelhos, metendo a mão no meu prato com seus restos frios, brincando com o osso de galinha? Não. Deixa isso que você engasga. Jogo um biscoitinho para ele. Ele me devolve. Tenho a boca cheia da sua saliva, de migalhas. Tenho tomate grudado no braço. Não o deixo terminar e lhe meto outro biscoito, ele se entala. Não me preocupo com o que possa pensar de mim. Eu o trouxe ao mundo, já é o suficiente. Sou mãe em piloto automático. Choraminga e é pior do que o choro. Eu o levanto, lhe ofereço um sorriso falso, aperto os dentes. Mamãe era feliz antes do bebê. Mamãe se levanta todos os dias querendo fugir do bebê e ele chora mais. Quero ir ao banheiro, mas esse cacarejo interminável, essa queixa, faz com que seja impossível. Que quer de mim. O que você quer? Não me deixa deixá-lo. Arqueia-se. Ontem tive que ir fazer com ele, hoje prefiro fazer na roupa. Ligo para o meu marido. Preciso de reforços. Enquanto ligo eu o levo pendurado em um ombro, vai me destroncar, gruda algo viscoso no meu umbigo. Atende, por favor, atende. Oi, escuta, amor, você precisa vir não aguento mais. Não, não dá para demorar tanto, você tem que vir já, você não está entendendo, não está querendo entender, não aguento até de noite, e desligo na cara dele porque ele se faz de desentendido; que pelo menos se assuste e venha. E ficamos rodando enredados no cabo para o caso de ele ligar e o levo até a porta para ver se passa alguém a quem eu o possa dar. Mas não há vizinhos como os que preciso. Há bastardos. E se eu bater n porta da velha que vive com as janelas gradeadas e suas tartarugas agressivas? Certamente poderia distraí-la, seria como ter uma televisão, como ir ao cinema. Ninguém passa, ninguém o quer, nada se mexe, ar parado dos diabos. Eu o deixo largado aos meus pés. Ele se retorce, se estica, grita comigo, arranca a fralda e desabotoa meus sapatos, come a tira de couro. Eu o olho como um caranguejo olha para um menino. Um carro de corrida passa com uma família. Têm a cara para fora das janelinhas. É noite e continuo apoiada na porteira, me vejo grávida, quando achava que levava dentro de mim uma gárgula. Eu me vejo parindo, expulsando. Picam a gente, tenho que entrar e acender a lareira, tirar o almoço repleto de formigas vermelhas levando comida para o inverno que vem. O pai nem piscou. Eu o levo nas costas e entro com ele suado e faminto, as unhas afiadas. Tenho que fazer macarrão ou sopa para ele, ir pegar alguma verdura na horta do vizinho, mas me dá leseira. Ser mãe é tão pouco excitante. Morro de vontade. Uma bola se forma dentro de mim. Eu o deixo cair, cruzo as pernas. Corro e me fecho. Chora como os asiáticos nos enterros rasgando as vestimentas. Não aguento e abro a porta para ele, penso quão asqueroso é isso tudo" - (pp.89-90).
(In. Morra amor. Ariana Harwicz. São Paulo: Editora Instante, 2019).

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