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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Lavoura arcaica - Raduan Nassar (II)

"...a razão é pródiga, qwuerida irmã, corta em qualquer direção, consente qualquer atalho, bastando que sejamos hábeis no manejo dessa lâmina; para vivermos nossa paixão, despojemos nossos olhos de artifúcios, das lentes de aumento e das cores tormentosas de outros vidros..." (p.132).
*
"estou banhado em fel, Ana, mas sei como enfrentar tua rejeição, já carrego no vento do temporal uma raiva perpétua, tenho o fôlego obstinado, tenho requintes de alquimista, sei como alterar o enxofre com a virtude das serpentes, e, na caldeira, sei como dar à fumaça  que sobe da borbulha a frieza da cerração das madrugadas; vou cultivar o meu olhar, plantar nele uma semente que não germina, será uma terra que não fecunda, um chão caapaz de necrosar como as geadas as folhas das árvores...." - (p.137).
 "...e quanto mais engrossam a casca, mais se torturam com o peso da carapaça, pensam que estão em segurança mas se consomem de medo, escondem-se dos outros sem saber que atrofiam os próprios olhos, fazem-se prisioneiros de si mesmos e nem sequer suspeitam, trazem na mão a chave mas se esquecem que ela abre, e, obsessivos, afligem-se com seus problemas pessoais sem chegar à cura..." -(p.145).
"- Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo (...).
- É muito estranho o que estou ouvindo.
- Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente" - (p. 157-163).
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"-Corrija a displicência dos teus modos de ver: é forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano tomaria por ambiente hostil.
-Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo;de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida"- (p.164-5).
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"- O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina" - (p.166).
"Meu pai sempre dizia que o sofrimento melhora o homem, desenvolvendo seu espírito e aprimorando sua sensibilidade; ele dava a entender que quanto maior fosse a dor tanto ainda o sofrimento cumpria sua função mais nobre; ele parecia acreditar que a resistência de um homem era inesgotável. Do meu lado, aprendi bem cedo que é difícil determinar onde acaba nossa resistência, e também muito cedo aprendi a ver nela o traço mais forte do homem; mas eu achava que, se da corda de um alaúde - esticada até o limite - se podia tirar uma nota afinadíssima (supondo-se que não fosse mais que um arranhado melancólico e estridente) ninguém contudo conseguiria extrair nota alguma se a mesma fosse distendida até o rompimento" - (p.171-2).
(In. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Lavoura arcaica - Raduan Nassar (I)

"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violácio, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo..." - (p.7).
"...meu irmão chorava a minha demência, discretamente, longe de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho da lúcida escuridão; eu quis dizer para ele "tempere nesta mão a viz potente, a ternura contida, a palavra certa, corra com ela meus cabelos, afague-os, proteja minha nuca..." - (p. 73-4).
"Como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal para salgar, a carne e o vinho, contar a história de um faminto?" - (p.84).
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"...quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!" - (p.88).
"...nenhum espaço existe se não for fecundado, como quem entra na mata virgem e se aloja no seu interior, como quem penetra num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe..." - (p. 87).
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"...que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória..." - (p.97).
"Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome, explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos" gritei de minha boca escancarada, expondo a textura da minha língua exuberante..." - (p. 107).
"...eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!) e que fora de mim eu não conhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva..." (p.109).
"...eu não sabia que o amor requer vigília: não há paz que não tenha um fim, supremo bem, um termo, nem taça que não tenha um fundo de veneno; era a minha sabedoria corrente, mas que frivolidade a minha, alguém mais forte do que eu é que puxava a linha e, menino esperto e sagaz, eu tinha caído na propalada armadilha do destino: enfiou seus longos braços no fruto do meu saco, pinçou nos finos dedos o fundo, e súbito, num fechar d´olhos, virou meu doce mundo pelo avesso" - (p. 114).
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"...desde menino, eu não era mais que uma sombra feita à margem do destino, também eu complicava os momentos de um trajeto: construía uma trilha sinuosa com grãos de milho até a peneira, embora a linha que decidisse, escondida sob a areia, corresse esticada numa só reta; por que então esses caprichos, tantas cenas, empanturrar-nos de expectativas, se já estava decidida a minha sina?" - (p.117).
(In. Lavoura Arcaica. Raduan Nassar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Carta de Karl Marx para Jenny

"Meu coração bem-amado:
Escrevo-te, porque estou só e me perturba sempre dialogar contigo na minha cabeça sem que o saibas e me possas responder.
Por má que seja a tua fotografia, presta-me esse serviço e compreendo agora como as efígies da mãe de Deus mais odiosas, as virgens negras, podem encontrar admiradores incansáveis. Nenhuma dessas imagens foi jamais tão beijada, olhada e venerada que a tua foto, que não reflecte de modo algum a tua querida, terna e adorável dolce figura. Mas os meus olhos, por ofuscados que estejam pela luz e tabaco, ainda a podem reproduzir não só em sonhos, mas também acordados.
Tenho-te, deslumbrante, diante de mim. Toco-te e beijo-te, da cabeça aos pés. Caio de joelhos na tua frente e gemo: "I love you, minha senhora... Amo-a de verdade muito mais que o Mouro de Veneza jamais amou..."
O meu amor por ti, assim que te afastas apresenta-se-me pelo que é: um gigante que absorve toda a energia do meu espírito, toda a substância do meu coração. Sinto-me de novo um homem, porque tenho uma grande paixão..."-
( In: Jenny, a mulher de Karl Marx - Françoise Giroud).

O perfume - Patrick Suskind (IV)

"Que essa massa humana durante dezoito anos o havia oprimido como uma atmosfera prenhe de tempestade, só se tornava claro para Grenoille agora que começava a escapar disso. Até então, acreditava que era do mundo em geral que ele precisava escapar. Não era, porém, do mundo, mas das pessoas. Parecia que num mundo vazio de gente até dava para viver (p. 104).
"E ele fugia avante, reagindo cada vez mais sensivelmente ao cheiro do homem, que se tornava cada vez mais raro. Assim, o nariz conduziu-o para regiões cada vez mais remotas do país. afastando-o cada vez mais dos seres humanos e empurrando-o com ímpeto cada vez maior na direção do pólo magnético da maior solidão possível (p. 106).
"Sabe-se de homens que procuram a solidão: penitentes, fracassados, santos ou profetas. Retiram-se preferencialmente para desertos, onde vivem de gafanhotos e mel silvestre. Algumns vivem também em cavernas, claustros ou em ilhas remotas, ou se enfiam - algo mais espetacular - em gaiolas penduradas em varas, no ar. Fazem isso para estar mais perto de Deus. Mortificam-se com a solidão e através dela se penitenciam. Agem na crença de levarem uma vida que agrade a Deus. Ou ficam esperando durante meses ou até anos para que, na solidão, lhes advenha uma mensagem divina que, depois, querem divulgar o quanto antes entre os homens.
Nada disso adequava-se a Grenoille. Não tinha em mente nada parecido com "Deus". Não se penitenciava nem esperava qualquer inspiração do alto. Só para a sua própria e única diversão é que se retraía, só para estar mais perto de si mesmo. Banhava-se em sua própria existência, não desviado por nada mais, e achava isso maravilhoso. Jazia na gruta de rochedos como o seu próprio cadáver, como o cadáver de si mesmo. mal respirando, o coração mal batendo - e, no entanto, vivia tão intensa e desvairadamente como nenhum farrista jamais viveu no mundo" (p. 109-110).
"Quase não saía. Da vida corporativa, dos encontros regulares dos companheiros e dos desfiles dos artesãos, ele participava com frequencia suficiente para que nem ausência nem presença chamassem atenção. Não tinha amigos nem conhecidos, mas tomava muito cuidado no sentido de não ser considerado arrogante nem marginal. Deixava que os outros oficiais considerassem a sua companhia aborrecida e pouco interessante. Era mestre na arte de gerar monotonia e de parecer desajeitado - mas não exagerando a ponto de ficarem gozando à sua custa ou de virem a usá-lo como vítima das pesadas brincadeiras da corporação. Deixavam-no em paz, e ele não queria outra coisa" - (p.158).
"A fragrância das pessoas em si era, para ele, indiferente. Tratava-se de uma fragrância que ele podia imitar suficientemente bem com substitutivos. O que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram as suas vítimas" (p.164).
"O que ele sempre havia desejado, ou seja, que as outras pessoas o amassem, tornava-se, no instante do seu êxito, insuportável, pois ele mesmo não as amava, mas as opdiavas. E de repente soube que jamais encontraria satisfação no amor, mas tão somente no ódio, no odiar e no ser odiado.
Mas o ódio que sentia pelas pessoas permaneceu sem eco. Quanto mais ele as odiava nesse momento, tanto mais elas o adoravam, pois nada percebiam dele senão a sua aura, a sua máscara odorífera, o seu perfume roubado, e este era, de fato, divinamente bom.
Agora ele teria preferido eliminá-las da face da terra, essas pessoas estúpidas, fedorentas, erotizadas, exatamente como outrora, no país da sua alma negra como carvão, eliminara os cheiros estranhos. E desejava que notassem o quanto ele as odiava e que por isso, por causa desse único sentimento real, elas odiassem de volta e, por sua vez, liquidassem com ele, como afinal, originalmente prtendiam. Uma vez na vida ele gostaria de se externar (...). Uma vez, uma única vez, queria ser considerado em sua verdadeira existência e receber de outra pessoa uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro, o ódio" (p.205-6).
"Tinha poder para tanto. Um poder que era mais forte que o poder do dinheiro, do terror ou da morte: o insuperável poder de fazer as pessoas amarem. Só uma coisa esse poder não podia: não podia fazer com que ele mesmo cheirasse para si próprio. E ainda que chegase a aparecer diante do mundo, através do perfume, como um Deus - se ele não podia cheirar a si mesmo e, por isso, jamais saberia quem ele era, - nada disso importava, não importava o mundo, ele própriom o seu perfume" - (p.216).
 
(In: Perfume - História de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985).

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A quem interessar possa - Caio Fernando Abreu

Eu não tenho culpa. Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo, que não entenderia nunca. Você também não tem culpa, vou chamá-lo de você porque nin-guém nunca ficará sabendo, nem era preciso, a culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconte-ceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem nin-guém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no mo-mento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um mo-mento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes es'paços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os te-lhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-Ias assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempre como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa
Lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos dis-tante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.
(In: Inventário do irremediável. Editoras Salinas, 1969, p.21).




quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Os cavalos brancos de Napoleão - Caio Fernando Abreu

A princípio os cavalos eram mansos. Inofensivos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez estivesse desde sempre, pois convenhamos, ver cavalos, e ainda por cima brancos -não é muito normal. E quem sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que não teriam sido propriamente um mal: Napoleão os teria trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de repente vieram à tona. Como se aguardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E prudentes, também.
Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional. Sua vida se arrastava juridicamente, como se estivesse destinado à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refeições, todos dias sempre se desenrolavam movimentadíssimos julgamentos. Dos quais ele era o réu. Acusado de não dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha. Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes colaboravam criados mais. Íntimos, sempre concordando com a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava derrotado. Um derrotado em potencial, pois ele viu pela primeira vez.
Deu-se nas férias, na praia, quando olhou para as nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos ainda mais exatamente, brancos -talvez tivesse mesmo a ver com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria visto camelos? ou touros, se seu nome fosse Juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância. Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que cutucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só, Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.
Como ele insistisse, afastou os raybans e deu urna espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito de cavalos. Tranqüilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grande equinidade absoluta nos movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação. Em breve os cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha Christie.
Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém. Afundou neles, corpo despregado i da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos, relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram. De volta à areia, Napoleão olhou com certa superioridade para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza tão oposta à brancura dos cavalos.
Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr-do-sol para seus furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afagar, focinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito, jamais o encontravam sozinhos, embora, imaculadamente brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-Ihes o sexo. E que importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia dormir com eles(as), portanto era indiferente sua sexualidade. Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama, na tranqüilidade de nada exigir em troca. Tranqüilo, então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-Ihe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou -um pouco por ser demasiado católica, medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.
Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração. Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos. Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.
Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do tribunal num dia em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não os ver, traição, opção terrível, entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleão começou a falar cada vez mais baixo, mais lento, até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam.
O quê? foi a pergunta que ele se fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados?
Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo assim acompanharam-no até a porta de casa instalados no banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas mãos. Nesse instante, a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou acompanhado de Marta.
AMIGO (carinhoso e complacente) -Não há de ser nada, Napoleão. Isso acontece até com os melhores. Você não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.
MART A (pousando a mão no ombro de Napoleão) -Afinal, foi a primeira vez, meu bem.
NAPOLEÃO (encarando-os, agradecido) –Vocês viram, então? Viram? Ah, eu não sei como explicar Parecia tudo tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.
AMIGO -Isso acontece, Napoleão.
MARTA- Não se desespere, querido.
AMIGO -Você não teve culpa.
MARTA -Você estava nervoso.
NAPOLEÃO (obsessivo) -Mas vocês repararam na atitude deles? Repararam mesmo?
AMIGO (conciliador) -Natural que ficassem revoltados, Napoleão. Afinal, são parentes, clientes, pagaram os tubos. Queriam um serviço bem feito.
MARTA- Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de habeas-corpus.
NAPOLEÃO (erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas-corpus? Mas eu estou falando é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!
Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no dia seguinte. Ainda indiferentes remotos. A ira cresceu de novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio. Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou mulher?
Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra -toda a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes para descobrir quando devia ou não se ofender. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranóico, comunista, ateu, hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.
Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques -submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele.
Consistia em permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos reais. Exclusivamente pretos, e os mais cavalares possíveis, isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada. Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos, os criados, os colegas -todos cresciam em exigências, magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele, recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.
Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais arde, os enfermeiros comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo mesmo, ninguém ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inanição, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou chamar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inÚteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência. Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada, a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e prudentemente feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pêlo, cabelos ao vento, galopando em direção ao Crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.

(In: Inventário do Irremediável. Editoras Salinas, 1969, p.13).


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Para as assombrações, desnecessária é a alcova - Emily Dickinson

 
"Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa -
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.

Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.

Mais seguro é galopar um cemitério
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.

O "eu", por trás de nós oculto,
É muito mais assustador,
E um assassino escondido em nosso quarto,
Dentro os horrores, é o menor".

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O que vemos, o que nos olha - Didi-Huberman

"O que vemos só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-s...
e em dois. Inelutável paradoxo - Joyce disse (...) num famoso parágrafo do capítulo em que se abre a trama gigantesca de Ulisses:
"Inelutável modalidade do vísivel; pelo menos isso se não mais, pensado através dos meus olhos. Assinatura de todas as coisas estou para ler (...). Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode por os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê".
Eis portanto proferido, trabalhado na língua, o que imporia a nossos olhares a inelutável modalidade do visível: inelutável e paradoxal, paradoxal porque inelutável".
 (In: Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, p.29).

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A disciplina em Foucault

"De uma maneira global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas (...) O que é próprio das disciplinas, é que elas tentam definir em relação às multiplicidades uma tática de poder que responde a três critérios: tornar o exercício do poder o menos custoso possível (economicamente, pela parca despesa que acarreta; politicamente, por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa invisibilidade, o pouco de resistência que suscita); fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível, sem fracasso, nem lacuna; ligar enfim esse crescimento 'econômico' do poder e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exercem (sejam os aparelhos pedagógicos, militares, industriais, médicos), em suma, fazem crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema".
(In: Michel Foucault. Vigiar e punir: o nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1977, p.191).

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (III)

Para o pequeno Grenoille, o estabelecimento de Madame Gailard foi uma benção. Provavelmente não teria sobrevivido em nenhum outro lugar. Mas aí, junto a essa mulher tão pobre por dentro, deu-se bem. Quem, como ele, tinha sobrevivido ao proóprio nascimento no lixo não se deixava expulsar tão facilmente do mundo. Era capaz de comer sopa aguada dias e dias, sobrevivia com o leite mais diluído, suportava os legumes e as carnes mais podres. Ao longo da infância, sobreviveu ao sarampo, disenteria, varicela, cólera, a uma queda de seis metros num poço ea queimadura no peito com água fervente. É verdade que trazia disso cicatrizes, arranhões, feridas e um pé meio aleijado que o fazia capengar, mas sobreviveu. Era duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada ano passado. Precisava de um mínimo de alimentação e vestimenta para o corpo. Para a alma, não precisava de nada. Calor humano, dedicação, delicadeza, amor - (...) eram completamente dispensáveis para Grenoille. Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver. O grito depois do seu nascimento, o grito sobre a mesa de limpar peixe, o grito com o que ele se tinha feito notar e e levado a mãe ao cadafalso, não fora um grito instintivo de compaixão e amor. Fora bem pensado, quase se poderia dizer um grito maduramente pensado e pesado, com que o recém-nascido se decidira contra o amor e, mesmo assim, a favor da vida. Nas circunstâncias, isto era impossível sem aquilo e, se a criança tivesse exigido ambos, então teria, sem dúvida, fenecido miseravelmente. Também teria podido, no entanto, escolher naquela ocasião a segunda possibilidade que lhe estava aberta, calando e legando o caminho do nascimento para a morte sem desvio pela vida, e assim teria poupado a si e ao mundo uma porção de desgraças. Mas, para se omitir tão humildemente, teria sido necessário um mínimo de gentileza inata, e isto Grenoille não possuía. Foi um monstro desde o início. Ele se decidiu em favor da vida por pura teimosia e maldade.
Obviamente, não se decidiu, é claro, como se decide um adulto, usando razão e experiência mais ou menos grandes, para escolher entre as diferentes opções. Decidiu-se de um modo vegetativo, assim como um feijão jogado fora decide se deve germinar ou deixar para lá.
Ou como um carrapato em cima de uma árvore, ao qual a vida não oferece outra coisa senão uma hibernação permanente (...).
Esse carrapato era Grenoille. Vivia encapsulado em si mesmo, à espera de melhores tempos. Ao mundo não dava senão as suas fezes; nenhum sorriso, nenhum grito, nenhum brilho nos olhos, nem sequer um cheiro próprio. Qualquer outra mulher teria repelido esse menino monstruoso. Mas não Madame Gaillard. Ela não sentia que ele não tinha chiero nenhum, e ela não esperava qualquer manifestação afetiva dele, pois a sua própria afetividade estava bem lacrada".
(In: Perfume - a história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.24-6).

domingo, 12 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (II)

"...Não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou fenecer, que não fosse acompanhada de fedor.
Naturalmente, em Paris o fedor era maior, pois Paris era a maior cidade da França. E em Paris, por sua vez, um lugar havia onde o fedor imperava de modo infernal, entre a Rue aux Fers e a Rue de la Ferronnerie, ou seja, no Cimetière des Innocents. Ao longo de oitocentos anos, tinham sido para ali trazidos os mortos do hospital Hôtel-Dieu e das comunidades eclesiais das redondezas; ao longo de oitocentos anos, carretas traziam ali, dia após dia, cadáveres às dúzias, jogados em longas covas; ao longo de oitocentos anos, acumulados nas criptas e ossários, camadas e mais camadas de ossinhos. E só mais tarde, às vésperas da Revolução Francesa, depois que algumas das covas haviam desabado rigorosamente e o fedor do saturado cemitério havia levado os moradores das cercanias não mais a meros protestos, mas a verdadeiros levantes, é que ele foi finalmente fechado e transferido, tendo os milhões de ossos e crânios sido enterrados nas catacumbas de Montmartre e, no seu lugar, surgiu uma praça com uma feira livre.
Bem ali, no lugar mais fedorento de todo o reino, foi que nasceu Jean Baptiste Grenoille, a 17 de julho de 1738. Era um dos dias mais quentes do ano. O calor pairava como chumbo por todo o cemitério e empurrava para as ruas vizinhas os gazes da putrefação que cheiravam a uma mistura de melões podres e chifre queimado. Quando as dores começaram, a mãe de Grenoille estava numa peixaria da Rue aux Fers e escamava pescadas, as quais acabara de viscerar. Os peixes, presumidamente recolhidos do Sena naquela manhã, já fediam tanto que o seu fedor se sobrepunha ao dos cadáveres. Mas a mãe de Grenoille não percebia nem o cheiro dos peixes nem o dos cadáveres, pois o seu nariz era praticamente insensível a odores e, além disso, doía-lhe o corpo, e a dor tirava-lhe toda sensibilidade para sensações externas. Queria só uma coisa: que a dor cessasse, e deixar para trás o quanto antes o horror do parto. Era o seu quinto. Os quatro anteriores ou semimortos, pois a carne ensaguentado que dela saíra não se diferenciava muito das vísceras dos peixes que lá estavam atiradas pelo chão, e também não vivia muito mais tempo, e à noite era jogado tudo junto em carretas e levado para o cemitério ou lá para baixo do rio. Assim deveria também ocorrer hoje. A mãe de Grenoille era uma mulher ainda jovem, nos meados dos vinte anos, que além de gota e de sífilis e de uma leve tísica, não tinha nenuma doença grave; esperava ainda viver muito tempo, talvez uns cinco ou dez anos, e até um dia casar e ter de verdade filhos, como a honrada esposa de um artesão enviuvado ou coisa parecida...
A mãe de Grenoille queria que tudo já estivesse acabado. E quando as dores se tornaram mais intensas, ela se acocorou debaixo da mesa de limpar peixe e lá pariu, como já das quatro outras vezes, e cortou com a faca de peixe o cordão dessa "coisa recém-nascida". Em seguida, porém, por causa do calor e do mau cheiro, que ela só percebia como algo insuportável, anestésico (...) ela desmaiou, caiu de lado, resvalou debaixo da mesa para o meio da rua e lá ficou, com a faca na mão (...); lentamente, ela recobra os sentidos.
O que lhe teria acontecido? Nada. O que estaria fazendo com a faca? Nada. De onde viria o sangue de sua saia? Dos peixes.
Ela se levanta, joga fora a faca e vai se lavar.
Nesse instante, contrariando as expectativas, a "coisa recém-nascida" começa a chorar debaixo da mesa de limpar peixe. Procura-se, encontra-se o bebê num enxame de moscas e entre vísceras e cabeças de peixe, é puxado para fora. Ex-officio ele é entregue a uma ama, a mãe é presa. E porque ela é ré confessa e sem delongas reconhece que por certo teria deixado a coisa perecer, como aliás já fizera com quatro outros, é processada, condenada por múltiplo infanticídio e, poucas semanas mais tarde, é decapitada na Place de Grève".
(In: O perfume - história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.11-3).


Fragmentos de Passagens - Walter Benjamin

"A vida só tem um encanto verdadeiro: é o encanto do Jogo. Mas e se for indiferente para nós ganhar ou perder?"(p.421).
*
"A reforma da consciência consiste apenas em despertar o mundo ...do sonho de si mesmo" (citando Karl Marx em carta à Ruge Kreuzenach, em set de 1843, p. 499).
*
"A moderna produção em massa destrói o senso artístico do trabalho e a idéia de obra: temos produtos, não temos mais obras" (citando Balzac, p. 805).
(Passagens. 1 ed. Minas Gerais: UFMG, 2006).

Fraz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte - Walter Benjamin

"No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredí-las sem o saber. Contudo, por mais dolorosamente que elas afetem o homem que não tem consciência de qualquer transgressão, sua intervenção, no sentido jurídico, não é ao acaso, mas destino, em toda a sua ambiguidade (...). O mesmo ocorre com a instância que submete Kafka à sua jurisdição. Ela remete a uma época anterior a lei das doze tábuas, a um mundo primitivo, contra o qual a instituição do direito escrito representou uma das primeiras vitórias. É certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais limitadamente" (p.140).
*
"A beleza só aparece no mundo de Kafka nos lugares mais obscuros: entre os acusados, por exemplo. É um fenômeno notável, de certo modo científico...Não pode ser a culpa que os faz belos...não pode ser também o castigo justo que desde já os embeleza...só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere a seu corpo. Depreendemos de O processo que esse procedimento judicial não deixa, via de regra, nenhuma esperança aos acusados, mesmo quando subsiste a esperança de absolvição. É talvez essa desesperança que faz com que os acusados sejam os únicos personagens belos na galeria kafkiana" (p.140).
*
"Oh não, disse ele, nosso mundo é apenas um mal humor de Deus, um de seus maus dias. Existiria então esperança, fora desse mundo de aparências que conhecemos? Ele riu: há esperança suficiente, esperança infinita,  mas não para nós. Essas palavras estabelecem um vínculo com aqueles personagens singulares de Kafka, os únicos que fugiram do meio familiar e para os quais talvez ainda exista esperança. Esses personagens não são os animais, e nem sequer os seres híbridos ou imaginários, (...). Não é por acaso que é exatamente na casa de seus pais que Gregor Samsa se transforma num inseto..." (p.142).
*
"Em Kafka as sereias silenciam. Talvez porque a música e o canto são para ele uma expressão ou pelo menos um símbolo para a fuga. Uma esperança daquele pequeno mundo intermediário, ao mesmo tempo inacabado e cotidiano, ao mesmo tempo consolador e absurdo, no qual vivem os ajudantes. Kafka é o rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo. Ele chegou ao palácio de Potemkin, mas acabou encontrando em seu porão Josefine, aquela ratinha cantora, que ele descreve assim: ´existe nela algo de uma infância breve e pobre, algo de uma felicidade perdida e irrecuperável, mas também algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensíveis mas reais, e que ninguém pode extinguir´" (p.144).
*
"...o homem de hoje vive em seu corpo como o K ao pé do castelo: ele desliza fora dele e lhe é hostil. Pode ocorrer que o homem acorde um dia e verifique que se transformou em um inseto. O país de exílio - o seu exílio - apoderou-se dele. É o ar dessa aldeia que sopra no mundo de Kafka" (p.151-2).
*
"A porta da justiça é o estudo. Mas Kafka não se atreve a associar esse estudo as promessas que a tradição associa ao estudo da Torá. Seus ajudantes são bedéis que perderam a Igreja, seus ajudantes são estudantes que perderam a escrita. Ela não se impressiona mais com a "viagem alegre e vazia". Contudo Kafka achou a lei na sua viagem; pelo menos uma vez, quando conseguiu ajustar sua velocidade máxima desenfreada a um passo épico, que ele procurou durante toda a sua vida. O segredo dessa lei está num dos seus textos mais perfeitos, e não apenas por se tratar de uma interpretação. 'Sancho Pança, que aliás nunca se vangloriou disso, conseguiu no decorrer dos anos afastar de si o seu demônio, que ele mais tarde chamaria de Dom Quixote, fornecendo-lhe, para ler de noite e de madrugada, inúmeros romances de cavalaria e de aventura. Em consequência, esse demônio foi levado a praticas as proezas mais delirantes, mas que não faziam mal a ninguém, por falta do seu objeto predeterminado, que deveria ter sido o próprio Sancha Pança. Sancho Pança, um homem livre, seguia Dom Quixote em suas cruzadas com paciência, talvez por um certo sentimento de responsabilidade, daí derivando até o fim de sua vida um grande e útil entretenimento'.
Sancho Pança, tolo sensato e ajudante incapaz de ajudar, mandou na frente o seu cavaleiro. Bucéfalo sobreviveu ao seu. Homem ou cavalo, pouco importa, desde que o dorso seja aliviado do seu fardo" (p.164).
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 137-64).


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O perfume - Patrick Suskind (1)

"As pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Com esta. ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas".
(O perfume. Patrick Suskind. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 8 - epígrafe).

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Hannah & Heidegger

"Querida señorita Arendt:
tengo que volver a su lado la tarde, de nuevo, dirigiendome a su corazón.
Todo debe ser sencillo, limpio y puro entre nosotros.
Sólo entonces seremos dignos de haber tenido la suerte de nos encontrarmos.
Que haya sido mi aluna y yo su maestro no es más que la ocasión propicia de los que nos ocurrido".
*
"Querida Hannah, el demonio me ha disparado... . Ja apacible oración de tus queridas manos enlazadas y tu frente resplandeciente son las armas tutelares en la transfiguración que sostiene tu feminidad.
Nunca me ha pasado nada igual.
En el camino de regreso, durante el chaparrón tormentoso, me pareciste aún más bella. Y durante noches enteras me hubiera gustado acompasar nuestros pasos. Recibe este libro en señal de mi gratitud.
Que sea también un símbolo de este semestre".
"Ven conmigo.
No me rechaces.
Deja ahí tu temor.
Si no puedes entregarte,
ven a recibir y a dar. Hannah".
*
"Si algo bueno se puede esperar...será la medida del sacrificio que exige por parte de los dos. Tu Martin".
"Lo que quiero decirte ahora no es más que un lienzo, en el fondo, muy prosaico de la situación.
Te quiero como el primer día.
Ya lo sabes.
Y siempre lo supe.
El camino que me has asinalado es más largo y difícil de lo que pensaba.
Hace falta toda una vida. Hannah".
(Extraido do documentário Pensar apasionadamente, produzido por Jocken Kölsch para o canal Arte, disponível em 4 partes no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=MDVwr1bI26Q&feature=my_watch_later_videos&list=WLB716C1C1C46643C0).

O slêncio das sereias - Fraz Kafka

 
Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação:
Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.
E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.
Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.
De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

(Tradução de Modesto Carone. Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 6/5/1984).

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Mais uma perversão capitalista-"Personal-mother"

"No Brasil, a profissão de mãe de aluguel, ou personal mother, como é mais conhecida, faz sucesso no mercado de trabalho.
A ideia, que surgiu há dois anos, é ajudar as mães que trabalham fora a cuidar da educação das crianças. Um dos requisitos da profissão é ter filhos, o que serve como experiência e preparação e diferencia a personal mother de uma simples babá.
Para as tarefas simples, como levar a criança ao shopping, o valor é de R$ 130,00, mas os preços aumentam quando tem que substituir a mãe na reunião da escola ou na visita ao pediatra".
(Reportagem - Jornal do SBT de 4/8/12, transmitido às 20 hs).

Link para o vídeo da reportagem:

Conteúdo de um dos anúncios publicado na internet:
"Professora pós graduada em Educação com filho criado oferece seus serviços de Personal Mother para cuidar de seu filho, acompanhar aos compromissos diários, emergências, etc. Ofereço referências. Preço por hora ou a combinar".
“Se o dinheiro .... Vem ao mundo com uma mancha congênita de sangue numa das faces, o capital vem pingando da cabeça aos pés,de todos os poros, sangue e lama” -  
(Marx, O Capital, v.1).

Capitalismo x tempo


Sinal fechado (Chico Buarque)
– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!


"O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro; isso é uma brutalidade. O tempo é o tecido das nossas vidas" -
(Antônio Cândido citado por Maria Rita Kehl na palestra Identidades sociais e ressentimento psicológico).

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quem são os pais do amor? - diálogo entre Sócrates & Diotima


Diotima – Tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal. (...) E esses gênios, é certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor.
Sócrates – E quem é seu pai – perguntei-lhe – e sua mãe?
Diotima – É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo em que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis, com efeito, o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
Sócrates – Quais então, Diotima – perguntei-lhe –, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
Diotima – É o que é evidente desde já – respondeu-me – até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E, de fato, o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém, é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei.

(In. Platão. O Banquete, 201 d-204 c. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Tradução: José Cavalcante de Souza).