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terça-feira, 22 de abril de 2014

Esperança do mundo - Albert Camus


"No mosteiro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio guarnecido de arcadas, tomado por flores vermelhas, pelo sol e por abelhas amarelas e pretas. Em um canto, um regador verde. Por toda parte, o zunido de moscas. Temperado de calor, o pequeno jardim fumega suavemente. Sentado no chão, eu penso nos franciscanos cujos aposentos vi há pouco, cuja inspiração percebo agora, e sinto realmente que, se eles têm razão, é junto de mim que eles têm razão. Atrás da parede em que me apoio, sei que existe a colina que resvala em direção à cidade e essa dádiva de toda Florença com seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação desses homens. E deposito todo meu orgulho em acreditar que ele também é o meu e o de todos os homens de minha raça - que sabem que uma pobreza extrema encontra sempre o luxo e a riqueza do mundo. Se eles se despem, é por uma vida maior ( e não por uma outra vida). É o único sentido que posso atribuir à palavra "desnudamento". "Estar nu" conserva sempre um sentido de liberdade física e esse acordo da mão e das flores, esse entendimento amoroso da terra e do homem liberado do humano, ah eu bem que me converteria se essa já não fosse minha religião.
Hoje, me sinto livre em relação ao meu passado e ao que perdi. Só quero esse aperto e esse espaço fechado - esse fervor lúcido e paciente. E como pão quente que se aperta e que se reduz a quase nada, eu quero apenas ter minha vida nas mãos, como aqueles homens que souberam encerrar suas vidas entre flores e colunas. E ainda essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. Lamber a vida como um torrão doce, moldá-la, afiá-la, amá-la enfim, como se busca a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquilo ou aquela que conclui, que detém, com o que se partirá e que fará dali em diante todo o colorido do nosso olhar. Eu bem que poderia parar aí, encontrar finalmente o termo de um ano de vida desenfreada e louca. Essa presença de mim diante de mim mesmo - meu esforço é levá-la até o limite, mantê-la diante de todas as faces de minha vida, mesmo ao preço da solidão, que eu sei agora o quanto é difícil suportar. Não ceder: tudo está ali. Não consentir, não trair. Toda minha violência me ajuda nisso e, no  ponto em que ela me leva, meu amor me reencontra e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
Sempre que cedemos (que eu cedo) às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para "parecer", nos traímos. Todas as vezes, sempre foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro. Não precisamos nos entregar aos outros, mas somente àqueles que amamos. Pois nesse caso não se trata mais de se entregar para parecer, mas somente para oferecer. Quando é necessário, um homem tem muito mais força do que parece. Ir até o limite é saber guardar seu segredo. Eu sofri por ser sozinho, mas, por ter guardado meu segredo, venci o sofrimento de ser sozinho. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado. Escrever, minha alegria profunda" Consentir ao mundo e ao prazer - mas somente no desnudamento. Eu não queria ser digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal "eu sou feliz".
Certa continuidade no desespero acaba por gerar a alegria. E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm seu aposento o crânio que alimenta suas meditações, com Florença pela janela e a morte sobre a mesa. Em minha opinião, se eu me sinto em um ponto decisivo da minha vida, não é por causa do que adquiri, mas do que perdi. Sinto que tenho uma extrema e profunda força. É graças a ela que devo viver, da maneira como desejo. Se hoje me encontro tão distante de tudo, é porque não tenho outra capacidade além de amar e admirar. Vida com a aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão.
Hoje não é como uma hesitação entre sim e não. Mas hoje é sim e é não. Não e revolta diante de tudo o que não são lágrimas e e sol. Sim para a minha vida da qual sinto pela primeira vez a promessa por vir. Um ano fervilhante e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo. Aí está minha pobreza e única riqueza. É como se eu recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência de minhas capacidades e, o desprezo de minhas vaidades e essa febre, lúcida, que me lança diante de meu destino".


(Anotação feita em 15/09/1937 - do caderno: Esperança do mundo (1935-37). São Paulo: Hedra, 2014, p.66-69.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Galopando insana pela casa - Hilda Hilst


S.O.S! Help! Socorro! Aiuto! Aide!
Tô no poço, no bueiro, na cova ainda não, mas tô por perto, e tô olhando o meu retrato aqui na sala, eu aos 26 (todo mundo pergunta quando entra: quem é?) e ao contrário daquele de Dorian Gray o meu é lindo e mais pro "Dorian Gay", e eu na carne, velhíssima, tristíssima, paupérrima, amarela... Comprem alguma coisa minha, meu dedo mindinho por exemplo, que tem uma "anomalia de distribuição de sulcos" segundo meu admirável professor de biologia, que me fazia decorar tudo aquilo de anélias platelmintes nematelmintes artrópodas moluscas moluscoideias. Então comprem meu dedo mindinho, ou minha rodela, fui sempre casta nesta escatológica e escura fundura, ou comprem o meu abismo de ser e de ter sido, meu lado compassivo, o fervoroso de mim que foi perdido, minha boca aberta (ou comprem meus dentes, ao menos para sorrir amarelo), comprem minhas frases (se as houver) na agonia visceral d despedida, e se eu nada disser comprem o silêncio do poeta, ou minha pele manchada, égua vermelhusca e manca galopando insana pela casa. Comprem minha mesa, minha terra, meu lápis, meu sovaco claro, meus poemas primeiros, meus versos derradeiros, ah sim, minha garganta preclara, meus rutilantes neurônios, minhas rugas magras, comprem comprem! Tô inteirinha à venda, negada!
Estamos todos à venda, os escritores, nesta terra de bolas ladrões eleições presidentes doutores, terra onde a apalavra vale menos que um gato putrefato, onde um poema no jornal só serve para uma eventual escarrada, onde um livro só é lido se for de um pulha rábula, ou se for um guia para tua melhor trepada.
Mas a verdade é que há este amanhecer, estes lilases orvalhados pela cara, este porre patético, eu e meu jovem e sóbrio amigo que chamo de Vivo, também ele um poeta, que para me arrancar desta noite de sombras e de mitos, leu para mim, este seu poema, enquanto eu maldizia a mim mesma e a Deus:

Deixa-me tatear teu hálito
obscuro que estou
de todos os sentidos.
Deixa-me (ao menos) concluir
que esta ilusão de formas
é apenas munha inconclusa
maneira de ocultar-te.
Deixa-me (em sigilo)
beirar a secura do teu corpo
- o abismo de tocar-te.

P.S: Dialogozinho eotérico à maneira da URV:
Depois disso ela morreu, é?
"Não sei ao certo. Mas alguém teve a liberdade de enterrá-la" (frase atribuída ao pai de James Joyce).
E "Gloomy Sunday" pra vocês também".
*
(crônica escrita no domingo, 13/3/94).

(In: Cascos & Carícias & Outras crônicas. Rio de Janeiro: Globo, 2006, p. 202-204).