"É possível falar da boa saúde mental de Van Gogh que, no curso de toda a sua vida, apenas assou uma das mãos e, fora isso, não fez mais do que amputar a orelha esquerda, num mundo onde se come todos os dias vagina cozida à la sauce vert ou sexo de recém-nascido espancado e colérico, tal como é colhido ao sair do sexo materno.
E isto não é uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repetido e observado em toda a terra.
E é assim que, por mais delirante que possa parece tal afirmação, a vida presente se mantém em sua velha atmosfera de estupro, de anarquia, de desordem, de delírio, de desregramento, deloucura crônica, de inércia burguesa, de anomalia psíquica (porque não foi o homem mas o mundo que se tornou anormal), de assumida desonestidade e de insigne hipocrisia, de sórdido desprezo por tudo o que mostre raça (...)
Isto é nocivo porque a consciência doente tem a esta altura interesse capital em não se livrar da doença.
Foi assim que uma sociedade deteriorada inventou a psiquiatra para se defender das indagações de certas mentes superiores, cuja capacidade de adivinhar a incomodava " (p.27-8).
(...) "Porque o que a pintura de Van Gogh ataca não é um determinado conformismo de costumes, mas o conformismo das próprias instituições. E nem mesmo a natureza exterior, com seus climas, marés de tempestades equinociais, pode manter, depois da passagem de Van Gogh, a mesma gravitação de antes.
Com mais razão ainda no plano social, as instituições se desagregam e a medicina afigura-se a um cadáver inútil e corrompido, que declara Van Gogh louco" (p.29).
(...) "E o que é um autêntico alienado?
É um homem que preferiu tornar-se louco, no sentido em que é socialmente entendido, a conspurcar uma certa idéia superior da honra humana.
Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger, por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas.
Porque um alienado é tam´bém um homem que a sociedade se negou a ouvir e quis impedí-lo de dizer insuportáveis verdades" (p.32-3).
(...) "Van Gogh não morreu de um estado de delírio próprio, e sim por ter servido corporalmente de campo a um problema em tornodo qual, desde suas origens, se debate o espírito iníquo desta humanidade, que é o da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outro.
E onde fica neste delírio o lugar do eu humano?
Van Gogh buscou o seu durante toda a vida com uma energia e uma determinação estranhas" (p.39).
(...) "Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão.
E inertes" (p. 45).
(...) "Cardadas pela ferramenta de Van Gogh, as paisagens mostram sua carne hostil, a hostilidade de suas entranhas expostas, que não se sabe qual estranha força por outro lado está prestes a provocar metamorfoses" (p.46).
"A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença, e se não a provocou e criou, peça por peça, para se atribuir uma razão de existir; mas a psiquiatria nasceu da turba plebéia de seres que quiseram conservar o mal na fonte da doença e que, assim, extirparam de seu próprio nada uma espécie de guarda suíça para deter em seu nascedouro o impulso de rebelião reinvidicador que está na origem do gênio.
Há em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma idéia assustadora, e que só no delírio consegue encontrar uma saída para as coerções que a vida lhe preparou" (p. 53).
(...) "Van Gogh se representou a si mesmo num grande número de telas e, por mais claras que fossem, sempre tive a penosa impressão de que ele foi obrigado a mentir acerca da luz, quea Van Gogh roubaram uma luz indispensável para abrir e traçar seu caminho em si mesmo (...) porque Van Gogh era uma dessas naturezas de lucidez superior que lhes permite, em todas as circunstâncias, enxergar mais longe infinita e perigosamente mais longe do que o real imediato e aparente dos fatos (...). No fundo de seus olhos de carniceiro, que parecem depilados, Van Gogh se entregava sem interrupção a uma dessas operações de alquimia sombria, que tomam a natureza por objeto e o corpo humano por caldeirão ou cadino" (p.55-6).
(...) "Nunca ninguém escreveu ou pintou, esculpiu, construiu, inventou, a não ser para sair do inferno.
Prefiro, para sair do inferno, as naturezas desse convulsionário tranquilo às fervilhantes composições de Breughel, o Velho, ou de Jerônimo Bosch, que, em face dele, são artistas, enquanto que Van Gogh é apenas um pobre ignorante que se esforça para não se enganar" (p.61).
(...) o pensamento é o luxo da paz (...) a humanidade não quer pagar o preço de viver, de entrar neste conflito natural de forças que conpõem a realidade para extrair daí um corpo que nenhuma tempestade poderá danificar. Ela preferiu contentar-se em simplesmente existir.
Quanto à vida, é no gênio do artista que ela tem o hábito de ir procurá-la.
Ora, Van Gogh, que tinha assado a própria mão, jamais teve medo de guerrear para viver, isto é, para arrebatar o fato de viver à idéia de existir, e tudo pode certamente existir sem pagar o preço de ser, e tudo pode ser sem pagar, como Van Gogh, o desatinado, o preço de irradiar e de rutilar.
Foi isto que a sociedade lhe arrebatou para fazer a cultura turca, esta honestidade de fachada que tem o crime como origem e apoio.
E por isso Van Gogh morreu suicidado, visto que o consenso da consciência geral não pode mais tolerá-lo.
(...) Só a guerra perpétua explica uma paz que é apenas passagem, assim como o leite prestes a derramar explica a caçarola na qual ferve.
Desconfie das belas paisagens de Van Gogh turbilhonantes e pacíficas,convulcionadas e pacificadas.
É a saúde entre duas recaídas da febreardente que vai passar.
É a febre entre duas recaídas de uma inssureição de boa saúde.
Um dia a pintura de Van Gogh armada de febre e de boa saúde, voltará para lançar no ar a poeira de um mundo enjaulado que seu coração já não podia suportar "(p.79-81).
(In: Van Gogh - O suicida da sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007).
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