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quinta-feira, 30 de julho de 2020

Caderno de memórias coloniais - Isabela Figueiredo (trechos)

"As incursões sexuais pelo caniço não assombravam o seu futuro, porque uma negra não reclamava paternidade. Ninguém lhe daria crédito.
Mas um branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e passar a a ser aceite, com reservas, mas aceite, porque era mulher do Simões, e por respeito ao Simões... Era frequente no caso dos cantineiros e machambeiros afastados da cidade, homens relativamente à parte na sociedade colonial decente, que mais cedo ou mais tarde se cafrealizavam.
Para uma branca, assumir união com um negro, implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado" - (p. 35).
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"Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, e abrir as pernas, a ser largas. Uma branca cumpria a obrigação" - (p. 40).
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"O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos!" - (p.43).
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"O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras do jardim. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção nenhuma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a prosperidade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li" - (p. 46).
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" A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre" - (p. 127).
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"Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados.  Há vítimas-vítimas e vítimas culpadas. Entre as vítimas há carrascos.
Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensávamos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias de sangue e de raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo." - (p. 136).
(In. Caderno de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2018).
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Mais sobre o livro:
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Sobre Isabela Figueiredo:

terça-feira, 28 de julho de 2020

José & Pilar - conversas inéditas (trechos)


"Eu não perdi nada da minha identidade, a Pilar tão-pouco. Nesse sentido, somos muito respeitadores de cada um de nós em relação ao outro. Isso não quer dizer que não se aprenda com o outro, que não se transmita ao outro algo daquilo que é nosso, e não quer dizer que isso que se transmite não seja incorporado no outro. Pois se eu leio hoje um livro e se esse livro influi em mim, como é que não há de influir a pessoa com quem eu vivo um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos? Mas nem eu me converto no livro nem me converto na outra pessoa. Agora, que nós nos interpenetramos a toda hora com emoções, com sentimentos, com ideias, com opiniões, e tudo mais... claro. Cada um de nós é um mata-borrão, um mara borrão que vai absorvendo aquilo que encontra" (José, p. 76).
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"Não, eu não me sinto mais jovem. Hoje eu tenho oitenta e quatro anos, naquela altura eu tinha sessenta e três. Repara na diferença. Agora, aquilo que eu posso perguntar, e me pergunto muitas vezes, e para o que não tenho resposta, é que pessoa de oitenta e quatro anos eu seria hoje se não a tivesse conhecido. O problema está aí e é o que eu quis dizer com "se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, morreria muito mais velho do que serei quando isso tiver que suceder". É porque esses vinte anos não passaram em vão, não são vinte anos vividos simplesmente um atrás do outro. São vinte anos cheios de uma riqueza, de uma força, de uma intensidade...Imagine que eu não a tinha conhecido e você diz "Ah, mas teria conhecido outras mulheres". Com certeza! Mas, enfim, não é disso que se trata, não é uma questão quantitativa, saber que conheceria outras mulheres ou não conheceria nenhuma, não é isso. É simplesmente o fato de que conheci a ela, nada mais. Isso mudou a minha vida completamente" - (José, p. 79).
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"La familia es un grupo social. Y lo que decia el otro día es que, en líneas generales, es el grupo social más perverso que puede haber para el individuo" - (Pilar, p. 90).
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"No! Porque si se pudiesse morir de amor, conozco algunas personas que ya habrían muerto de amor. No. Se puede morir de desgarro, se puede morir de despecho,..De eso que hablávamos antes, de perversión, de la perversión de los sentimientos que pueden ir consumiendo, pero el amor es expansivo, lo llena todo. Creo que se vive de amor" - (Pilar, p.94).
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"...yo entiendo que la fidelidad no se pide, pero, además, tampoco se entrega. Se vive y punto. Uno la vive, y la ora parte hará lo que sea. Y uno, de lo que tiene que estar seguro es de lo que hace, y la otra parte tendrá que actuar también de acuerdo con sus principios. Y lo que puedes pedir es que cambie" - (Pilar, p. 95).
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"pues como la tienes garantizada, que dejes de pensar. O sea, la muerte es la única cosa que tenemos garantizada, así que vamos a pensar en otra cosa. Ese objetivo ya está conseguido. El objetivo de morir ya lo tenemos conseguido. Ahora vamos a conseguir el objetivo de vivir" - (Pilar, p. 201).
(In. José e Pilar. Conversas inéditas. Miguel Gonçalves Mendes. Lisboa: Quetzal, 2011).
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 Documentário José e Pilar (trailer):
 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

O inventário das coisas ausentes - Carola Saavedra

"Há sempre algo que me escapa. Talvez esteja nessa vivência original o grande mal-entendido" - (p.25).
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"Eu penso, casei com uma mulher e com a biblioteca dessa mulher. Casei com as leituras dessa mulher. E com os livros que ela comprou e nunca leu. Luiza volta com um livro na mão, aqui o húngaro que você está procurando, depois me dá um beijo e volta para a mesa de jantar onde além do computador, acumulam-se uma série de teses de mestrado e doutorado, trabalhos de faculdade, cadernos, pequenos vasos de plantas, velas. Luiza espalha suas coisas por toda a casa, quadros, plantas, enfeites, pouco a pouco foi ocupando todos os espaços. Eu olho para ela, surpreso que isso não me incomode" - (p.27).
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 "Não é fácil ter um corpo, não é algo necessariamente natural, para isso é preciso coragem. Faço alguns ensaios. Abro um pote de creme, passo pelas pernas, coxas, braços, o creme promete manter a pele brilhante e elástica. Uma pele que não se desfaça, que mantenha órgãos e vísceras ordenados naquele espaço vazio, ou que ao menos dê limites a essa espaço. O corpo é uma rede que nos envolve" - (p.46).
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"A casa das palavras é frágil e ressecada. Eu te amo, diz o texto. Talvez entre o eu te amo e o amor propriamente dito haja um espaço intransponível. Talvez o tempo que passa. Mas não apenas. Talvez um inevitável desencontro. Essa incoerência " - (p. 64-65).
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"Você não sabe o que é a morte, o que é chegar muito perto da morte, tê-la ao seu lado, dentro de você, mas eu sei, e não desta morte agora, esta morte do dia a dia, eu me refiro à outra, àquela que escava, que invade, que aprofunda no corpo, a morte agarrada ao corpo, feito um polvo, a morte e seus tentáculos de polvo, suas ventosas. Eu tinha dezenove anos quando vi a morte pela primeira vez, quando a conheci, e ela me acompanharia o resto da vida, até agora, até que a morte me resgate da morte, entende?" - (p.85).
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"Aos quarenta e seis anos tudo o que eu tenho é um apartamento alugado, dois quartos, na realidade um quarto e outro reversível. Tenho também Nina, mas não a tenho, tenho também um trabalho, mas não o tenho. É necessário coragem para possuir as coisas, o homem velho diz, porque coragem não é só sair por aí vociferando meia dúzia de ideais, coragem é ser capaz das coisas mais prosaicas, como ter coisas que te prendam a um lugar, que te amarrem, coisas que pesem sobre teus ombros, veja esta casa, ela pesa sobre os meus ombros, veja estes livros, esta casa, esta mesa, estas paredes, está vendo?, tudo aqui pesa sobre os meus ombros, inclusive você, nada mais pesado do que você sobre os meus ombros, desde o início (...) Porque o peso não te deixa ir embora" - (p. 102).

(In. O inventário das coisas ausentes. Carola Saavedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014).
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Sobre o livro:
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Primavera num espelho partido - Mario Benedetti (trechos)

"É curioso, mas o bom companheirismo não consiste sempre em falar ou ouvir, em contar vidas e mortes, amores e desamores, em narrar romances que lemos há muito tempo e que agora já não temos à mão, em discutir filosofia e seus meandros, em tirar conclusões de experiências passadas, em analisar e nos analisar ideologicamente, em intercambiar as respectivas infâncias ou, quando se pode, em jogar xadrez. O bom companheirismo consiste muitas vezes em calar, em respeitar o mutismo do outro, em compreender que é disso que o outro necessita naquela precisa e obscura jornada, e então envolvê-lo com nosso silêncio ou deixar que ele nos envolva com o seu, porém, e esse porém é fundamental, sem que nenhum dos dois o peça ou exija, mas que o outro compreenda por si mesmo, numa espontânea solidariedade" - (p. 163).
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"Não há (e talvez não haja) casamento, mas o que não posso negar é que, embora Lydia não seja de minha aldeia, ela é, em compensação, de minha casta, de minha tribo. E isso de ter me vinculado ao país Lydia não é simplesmente linguagem figurada, pois foi ela quem me introduziu nas coisas, nas comidas, nas gentes daqui" - (p.186).
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"Você se dá conta Rolando, de tudo que essa carta diz? Pode ler, como eu, todas as entrelinhas? Por isso eu disse há pouco que talvez esteja feliz e é isso que me deixa um pouco estranho. Estar feliz e, no entanto, não ser feliz. Ah, nunca imaginei que estar feliz pudesse incluir tanta tristeza, sabe?" - (p.198).
 (In. Primavera num espelho partido. Mario Benedetti . São Paulo: Alfaguara, 2018).

Sobre o livro:

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Meu ano de descanso e relaxamento - Otessa Moshfegh

"Não consigo reconhecer nada que justifique minha decisão de hibernar. No começo, eu só queria uns tranquilizantes para abafar meus pensamentos e juízos, já que o bombardeio constante tornava difícil a tarefa de não odiar a tudo e a todos. Achava que a vida seria mais tolerável se meu cérebro demorasse um pouco mais para condenar o mundo ao meu redor " - (p.22).
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"Eu não era insone, era infeliz. Me lamuriar para a dra. Tuttle teve um efeito estranhamente libertador" - (p. 25).
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"Nada parecia real de verdade. Dormindo, acordada, tudo colidia numa viagem cinzenta e monótona de avião por entre as nuvens. Eu não conversava mentalmente comigo mesma. Não tinha muito o que dizer. Foi assim que soube que o sono estava fazendo efeito: estava ficando cada vez menos apegada à vida. Se continuasse, pensei, desapareceria por completo, depois reapareceria sob alguma outra forma. Essa era a minha esperança. Esse era o meu sonho" - (p. 76).
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"O mundo da arte acabou se mostrando parecido com o mercado de ações: um reflexo de tendências políticas e convicções do capitalismo movido pela ganância, por fofoca  cocaína. Eu bem que podia ter trabalhado em Wall Street, teria dado na mesma. Especulação e opiniões guiavam não só o mercado como também os produtos e, infelizmente, os valores, que dependiam não da inefável qualidade da arte enquanto ritual humano sagrado - um valor que de qualquer forma é impossível medir -, mas do que um bando de idiotas ricos achava que "elevaria" seus portfólios e inspiraria inveja e, delirantes como eram, lhes traria respeito. Eu ficava bem feliz de ter tirado rodo aquele lixo da minha cabeça" - (p.154).
(In. Meu ano de descanso e relaxamento. Otessa Moshfegh. São Paulo: Todavia, 2019).

Mais sobre o livro em:
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Querida Kombini - fragmento


"Não me lembro com clareza de como era minha vida antes de eu renascer como funcionária da loja de conveniência.
Nasci em uma família comum, numa área residencial dos subúrbios, e cresci cercada de amor como qualquer criança. Porém, as pessoas costumavam me achar estranha.
Certa vez, por exemplo, quando estava no jardim de infância, encontramos um passarinho morto no parque. Era um lindo pássaro azul, provavelmente fugido de alguma gaiola, e estava caído no chão com o pescoço retorcido. As outras crianças choravam ao seu redor. Enquanto uma menina murmurava "Oh, e agora, o que vamos fazer?", eu rapidamente peguei o passarinho do chão e o levei até minha mãe, que estava de conversa, sentada em um banco.
- O que foi, Keiko? Puxa, um passarinho! De onde será que ele veio? Coitadinho... Vamos fazer uma sepultura para o senhor passarinho, Keiko? - disse ela com voz gentil, afagando minha cabeça.
- Vamos comer isto aqui! - eu disse.
-Quê?
´- Vamos levar para casa e comer hoje à noite. Podemos fazer espetinho, como o papai gosta - achei que ela não tinha me ouvido direito, então expliquei pronunciando claramente as palavras.
Minha mãe se encolheu assustada. A mãe de outra criança, sentada ao seu lado, também deve ter ficado em choque, pois seus olhos, narinas e boca se escancaravam todos de uma vez. Era uma expressão muito engraçada e eu quase ri. Mas ao notar que ela também olhava para o passarinho na palma da minha mão, pensei que talvez um só não fosse suficiente.
- É melhor a gente pegar mais alguns? - perguntei, lançando um olhar para dois ou três pardais que ciscavam ali por perto.
- Keiko! - minha mãe voltou a si e me censurou com um grito nervoso.. - Temos que fazer uma sepultura para o pobrezinho. Olha só, todo mundo está chorando, estão todos tristes porque o amiguinho morreu. Que  peninha dele, não é?
- Mas por quê? Ele já morreu, mesmo! É melhor aproveitarmos.
Minha mãe ficou sem palavras.
Na minha mente eu via meu pai, minha mãe e minha irmã, que ainda era pequena, comendo alegremente o passarinho. Meu pai gostava de espetinho, eu e minha mãe gostávamos de frango frito... Havia tantos passarinhos naquele parque, a gente podia levar um monte! Eu não entendia o propósito de enterrar o bicho em vez de o comermos.
- Olha só Keiko, ele é tão pequeno e bonitinho! Vamos fazer uma sepultura para ele e enfeitar com flores, tá? - insistiu minha mãe.
No fim das contas, foi isso o que aconteceu, mas para mim não fazia sentido algum.
- Coitado do passarinho, que judiação! - repetiam todos, aos prantos, enquanto matavam flores partindo seus caules.
- Que flores lindas, o passarinho vai ficar muito contente!
Para mim pareciam loucos" - (p. 13-15).
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"Não era minha intenção deixar meu pai e minha mãe confusos ou aflitos, nem obrigá-los a se desculpar para várias pessoas, então decidi que, fora de casa, falaria o mínimo possível. Resolvi deixar de fazer qualquer coisa por iniciativa própria e apenas imitar o que todo mundo fazia, ou obedecer as ordens de alguém.
Quando parei de falar o que quer que fosse além do estritamente necessário e de agir de forma espontânea, os adultos pareceram aliviados.
(...)
Continuei assim mesmo depois de me formar no ensino médio e entrar na faculdade. Passava praticamente todo meu tempo livre sozinha e quase não tinha conversas particulares. Meus pais se preocupavam comigo, pois ainda que eu não causasse mais tumultos como os do começo do primário, decerto acreditavam que eu não conseguia me inserir na sociedade daquele jeito. Assim, sempre pensando que eu precisava me curar, fui me tornando adulta - (p.18-19).
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(In. Querida Kombini. Sayaka Murata. São Paulo: Estação Liberdade, 2019).

Mais sobre o livro:

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Resenha do livro: