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sábado, 14 de novembro de 2015

Adeus à diferença - Vladimir Safatle

 
Se a primeira dimensão do igualitarismo diz respeito à luta contra a desigualdade econômica, a segunda se refere à estrutura das demandas de reconhecimento na vida social. Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos chamar de necessidade de uma política da indiferença. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da constatação do esgotamento da diferença como valor maior para a ação política.
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na "diferença" o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, as exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
Sabemos como multiculturalismo diz respeito, inicialmente, a uma lógica da ação política baseada no reconhecimento institucionalizado da diversidade cultural própria às sociedades multirraciais ou às sociedades compostas por comunidades linguísticas distintas. Isso implica transformar o problema da tolerância à diversidade cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema político fundamental. Dessa forma, abriram-se as portas para certa secundarização de questões marxistas tradicionais veiculadas à centralidade de processos de redistribuição e de conflito de classe na determinação da ação política. No limite, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais.
Por um lado, tal dinâmica teve sua importância por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade (como negros, mulheres e homossexuais). No entanto, a partir de um certo momento, começou a funcionar de maneira contrária àquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformação de conflitos sociais uma equação usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes árabes africanos e, assim, patrocinarem uma política brutal de estigmatização e exclusão política travestida de choque de civilizações.
Desse modo, posso estigmatizar pobres aproveitando-me do fato de eles serem culturalmente diferentes, criando com isso situações de profunda precarização do trabalho, de contínua insegurança de trabalhadores, que são espoliados de todo e qualquer direito por serem imigrantes. Um clássico conflito de classe e espoliação transformou-se em choque civilizatório.
Ou seja, há uma linha reta que vai da tolerância multicultural à perpetuação racista da exclusão daqueles para quem nossos valores nunca deram prova de inclusão modernizadora. Afinal, trata-se de dizer que o único lugar onde a diferença pode florescer em liberdade é em nosso Ocidente defendido por mega-aparatos securitários contra terroristas. Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que não se adaptam a nosso "campo das diferenças" não são diferentes, mas simplesmente irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão.
Este é um ponto importante por nos mostrar como a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que não serão mais ouvidos, elementos cujas palavras serão definidas por nós como desprovidas de racionalidade e de possibilidade de reconhecimento. A única maneira de evitar isso é organizar o campo social a partir da equação das diferenças.
A equação das diferenças, tão presente nas dinâmicas multiculturais, parte da seguinte questão: até onde podemos suportar uma diferença? Esta é, no entanto, uma péssima questão. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Nada mais falso.
(...) O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado francês, kosovar, judeu, flamengo, inglês, brasileiro etc. Condição maior para discutir a possibilidade de construção de Estados pós-identitários, que não precisem repetir compulsivamente identidades ilusórias construídas pelos interesses políticos do dia.
(...) Contra aqueles que não veem relação alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionária do catolicismo e política multicultural das diferenças, valeria a pena fazer aqui algumas considerações. Não podemos perder de vista que se trata, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou de um modo de experiência social da diferença que se realiza na multiplicação de maneiras de ser coerente com os imperativos da modernidade capitalista. Ou a procura pela reconstituição social de vínculos identitários substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nação, família etc.).
Diante dessa situação, devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a geografia mental da liberalização e da restrição.
 
(In. A esquerda não ousa dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 26-33).


Agir para não pensar - Vladimir Safatle

 
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussão sobre princípios se as urgências práticas da política parecerem tão prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos parágrafos iniciais de Carta ao humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensa-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age enquanto pensa.
Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento, no fundo, ser um subterfúgio para a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir. Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa, é porque ele é a única atividade que tem  força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir. É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.
A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.
Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação não efetiva pare, a fim de que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento.
Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. E talvez devamos colocar novamente esta questão simples: para uma perspectiva de esquerda, quais são os verdadeiros problemas?
 
(In. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 17-19).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme: