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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ferrante com Freud - A amiga genial

 
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015,  p. 61).
 
 
Unheimilich = “relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338). 
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Unheimlich é o que aparece quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
 (Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).