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terça-feira, 27 de agosto de 2013

O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

 
"Em meus anos mais vulneráveis da juventude, meu pai me deu um conselho que jamais esqueci:
- Sempre que tiver vontade de criticar alguém - ele disse -, lembre-se de que ninguém teve as oportunidades que você teve.
Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de forma contida, e entendi que ele queria dizer muito mais. Como consequência, adquiri o hábito de me abster de todos os julgamentos, um costume que me garantiu o acesso a diversas naturezas curiosas e também me fez vítima de alguns maçantes inveterados. A mente anormal detecta e se apega muito rapidamente a essa qualidade quando ela se manifesta em alguém normal, e por isso me ocorreu de, na faculdade, me acusarem injustamente de ser um homem político, só porque eu guardava as angústias secretas de homens extravagantes e desconhecidos (...). Abster-se de julgamentos é questão de esperança infinita" - (p.65-6).
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"Se a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos, então havia algo de grandioso naquele homem, certa sensibilidade exaltada às promessas da vida, como se ele guardasse alguma semelhança com aquelas máquinas intrincadas que registram terremotos a quilômetros de distância. Essa receptividade nada tinha a ver com a frouxa vulnerabilidade que muitos qualificam de "temperamento criativo" - era um talento extraordinário para a esperança, um prontidão romântica tal como nunca encontrei em ninguém e dificilmente tornarei a encontrar. Não - Gatsby saiu-se bem no final; é aquilo que estava à espreita em Gatsby, a espécie de poeira imunda que flutuava na superfície de seus sonhos, que matou temporariamente meu interesse pelas tristezas inúteis e pelas alegrias fugazes dos homens" - (p.66).
As quatro versões de Gatsby no cinema.
"Ele sorriu de forma compreensiva - muito mais que compreensiva. Era um daqueles raros sorrisos com o ar de eterno consolo, do tipo que você só encontra umas quatro ou cinco vezes na vida. Parecia encarar a eternidade do mundo inteiro por um instante, e então se concentrava em você com uma irresistível tendência a seu favor. Parecia compreendê-lo até o ponto em que você desejava ser compreendido, confiar o tanto que você gostaria de confiar em si mesmo, e assegurá-lo de haver transmitido exatamente a impressão que, em seu melhor momento, você desejaria passar" - (p. 111).
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"Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo" - (p.158).
 
(In. O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011).
 


Diário de luto - Roland Barthes (trechos)

"Irritação. Não, o luto (a depressão) é bem diferente de uma doença. De que desejam curar-me? Para encontrar que estado, que vida? Se há trabalho, aquele que nascer dele não será um ser comum, mas um ser moral, um sujeito do valor - e não da integração" (p.8).
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"Solidão = não ter ninguém em casa a quem dizer: voltarei a tantas horas, ou a quem poder telefonar (dizer): pronto, cheguei" - (p.42).
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"Meu espanto - e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no coração do amor" - (p.63).
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"Frio, noite, inverno. Estou aquecido, porém sozinho. E compreendo que será preciso habituar-me a estar naturalmente nesta solidão, nela agir, trabalhar, acompanhado, colado à "presença da ausência" - (p. 67).
"Não posso suportar que reduzam - que generalizem - meu pesar (...) é como se o roubassem de mim" - (p.69).
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"O Irremediável é, ao mesmo tempo, o que me dilacera e o que me contém..." - (p.87).
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"Recomeçar sem descanso. Sísifo" - (p.136).
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Em mim, lutam a morte e a vida (descontinuidade e como que ambiguidade do luto) (quem vencerá?) - mas, por enquanto, uma vida boba (pequenas ocupações, pequenos interesses, pequenos encontros).
O problema dialético é que a luta desemboque numa vida inteligente, e não uma vida-écran" - (p. 147).
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"Luto.
Impossibilidade - indignidade - de confiar a uma droga - sob pretexto de depressão - o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma "possessão" - uma alienação (algo que nos torna estrangeiros) - enquanto ele é um bem essencial, íntimo..." - (p. 159).
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"Habito minha tristeza e isso me faz feliz.
Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" - (p.169).
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"Continuo (dolorosamente) espantado de poder - finalmente - viver com minha tristeza, o que quer dizer, literalmente, que ela é suportável. Mas - sem dúvida - é porque posso, bem ou mal (isto é, com o sentimento de não o conseguir) dizê-la, fraseá-la. Minha cultura, meu gosto pela escrita me dá esse poder apotropaico, ou de integração: integro, pela linguagem.
Minha tristeza é inexprimível mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra "intolerável" realiza, imediatamente, certa tolerância" - (p. 171).
 
(In. Diário de Luto. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2011).
 


Fahrenheit 451 - Ray Bradbury (trechos favoritos)


"O rosto de Clarisse, agora voltado para ele, era um frágil cristal leitoso dotado de uma luz suave e constante. Não era a luz histérica da eletricidade, mas... o quê? A luz estranhamente aconchegante e rara e levemente agradável de uma vela. Certa vez, quando criança, durante uma queda de energia, sua mãe havia encontrado e acendido uma última vela e houve um breve instante de redescoberta, de uma iluminação tal que o espaço perdera suas vastas dimensões e se fechara aconchegante em torno deles, mãe e filho, a sós, transformados, torcendo para que a energia não voltasse tão cedo..." - (p.27).
"Lançou de novo o olhar à parede. Como o rosto dela se parecia também com um espelho! Impossível. Pois quantas pessoas seriam capazes de refletir a luz de uma outra? As pessoas quase sempre eram - procurou uma comparação, encontrou-a em seu ofício - archotes, que ardiam até se extinguir. Quantas pessoas existiam cujos rostos eram capazes de captar e devolver a expressão da outra, seus pensamentos e receios mais íntimos?...Quantos minutos haviam caminhado juntos? Três minutos? Cinco?"- (p.31).
"Escuridão. Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras a si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado e não havia como ir bater à sua porta para pedi-la de volta" - (p. 32).
"Bem, afinal de contas, estamos na era do lenço descartável. Assoe seu nariz numa pessoa, encha-a, esvazie-a, procure outra, assoe, encha, esvazie. Cada um está usando as fraldas da camisa do outro. Como torcer para o time da casa quando não se tem nem um programa nem sabemos os nomes? Por falar nisso, que camisa estão usando quando entram em campo?" - (p.38).
"Você não é como os outros. Eu vi alguns; eu sei. Quando eu falo, você olha para mim. Ontem à noite, quando eu disse uma coisa sobre a lua, você olhou para a lua. Os outros nunca fariam isso. Os outros continuariam andando e me deixariam falando sozinha. Ou me ameaçariam. Ninguém tem mais tempo para ninguém. Você é um dos poucos que me toleram. É por isso que eu acho tão estranho você ser bombeiro. É que, de algum modo, não combina com você" - (p. 45).
"Quem dera pudessem ter levado sua mente para uma lavagem a seco, esvaziado seus bolsos, e a tivessem vaporizado, limpado e remontado e a devolvessem pela manhã. Quem dera..." - (p.37).
"-Por que você não está na escola? Todo dia eu a vejo vagando por aí.
- Ah, eles não sentem a minha falta - disse ela. - Dizem que sou antissocial. Não me misturo. É tão estranho. Na verdade, eu sou muito social. Tudo depende do que você entende por social, não é? Social para mim significa conversar com você sobre coisas como esta. - Ela chacoalhou algumas castanhas que haviam caído da árvore do jardim da frente. - Ou falar sobre como o mundo é estranho. É agradável estar com as pessoas. Mas não vejo o que há de social em juntar um grupo de pessoas e depois não deixá-las falar, você não acha? (...) nunca fazemos perguntas; pelo menos a maioria não faz; eles passam as respostas para você, pim, pim, pim, e nós, sentados ali, assistindo a mais quatro horas de filmes educativos. Isso para mim não é nada social. Parece um monte de funis e muita água jorrando da torneira, entrando por um lado e saindo pelo outro, e depois eles vêm nos dizer que é vinho, quando não é" - (p.52).
"Como uma pessoa fica tão vazia?, perguntou a si mesmo. Quem esvazia a gente?" - (p.68).
"- Me deixe em paz - disse Mildred. - Eu não fiz nada.
- Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?" - (p.76).
"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra (...). Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com os "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com o reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o temerim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido" - (p.86-7).
"Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes, porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com a minha mulher; ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido" - (p.109).
"Eu me agarrei firme ao mundo algum dia. Já pus um dedo nele; é um começo" - (p.197).
 
(In. Fahrenheit 451. Ray Bradbury. São Paulo: Globo, 2012).
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Sobre o livro:
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O filme de Truffaut no youtube:
 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Carta a D. - André Gorz (trechos).

"...carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher" - (p.5).
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"Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós" - (p.11).
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"Você estava condenada a ser forte porque todo o seu universo era precário. Eu sempre senti, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade subjacente. Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e voc...ê, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado" - (p.12).
"...o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais (...). Era isso: vo...cê havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia (...). Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima (...). Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei não existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou" - (p.16).
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"Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas trinta páginas de O Ser e O Nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras.
Na época..., não procurei a resposta para tal questão na experiência que estava vivendo. Não descobri, como faço agora, qual era o alicerce do nosso amor. Nem que o fato de estar dolorosa e deliciosamente obcecado pela coincidência sempre prometida e evanescente do gosto que temos pelos nossos corpos - e quando digo corpo, não esqueço que "a alma é o corpo" tanto para Merleau-Ponty como para Sartre -, nos remete a experiências fundadoras cujas raízes estão mergulhadas na infância: na descoberta primeira, originária, das emoções que uma voz, um cheiro, uma cor de pele, um jeito de se mover e de ser, que serão para sempre a norma ideal, têm ressonância em mim. É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou com ela. Estamos aquém e além da filosofia" - (p.20).

(In. Carta a D. São Paulo: CosacNaify, 2012).
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André Gorz, jornalista austríaco radicado na França, reconhecido por seus trabalhos nas áreas de filosofia e sociologia, surpreendeu ao mundo ao escrever Carta a D., uma pungente declaração de amor a Dorine, sua companheira por quase sessenta anos. Dirigindo-se à mulher doente, Gorz relata a história de paixão, cumplicidade e militância (com propostas inovadoras no setor trabalhista e uma atuação pioneira em ecologia política) que os uniu para sempre desde que se conheceram em Lausanne, na Suíça, em outubro de 1947. Com o agravamento irremediável da doença de Dorine, os dois se suicidaram e seus corpos foram encontrados lado a lado em 24 de setembro de 2007.
 
 
 


sábado, 10 de agosto de 2013

Alô, Lacan? É claro que não - Jean Allouch (trechos).

 
*A Psicanálise, seu público e o estado.
Graças a uma lei que favorecia, dizia-se, a assimilação dos judeus, seu pai tinha optado por um sobrenome claramente francês. Ele, até aí, não se interessara por esta questão.
Mas eis que ela agora es...tá na ordem do dia em sua análise. Torna-se claro que se trata, para ele, de acrescentar a "seu" nome-próprio o nome de antes da decisão paterna. Ele se chamaria, doravante, Senhor X hífen Y.
Tratar-se-ia de uma veleidade? De fato, Lacan não lhe deixa tempo para hesitação. Presidindo então uma reunião da École freudienne durante a qual seu analisante deveria tomar a palavra, declara:
- Bom, passo agora a palavra a ... (seu nome) X-Y" - ( p.33).
*
*Casamento.
Ele levou muito tempo para se decidir.
Durante muitos meses, contara a Lacan sobre seu amor por XXX, falou dela, de sua relação com ela, de sua vida enfim, tinha analisado tudo, o porquê de sua escolha dela, a que seu nome remetia, etc.
Ele chega a sessão e diz:
- Eu ne caso na próxima semana.
Lacan:
- Com quem?" - ( p.37).
*
* Conjuração?
No tom irritado que é habitualmente o deste tipo de afirmação, ele diz:
- Puxa, sou uma besta.
Lacan:
- Não é porque você diz que não é verdade" - (p. 39).
*
*Deitar
- Sonhei que você ´propôs que eu deitasse e eu lhe dizia:
- Por que isso agora?
Lacan:
- Deite, meu caro" - (p. 42).
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* Dialética de uma intervenção
Jesuíta em análise com Lacan, ele faz parte da primeiríssima geração de alunos. Um dia, na sessão, fala de sua intenção de deixar a Companhia e se casar.
Lacan fez tudo para dissuadi-lo disso, chegando até a dizer-lhe que o supereu, no casamento, seria pior que na igreja.
Resultado? O analisante realiza sua decisão, mas de certa maneira: ficou convencido de que a tomara sozinho" - (p. 45).
*
*Go between?
Médico hindu, ele faz uma pequena análise com Lacan. No fim deste percurso, ousa perguntar:
- Você diz que uma carta sempre chega a seu destino. Ora, Althusser diz o contrário: acontece de uma carta não chegar a seu destinatário. O que você pensa de sua tese, que ele diz materialista?
Lacan, a se crer neste analisante, refletiu bons dez minutos antes de responder:
- Althusser não é praticante" - (p.60).

*
*Primeira sessão com Lacan.
Ela pede a Lacan retomar sua análise com ele, seu analista acaba de morrer, será enterrado naquele dia.
- Quando?
- Agora.
- Você não pretende ir ao enterro?...
- (ela, um pouco hesitante) - sim.
- Você dispõe de um meio de locomoção?
Uma velha 4L a espera, de fato, nas proximidades da Rue de Lille, 5, então, ela responde afirmativamente.
Depois, dirigindo-se a Glória:
- Glória, meu casaco!
Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espera e na biblioteca, eis Lacan em sua 4L, acompanhando-a ao enterro de seu ex-psicanalista. Foi assim a primeira sessão com Lacan" - (p.80).

*
*Vidência
Na véspera de um de seus exames de medicina, ele diz a Lacan na sessão:
- Puxa, que noite!
Evocava assim, não sem ênfase, sua noite de trabalho? Ou de insônia, motivada por sua preocupação com o exame?
De toda forma, Lacan logo replicou:
- Leucemia?
Ele decide preparar a questão "leucemia";
No dia seguinte, na sala de exame, inquietação...
Pois bem, não! Não é leucemia que cai.
Mas logo se percebe que há erro: vai ser examinado numa outra sala; e lá, fato extraordinário, lhe é pedido exatamente "tratar" da leucemia!
O que ele fez. Brilhantemente.
Saída do exame. Ele vai a sua sessão. Com esta incrível questão: como Lacan pôde saber?
Resposta:
- É pura questão de lógica*
* lógica do significante: noite branca = leukos = leucemia?!" - (p.96).
*
*É simples.
A um doente que declara que seus convidados ouvem os maus pensamentos que lhe vêm a respeito deles:
- Você assim mesmo deve perceber um pouco que, se você pensa que os outros pensam que você pensa mal sobre eles, isto talvez seja simplesmente pelo fato de que você pense mal" - (p. 103).
*
*Prescrição no sentido certo.
O doente desenvolveu amplamente como, permanentemente, se sentia seguido.
Estamos agora no fim da apresentação, que Lacan termina dizendo a seu interlocutor, muito gentilmente:
- Bom, vamos agora indicar-lhe alguém que vai segui-lo" - (p. 110).
*
*Topologia...ou geometria?
Há muito tempo Lacan já se apoiava na escrita topológica, a qual, sabe-se, é de outra ordem que a geometria.
Na época do borromeano, durante uma apresentação de doentes, tratou-se de círculo, isto - é claro - por... parte do doente. Este se definia, de fato, como centro solitário de um círculo solitário, o que não o impedia de também dizer que ele não tinha limites.
Lacan lhe fez um aparte sobre esta contradição:
- Um círculo tem bordas!
Resposta do doente:
- O senhor pensa em termos geométricos!" (p. 112).

*
(Alô, Lacan? É claro que não. Jean Allouch. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999).
 

 
 



 
 
 
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Que revolução será capaz de perturbar esta serenidade? - Graciliano Ramos

 
"Nas horas de serviço conseguia distrair-me. Os livros enormes de lombos de couro e folhas rotas, os ofícios, a campainha do telefone e o tique-taque das máquinas de escrever me arrastam para longe da terra. O que lá fora é bom, útil, verdadeiro ou belo não tem aqui nenhuma significação. Tudo é diferente. Respiramos um ar onde voam partículas de papel e de tinta e trabalhamos quase às escuras. A voz do diretor é doce, ranzinza e regulamentar. Se um funcionário comete falta, o diretor mostra o parágrafo e o artigo adequado ao caso. Sucede que o funcionário se defende apontando outro artigo. Aí o diretor perturba-se e descontenta-se: compreende que o serviço não vai bem, mas encolhe-se diante do regulamento e admira e receia o empregado que soube escapar-se nele. Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos. O que tem valor cá dentro são as coisas vagarosas, sonolentas. Se o maquinismo parasse, não daríamos por isto: continuaríamos com o bico da pena sobre a folha machucada e rota, o cigarro apagado entre os dentes amarelos. Deixaríamos de pestanejar, mas ignoraríamos a extinção dos movimentos escassos. Os rumores externos chegam-nos amortecidos. Que barulho, que revolução será capaz de perturbar esta serenidade?".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p. 132).


domingo, 4 de agosto de 2013

Angústia - Graciliano Ramos (trecho)

 
"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer por que me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel para bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade ceio de vergonha, prometo corrigir-me. "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais e isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono (...) penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha.. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direita nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama".
(Graciliano Ramos. Angústia. São Paulo: Círculo do Livro, 1988, p.107).