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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Entre judeus e palestinos - trecho do livro "Violência" de Slavoj Zizek

 
 
"Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-político verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra. O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política o sentido de São Paulo: "Para nós não existem nem judeus nem palestinos". Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente "puro" seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o  fato de a pequena história brechtiana ser uma evidente variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto - não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar? Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente".
(Violência. Slavoj Zizek. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 106-107).
 


quinta-feira, 28 de março de 2013

Zizek em São Paulo


Questionado sobre o porquê de estar editando um jornal para a classe menos privilegiada, uma vez que era um banqueiro, Kane responde:
"Se eu não defender o interesse dos privilegiados, então uma outra pessoa irá fazê-lo. Talvez alguém sem nenhum dinheiro ou propriedade, talvez eles mesmos comecem a defender os seus privilégios; e a gente não quer isso" -
 
(Zizek citando um diálogo do filme Cidadão Kane, de Orson Wells, na conferência de 8/3/13, em SP).
*
Link para a conferência de Zizek no youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=IKDQ7ZJ3Aho

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sobre o 11 de setembro

No momento em que pensamos nos termos: "É verdade, a queda do WTC foi uma tragédia, mas não podemos nos solidarizar inteiramente com as vítimas, pois isso significaria apoiar também o capitalismo americano", já estamos diante da catástrofe ética: a única atitude aceitável é a solidariedade incondicional com todas as vítimas. A atitude ética correta é aqui substituída pela matemática moralizadora da culpa e do horror, que perde de vista um ponto importante: a morte terrível de todo indivíduo é absoluta e incomparável" - 
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 68).

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Mais Zizek

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A tinta que falta - Slavoj Zizek

"Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: "Vamos combinar um código: se um carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira". Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa - o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha". Neste caso, a estrutura é mais refinada do que indicam as aparências: apesar de não ter como usar o código combinado para indicar que tudo o que está dito é mentira, mesmo assim ele consegue passar a mensagem; como? Pela introdução da referência ao código, como um de seus elementos, na própria mensagem codificada. Evidentemente, este é o problema padrão da autoreferência: como a carta foi escrita em tinta azul, todo o seu conteúdo não teria de ser verdadeiro? A resposta é que o fato de a mensagem ter mencionado a inexistência de tinta vermelha indica que ela deveria ter sido escrita em vermelho. O interessante é que esta menção à inexistência de tinta vermelha produz o efeito da verdade independentemente da sua própria verdade literal: ainda que houvesse tinta vermelha, a mentira de ela não existir é a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição específica de censura.
Não é esta a matriz de uma crítica eficaz da ideologia - não somente em condições "totalitárias" de censura, mas, talvez ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? Começa-se pela concordância com relação à existência de todas as liberdades desejadas - e então simplesmente se acrescenta que a única coisa em falta é a "tinta vermelha": sentimo-nos livres pela falta de uma língua em que articular nossa não liberdade. Esta falta de tinta vermelha significa que atualmente todos os termos usados para descrever o presente conflito - "guerra contra o terrorismo", "democracia e liberdade", "direitos humanos", etc. - são temros falsos, que mistificam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensála. Neste sentido preciso, nossas "liberdades" servem para mascarar e manter nossa infelicidade mais profunda. Cem anos atrás, ao enfatizar a aceitação de algum dogma fixo como a condição da verdadeira liberdade, Gilbert Keith Chesterton percebeu claramente o potencial antidemocrático do princípio de liberdade de pensamento:
Em termos gerais, podemos afirmar que o livre pensamento é a melhor d etodas as salvaguardas contra a liberdade. Aplicada conforme o estilo moderno, a emancipação da mente do escravo é a melhor forma de evitar a emancipação do escravo. Basta lhe ensinar a se preocupar em saber se quer realmente ser livre, e ele não será capaz de se libertar.
E não seria isso enfaticamente verdadeiro com relação à época pós-moderna, em que existe a liberdade de desconstruir, duvidar, distanciar-se? Não devemos esquecer de que a afirmação de Chesterton é a mesma afirmação feita por Kant em seu "O que é o Iluminismo?": "Pense o quanto quiser, com toda a liberdade que quiser, mas obedeça!". A única diferença é que Chesterton é mais específico, e esclarece o paradoxo implícito oculto no raciocínio de Kant: a liberdade de pensamento não somente não solapa a servidão social real, mas na verdade a sustenta (...)".
(Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real. Boitempo, 2004, p. 15-7).

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Deus está morto, mas Ele não sabe - Slavoj Zizek

"Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto - mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai - a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente" - Lacan
O ateu moderno pensa saber que Deus está morto; o que ele não sabe é que, inconscientemente, continua a acreditar em Deus. O que caracteriza a modernidade nãoé mais a figura típica do crente que abriga dúvidas sobre sua crença e se entrega a fantasias transgressivas; hoje temos, ao contrário, um sujeito que se apresenta como um hedonista tolerante dedicado à busca da felicidade, e cujo inconsciente é o local de proibições: o que é recalcado não são desejos ou prazeres ilícitos, mas as próprias proibições.
Um dos tópicos característicos da crítica cultural conservadora é que, em nossa era permissiva, faltam às crianças limites firmes ou proibições. Essa falta as frusta, impelindo-as de um excesso para outro. Somente um limite firme fixado por alguma autoridade simbólica pode garantir estabilidade e satisfação - satisfação produzida através da violação da proibição, da transgressão do limite (...).
Tradicionalmente, esperava-se que a psicanálise permitisse ao paciente superar os obstáculos que o privavam de seu acesso à satisfação sexual normal: se você não consegue isso, vá ao analista que lhe permitirá ficar livre de suas inibições. Hoje, no entanto, somos bombardeados de todos os lados por diferntes versões da injunção "Goze!", desde o gozo direto no desempenho sexual ao gozo na realização profissional ou no despertar espiritual. O gozo funciona hoje efetivamente como um estranho dever ético: indivíduos sentem-se culpados não por violar inibições morais entregando-se a prazeres ilícitos, mas por não serem capazes de gozar. Nessa situação, a psicanálise é o único discurso em que você tem permissão para não gozar - você não é proibido de gozar, apenas é libertado da pressão para fazê-lo.

(In: Como ler Lacan. Slavoj Sizek. Rio de Janeiro: Zahar, p.113-128)