"Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-político verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra. O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política o sentido de São Paulo: "Para nós não existem nem judeus nem palestinos". Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente "puro" seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o fato de a pequena história brechtiana ser uma evidente variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto - não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar? Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente".
(Violência. Slavoj Zizek. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 106-107).