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quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mãe

"Na entrega daquele homem, logo ali, havia uma sublimação evidente que partiria de uma dor estrutural"- (p. 45).
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"Um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão que para que, tão à frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de amanhã estejamos mais espertos quando pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que  se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que há certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós"- (p.47).
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"Não podemos ficar velhos e miseráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa tomar cuidado com as nossas dores" - (p. 87).
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"Íamos todos progredir. que merda de palavra, o progresso. e o sucesso e tudo quanto o capitalismo usa para nos pôr a competir uns com os outros" - (p. 106).
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"achava que sentir que deus existe é como sentirmos que gostamos de alguém e passamos a vida inteira a creditar na correspondência desse amor para descobrirmos, mais tarde, que a pessoa esteve conosco por inércia, por comodidade. sentir o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios. muita coisa é apenas uma saudade. muitos dos sentimentos. é como lhe digo. sabe, até o suspirarmos por alguma coisa antes da revolução. ó senhor Cristiano, não vai falar outra vez do regime. não é isso, éque é importante pensar nestas coisas, respondia ele, estamos aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom. este é o fascismo remanescente que vem das saudades. sabe, achamos que Salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente era bom é que estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de Salazar" - (p.129).
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"Quem fomos há de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas" - (p. 130).

(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca azul: 2016).


terça-feira, 20 de novembro de 2018

Christopher Robin - um reencontro inesquecível (trecho).

"- Christopher Robin. Que dia é hoje?
- É hoje.
- Meu dia favorito.
- O meu também, Pooh. O meu também.
- Ontem, quando era amanhã, foi um dia muito agitado pra mim".

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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Mamãe & eu & Mamãe - Maya Angelou (trechos)

"Com frequência me perguntam como consegui vir a ser o que sou. Como eu, nascida negra num país branco, pobre numa sociedade em que a riqueza é adorada e buscada a todo custo, mulher em um ambiente que apenas grandes embarcações e algumas locomotivas são favoravelmente descritas com o pronome feminino - como consegui tornar-me Maya Angelou?
Muitas vezes senti vontade de citar Topsy, a menina negra de A cabana do Pai Tomás. Eu me senti tentada a dizer: "Num sei. Eu cresci, só isso". Mas nunca usei essa resposta, por diversos motivos. Primeiro, porque li esse livro no início da minha adolescência e fiquei constrangida coma garota negra ignorante. Segundo, eu sabia a mulher que me tornei por causa da avó que eu amava e da mãe que vim a adorar.
O amor das duas me instruiu, educou e libertou. Morei com a minha avó paterna dos três aos treze anos de idade. Minha avó nunca me deu um beijo durante todos esses anos. Porém, sempre que havia visitas, ela me intimava a ficar na frente delas (...). "Certo, irmã, põe aí 242, depois 380, depois 174, depois 419; agora some tudo". Falava para as visitas: "Agora prestem atenção. Seu tio Willie já cronometrou o tempo dela. Ela consegue terminar em dois minutos. Esperem só".
Quando eu respondia, ela sorria, toda orgulhosa. "Viram? Minha professorinha".
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso apalavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias" - pp.7-8.
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"Senti saudades, mas saia que estavam no melhor lugar para vocês. Eu teria sido uma péssima mãe. Não tinha a menor paciência. Maya, quando você tinha mais ou menos dois anos, você me pediu alguma coisa. Eu estava ocupada conversando, daí você bateu na minha mão, e, sem pensar duas vezes, te dei um tapa tão forte que você caiu da varanda. Isso não significa que eu não te amava; só significa que eu não estava preparada para ser mãe. Estou te explicando isso, não pedindo desculpas. Todos nós estaríamos arrependidos se eu tivesse ficado com vocês" pp.29-30 [Vivian Baxter explicando para a filha Maya o porquê de ter deixado ela e o irmão na casa da avó para que esta os criasse].
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"A única maneira de alguém tirar vantagem e vocês é se vocês acharem que podem conseguir alguma coisa de graça" -p.32
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"Pensei em minha mãe e percebi que ela era impressionante. Ela nunca me fez sentir como se tivesse envergonhado nossa família. O bebê não fora planejado e eutéria que repensar meus planos de estudos, mas, para Vivian Baxter, isso era simplesmente a vida sendo o que é. Ter um filho sem se casar não tinha sido errado. Era apenas algo ligeiramente inconveniente" - p.71
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"Vivian me deu tudo o que podia dar (...). Não refletiu que, sendo ela uma mulher, não poderia ser um homem, que como mãe, era incapaz de ser pai" - p.164

(In. Mamãe & eu & Mamãe. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018).

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A formatura - Maya Angelou (trecho)

"E era mesmo importante, oh se era! Haveria brancos a assistir, e dois ou três falariam sobre Deus e o lar, o estilo de vida sulista, e Mrs. Parsons, a mulher do director, tocaria a marcha da cerimónia, enquanto os finalistas da primária desfilariam pelas coxias e se sentariam abaixo do estrado. Os finalistas do liceu esperariam nas salas de aulas vazias para depois fazerem a sua entrada triunfal.
(...)
O meu trabalho, por si só, granjeara-me um lugar cimeiro e eu seria uma das primeiras a subir ao estrado da cerimónia de final de ano (...). Nem faltas, nem atrasos, e o meu trabalho curricular estava entre os melhores do ano. Conseguia recitar a Constituição mais depressa do que o Bailey. 
(...)
A banda da escola começou a tocar uma marcha e todas as turmas desfilaram como tinham ensaiado. (...)
Donleavy olhou para o público uma vez (...), ajustou os óculos e começou a ler um molho de papéis.
Alegrava-se por estar ali e ver o trabalho realizado, exactamente como nas outras escolas.
(...)
Contou-nos as maravilhosas mudanças que nos esperavam, a nós, crianças de Stamps. Já tinham sido aprovados melhoramentos para a Escola Central (como é óbvio, a escola de brancos era a Central), que entrariam em vigor no início do ano seguinte. Um artista muito conhecido viria de Little Rock dar aulas de educação visual. O laboratório ia receber novíssimos microscópios e equipamento de química. Mr. Donleavy não nos deixou muito tempo sem saber quem é que tornara possíveis esses melhoramentos na Escola Central. E que nós não seríamos ignorados no esquema geral de melhoria que ele tinha em mente.
Disse que tinha referido a pessoas das altas esferas que um dos melhores jogadores da equipa de futebol da Escola Agrária e Técnica de Arkansas tinha estudado na óptima Escola Profissional do Condado de Lafayette. Aqui, ouviram-se menos ámens. Os que interromperam ficaram a pairar com o peso e a insipidez do hábito.
Em seguida pôs-se a elogiar-nos. Contou o quanto enaltecera o facto dos melhores jogadores de basquetebol da Universidade de Fisk ter encestado a sua primeira bola aqui mesmo, na Escola Profissional do Condado de Lafayette.
Os miúdos brancos iam poder tornar-se Galileus e Madames Curies e Edisons e Gauguins, e os nossos rapazes (as raparigas nem sequer eram incluídas nos planos) tentariam ser Jesse Owenses e Joe Louises.
Owens e o Bombardeio Negro eram grandes heróis do nosso mundo, masque direito tinha um funcionário do ensino do reino branco  de Little Rock de decidir que esses dois homens seriam os nossos únicos heróis? Quem é que resolveu que para Henry Read poder comprar um mísero microscópio e se tornar cientista teria de trabalhar como George Washington Carver, a engraxar sapatos? 
(...)
As palavras mortas do fulano caíram como tijolos no auditório e muitas delas - demasiadas - aterraram-me na barriga. Constrangida pelas boas maneiras que tinha aprendido à força, eu não podia olhar para trás, mas à minha direita e à minha esquerda, a orgulhosa turma que terminava ocurso em 1940 tinha deixado cair a cabeça. Todas as meninas da minha fila tinham arranjado uma coisa nova para fazer com os seus lencinhos. Umas dobravam os quadradinhos minúsculos em laços românticos, outras em triângulos, mas a maior parte amassava-os e depois alisava-os no colo amarelo.
(...)
A cerimônia de fim de curso, esse momento mágico de sussurros, folhos, prendas, felicitações e diplomas, acabou para mim antes mesmo de proferirem o meu nome. O que eu conquistara não era nada. Os mapas meticulosos, desenhados a tinta de três cores diferentes, aprender a soletrar palavras decassilábicas, decorar todo O Rapto de Lucrécia... não servira para nada. Donleavy desmascarara-os.
Éramos criadas e lavradores, biscateiros e lavadeiras, e qualquer aspiração a algo mais do que isso não passava de uma farsa e uma presunção.
(...)
Era horrível ser negra e não ter controlo nenhum sobre a minha vida. Era brutal ser jovem e já me terem domado para ficar sossegadinha a ouvir acusações feitas contra a minha cor, sem hipótese de me defender. Devíamos estar mortos, todos nós (...). Enquanto espécie, éramos uma abominação. Todos nós".
(In. Maya Angelou. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona: 2017, pp.173-183).

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sei porque canta o pássaro na gaiola - Maya Angelou (trecho)

"Esse incidente tornou-se uma das pequenas lendas de Stamps. Uns anos antes de o Bailey e eu chegarmos à povoação, um homem foi perseguido por ter agredido sexualmente uma mulher branca. Quando tentava fugir, correu para dentro da Loja. A Mãezinha e o Tio Willie esconderam-no atrás do guarda-fatos até ser noite, deram-lhe mantimentos para uma viagem e mandaram-no ir à sua vida. Foi, no entanto, detido, e no tribunal, quando foi interrogado acerca dos seus movimentos no dia do crime, respondeu que, quando soube que andavam à sua procura, se refugiou na Loja de Mrs. Henderson.
O juiz pediu para convocarem Mrs. Henderson para ser ouvida e, quando a Mãezinha chegou e disse que era Mrs. Henderson, o juiz, o meirinho e outros brancos presentes na sala riram-se. O juiz tinha cometido uma gafe ao chamar "senhora" a uma mulher negra, mas ele era de Pine Bluff e nem lhe passou pela cabeça que a proprietária de uma loja na tal vila pudesse ser negra. Os brancos divertiram-se durante muito tempo à custa desse incidente, e os negros acharam que o corrido era prova do valor e excelência da minha avó" - (p.52).
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   "As pessoas de Stamps costumavam dizer que os brancos da nossa terra eram tão preconceituosos, que um negro nem sequer podia comprar gelado de baunilha. A não ser em 4 de Julho. Nos outros dias, tinha que se contentar com chocolate" - (p.53).
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"Mas, acima de tudo, o que suscitava mais inveja era a riqueza que lhes consentia o desperdício. Tinham tanta roupa que até davam vestidos em perfeito estado, só ligeiramente puídos debaixo dos braços, à turma de costura da nossa escola, para que as meninas mais velhas pudessem treinar.
Embora houvesse sempre generosidade no bairro negro, ela assentava na dor do sacrifício. O que quer que os negros dessem a outros negros provavelmente era tão desesperadamente necessário para quem dava como para quem recebia. Isto levava a que o dar e o receber fossem um intercâmbio precioso.
Eu não compreendia os brancos, nem porque tinham eles o direito de esbanjar dinheiro daquela maneira. Claro está que sabia que Deus também era branco, mas ninguém me convenceria nunca de que era preconceituoso" - (p.53).
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"Mas que mãe e filha se compreendem mutuamente ou sequer se compadecem da sua falta de compreensão recíproca?" -(p.72).


(In. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona, 2017).

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Em 1920 Freud se posicionou a respeito do aborto:



Em 25 de Janeiro de 1920 Sophie Freud, de 26 anos, morreu em um hospital de Hamburgo, onde se suspeita que ela ingressou por conta de um aborto mal praticado.
Em 15 de fevereiro do mesmo ano Sigmund Freud enviou uma carta a Arthur Lippman, médico que atendera a Sophie:
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"Estimado colega.
Le agradezco enormemente su detallado informe de la enfermedad. Por certo, jamás dudé de que usted y el resto de los médicos omitieram nada que hubiese podido contribuir a la recuperación o a mejória de mi hija. Los detalles que me brinda satisfacenenteramente el imperativo médico de lo forzoso e inevitable,es evidente que el caso estaba perdido desde el comienzo.
Lo que me resultó novedoso fue el dato de que el embarazohubiera modificadoa tal punto su estado físico y mental em um sentido desfavorable. Es probable que ya no se pueda evaluar em que medida su falta de resistência a la infección pudo deberse al desmejoramiento de su estado.
Pero el infeliz destino corrido por mi hija me parece albergar em outro aspecto uma advertência que nuestro grêmio no suele tomar muy em serio. En vista de uma ley necia e inhumana que obliga a continuar com el embarazo aun a mujeres que no lo desean, se torna evidente que el médico tiene el deber de indicar los médios adecuados e inócuos para prevenir embarazos (matrimoniales) no deseados.
Mi hija habló conmigo de este tema la última vez que estuve com ella el 19 de sept, ya que ambos jóvenes sufrían intensamente las limitaciones que se habían impuesto. No pude más que indicarle que acudiera al ginecólogo para obtener um pesario oclusivo intrauterino. Pero es evidente que algo salió mal. Espero que estas experiências sirvanpara que los ginecólogos reconozcan cada vez com mayor claridade la imporancia de la tarea que les compete.
Le agradezco sinceramente, estimado colega, las moléstias y sus condolências.
Su fiel
Freud".
(In. Freud. Cartas a sus hijos. Buenos Aires: Paidós, 2012, pp.605-606).


Saiba mais:




sexta-feira, 25 de maio de 2018

Lacan, o libertador da Psicanálise - por Foucault


Lacan. il `libertatore’ della psicanalisi" ["Lacan, o `libertador da psicanálise"; entrevista com J.Nobécourt; trad. A. Ghizzardi), Correre della sera vol. 106. n°212, 11 de setembro de 1981, p. 1.

     - Tem-se o hábito de dizer que Lacan foi o protagonista de uma "revolução da psicanálise". O senhor acha que esta definição de "revolucionário" é exata e aceitável?
     -Acho que Lacan teria recusado este termo de "revolucionário" e a própria idéia de uma "revolução em psicanálise". Ele queria apenas ser "psicanalista". Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito. Por isso é que, apesar de uma aparéncia de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que foram feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.

- Se Lacan, como o senhor disse, não foi um "revolucionário", é certo, contudo, que suas obras tiveram uma grande influência sobre a cultura dos últimos decênios. O que mudou depois de Lacan, também, no modo de "fazer" cultura? 
     - O que mudou? Se remonto aos anos 50, na época em que o estudante que eu era lia as obras de Lévi-Strauss e os primeiros textos de Lacan, parece-me que a novidade era a seguinte: nós descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam sobre uma concepção muito tradicional do sujeito humano, e que não bastava dizer, ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre e, ora com outros, que o sujeito era determinado por condições sociais. Nós descobríamos que era preciso procurar libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente simples do pronome "eu" (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que é tão difícil falar, e sem a qual não podemos falar.
     - Lacan teve muitos adversários. Ele foi acusado de hermetismo e de "terrorismo intelectual.". O que o senhor pensa sobre essas acusações? 
     - Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus textos não fosse simplesmente uma "tomada de consciência" de suas idéias. Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo. Quanto ao "terrorismo", observarei apenas uma coisa: Lacan não exercia nenhum poder institucional. Os que o escutavam queriam exatamente escutá-lo. Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos.

(In. Foucault. Ditos e escritos - vol.1 - Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.Rio de Janeiro: Forense Universitária,2006, 329-330p.).



segunda-feira, 23 de abril de 2018

Lacan & Foucault - Liberdade de expressão

"Além das conjunções de ordens estritamente teórica e institucional, na passagem dos anos 60 para os anos 70, Lacan e Foucault se aproximaram também no plano político. A questão que os reuniu foi a primeira mobilização de jornalistas franceses na defesa da liberdade de expressão.
Assim, o que estaria em pauta foi o que ficou conhecido como o "affaire Jaubert". Jaubert era o nome do jornalista da revista semanal Le Nouvel Observateur que foi agredido pela polícia parisiense no contexto de uma manifestação dos Atilheses, em Paris, na primavera de 1971. Com efeito, Jaubert foi violentamente agredido por policiais quando prestava os primeiros socorros a uma pessoa ferida na manifestação. O Ministério do Interior, além disso, indiciou então Jaubert, por ter supostamente agredido e insultado policiais, na tentativa de justificar o injustificável, qual seja, a agressão realizada pelos policiais contra o jornalista.
Em reação a isso foi então organizada uma comissão para investigar o que tinha de fato tinha acontecido, pois se desconfiava fortemente da versão da polícia. Esta comissão era formada por advogados, intelectuais e jornalistas e diferentes órgãos da imprensa, com colaborações políticas e editoriais diferentes, como Le Fígaro, Le Monde e Le Nouvel Observateur. O que estava em pauta efetivamente era a defesa ostensiva da liberdade de expressão pela comissão que se organizou para avaliar os acontecimentos, que o preocupante episódio em questão evidenciava.
Uma grande conferência de imprensa foi então realizada em 21 de junho de 1971, com a presença de Claude Mauriac, Denis Langlois, o advogado da Liga dos Direitos do Homem, assim como de Gilles Deleuze e de Michel Foucault. A primeira reunião deste grupo se realizara há poucas semanas, no consultório de Lacan, contando assim com a participação deste.
A consequência disso foi a constituição de outra comissão de inquérito que comprovou que a polícia mentira sobre o que se passara efetivamente, para tentar justificar de fato o injustificável, qual seja, a agressão ao jornalista como vingança da polícia para quem ajudasse os manifestantes a se defenderem da violência policial. Enfim, a liberdade de expressão e de manifestação foi então mantida, não obstante as posições não-republicanas da polícia e do Ministério do Interior em relação ao acontecimento.


(In. Lacan e Foucault -conjunções, disjunções e impasses. Joel Birman e Christian Hoffmann. São Paulo: Instituto Langage, 2017, pp. 130-131).

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Correspondência entre Lou Andreas-Salomé e Rainer Maria Rilke para download


"Esta coisa mais real, a qual você escreveu que gostaria de se agarrar quando suas angústias interiores o esvaziam de qualquer sensação e parecem entregá-lo ao desconhecido - essa única coisa real, você já a tem em si, escondida como uma semente, e é por isso que você não se deu conta ainda. Você a possui porque se tornou um arpento de terra onde tudo o que cai, mesmo os menores fragmentos, os pores fracassos, torpeza e detritos, deve sofrer uma elaboração unificadora que constituirá o elemento dessa semente. Portanto, pouco importa que isso se apresente primeiro como um monte de sujeira derramado sobre sua alma: tudo se transformará em terra, em você. Você nunca esteve tão perto da saúde quanto hoje" ( Lou Andreas Salomé para Rilke em 1/8/1903).


Link para download da correspondência entre Lou & Rilke:

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Fotos de Lou com Rilke:


1897

1900

1897

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domingo, 28 de janeiro de 2018

Lou Andreas Salomé fala de Nietzsche

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

"Sem dúvida, um primeiro encontro com Nietzsche nada oferecia de revelador ao observador superficial. Esse homem de estatura mediana, de traços calmos e cabelos castanhos penteados para trás, vestido de maneira modesta apesar de extremamente bem cuidada, podia facilmente passar despercebido. Os traços finos e maravilhosamente expressivos de sua boca eram quase cobertos por completo pelo emaranhado de um espesso bigode pendente. Ele tinha um riso suave, uma maneira de falar sem barulho, um andar prudente e circunspecto que o fazia curvar ligeiramente os ombros. Era difícil imaginar essa silhueta no meio de uma multidão: ela tinha a marca que distingue aqueles que vivem sós e em movimento. O olhar, em contrapartida, era irresistivelmente atraído pelas mãos de Nietzsche, incomparavelmente belas e finas, que ele mesmo acreditava traírem seu gênio. (...) Seus olhos também o revelavam. Apesar de quase cegos, não tinham o olhar vacilante e involuntariamente perscrutador que caracteriza vários míopes. Antes pareciam guardiões protegendo seus próprios tesouros, defendendo segredos mudos sobre os quais nenhum olhar indesejável poderia chegar. Sua visão defeituosa conferia a seus traços um charme mágico sem igual; pois, ao invés de refletir as sensações fugidias provocadas elo turbilhão dos acontecimentos externos, eles reproduziam apenas o que vinha do interior dele mesmo. Seu olhar estava voltado para dentro, mas ao mesmo tempo - para além dos objetos familiares - ele parecia explorar o longínquo - ou, mais exatamente, explorar o que estava dentro dele como se estivesse longe".

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

(In. Dorian Astor. Lou Andreas Salomé. Porto Alegre: LPM, 2015, p. 65).

A diferença invisível - Mademoiselle Caroline & Julie Dachez


"Você que é um dedo do meio à imposição da "normalidade".
Não há nada a curar em vocês, nada a mudar. Seu papel não é se encaixar em um molde, mas sim ajudar os outros - todos os outros - a sair dos moldes em que estão presos. Você não está aqui para seguir um caminho predefinido, mas, ao contrário, para seguir o seu próprio caminho e convidar aqueles ao seu redor a pensar fora da caixa.
Ao abraçar sua verdadeira identidade, aceitando sua singularidade, você se torna um exemplo a ser seguido. Você tem o poder de romper essa camisa de força normativa que sufoca a todos nós e nos impede de viver juntos com respeito e tolerância.
Sua diferença não é parte do problema, mas da solução.
É um remédio para a nossa sociedade, doente de normalidade".

(HQ - trecho da dedicatória - São Paulo: Nemo, 2017).


Vídeo sobre a HQ: