"No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredí-las sem o saber. Contudo, por mais dolorosamente que elas afetem o homem que não tem consciência de qualquer transgressão, sua intervenção, no sentido jurídico, não é ao acaso, mas destino, em toda a sua ambiguidade (...). O mesmo ocorre com a instância que submete Kafka à sua jurisdição. Ela remete a uma época anterior a lei das doze tábuas, a um mundo primitivo, contra o qual a instituição do direito escrito representou uma das primeiras vitórias. É certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais limitadamente" (p.140).
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"A beleza só aparece no mundo de Kafka nos lugares mais obscuros: entre os acusados, por exemplo. É um fenômeno notável, de certo modo científico...Não pode ser a culpa que os faz belos...não pode ser também o castigo justo que desde já os embeleza...só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere a seu corpo. Depreendemos de O processo que esse procedimento judicial não deixa, via de regra, nenhuma esperança aos acusados, mesmo quando subsiste a esperança de absolvição. É talvez essa desesperança que faz com que os acusados sejam os únicos personagens belos na galeria kafkiana" (p.140).
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"Oh não, disse ele, nosso mundo é apenas um mal humor de Deus, um de seus maus dias. Existiria então esperança, fora desse mundo de aparências que conhecemos? Ele riu: há esperança suficiente, esperança infinita, mas não para nós. Essas palavras estabelecem um vínculo com aqueles personagens singulares de Kafka, os únicos que fugiram do meio familiar e para os quais talvez ainda exista esperança. Esses personagens não são os animais, e nem sequer os seres híbridos ou imaginários, (...). Não é por acaso que é exatamente na casa de seus pais que Gregor Samsa se transforma num inseto..." (p.142).
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"Em Kafka as sereias silenciam. Talvez porque a música e o canto são para ele uma expressão ou pelo menos um símbolo para a fuga. Uma esperança daquele pequeno mundo intermediário, ao mesmo tempo inacabado e cotidiano, ao mesmo tempo consolador e absurdo, no qual vivem os ajudantes. Kafka é o rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo. Ele chegou ao palácio de Potemkin, mas acabou encontrando em seu porão Josefine, aquela ratinha cantora, que ele descreve assim: ´existe nela algo de uma infância breve e pobre, algo de uma felicidade perdida e irrecuperável, mas também algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensíveis mas reais, e que ninguém pode extinguir´" (p.144).
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"...o homem de hoje vive em seu corpo como o K ao pé do castelo: ele desliza fora dele e lhe é hostil. Pode ocorrer que o homem acorde um dia e verifique que se transformou em um inseto. O país de exílio - o seu exílio - apoderou-se dele. É o ar dessa aldeia que sopra no mundo de Kafka" (p.151-2).
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"A porta da justiça é o estudo. Mas Kafka não se atreve a associar esse estudo as promessas que a tradição associa ao estudo da Torá. Seus ajudantes são bedéis que perderam a Igreja, seus ajudantes são estudantes que perderam a escrita. Ela não se impressiona mais com a "viagem alegre e vazia". Contudo Kafka achou a lei na sua viagem; pelo menos uma vez, quando conseguiu ajustar sua velocidade máxima desenfreada a um passo épico, que ele procurou durante toda a sua vida. O segredo dessa lei está num dos seus textos mais perfeitos, e não apenas por se tratar de uma interpretação. 'Sancho Pança, que aliás nunca se vangloriou disso, conseguiu no decorrer dos anos afastar de si o seu demônio, que ele mais tarde chamaria de Dom Quixote, fornecendo-lhe, para ler de noite e de madrugada, inúmeros romances de cavalaria e de aventura. Em consequência, esse demônio foi levado a praticas as proezas mais delirantes, mas que não faziam mal a ninguém, por falta do seu objeto predeterminado, que deveria ter sido o próprio Sancha Pança. Sancho Pança, um homem livre, seguia Dom Quixote em suas cruzadas com paciência, talvez por um certo sentimento de responsabilidade, daí derivando até o fim de sua vida um grande e útil entretenimento'.
Sancho Pança, tolo sensato e ajudante incapaz de ajudar, mandou na frente o seu cavaleiro. Bucéfalo sobreviveu ao seu. Homem ou cavalo, pouco importa, desde que o dorso seja aliviado do seu fardo" (p.164).
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1.
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 137-64).