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sábado, 5 de agosto de 2017

A desumanização - Valter Hugo Mãe (trecho)

"Acordei e pensei que não fazia sentido nenhum que a morte doesse.
Sente-se como uma dor no estômago mais a fundo. Como se o estômago estivesse a descer e a querer sair pernas abaixo. O meu pai perguntou: a morte. E eu respondi: não. As flores das mulheres. O sangue apodrece e cheira mais forte. Corre dentro como um bocado de fogo raivoso, porque me arde. Expliquei assim. Mas o meu pai não conversou mais nada. Teve vergonha. A minha mãe disse que era um pequeno vulcão. São as flores das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam. Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o que isso significava de perigo e condenação. Ser mulher, explicavam, era como ter o trabalho todo do que respeita à humanidade. Que os homens era para tarefas avulsas, umas participações quase nenhumas. Como se fossem traves de madeira que se usavam momentaneamente para segurar um teto que ameaçasse cair. Se não valessem pela força, nunca valeriam por motivo algum, porque de coração sempre estavam mal feitos. Eram gulosos, pouco definidos, mudavam com facilidade os desejos, não conheciam a lealdade passional, concebiam apenas engenharias e mediam até os amores pelo lado prático da beleza, gostavam sempre de quem lhes parecesse dar mais jeito, como se procurassem empregadas ao invés de esposas, como se precisassem de precaver os seus próprios defeitos mais do que as virtudes livres das mulheres.
(...).
Se um rapaz entrasse dentro de mim, deixava-me filhos. Sairiam filhos de mim. Como se um saco onde estivessem guardados. Pasmava à espreita das minhas pernas nuas. O cimo das pernas aberto como se estivesse estragado. Podre. Tinha apodrecido igual à minha irmã morta. Pingava e magoava. Cheirava mal. O sangue estava esquisito. Eu disse: a menstruação é o sangue que entristece".
*
(Valter Hugo Mãe. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.19-20).

Vídeo do lançamento do livro em Lisboa em 2014:
 

sábado, 26 de janeiro de 2013

N* 113 - Walter Benjamin


"Esquecemos há muito tempo o ritual sob o qual foi edificada a casa da nossa vida. Quando, porém, ela está para ser assaltada e as bombas inimigas já a atingem, que extenuadas, extravagantes antiguidades elas não poem a nu ali nos fundamentos! Quanta coisa não foi enterrada e sacrificada sob fórmulas mágicas, que apavorante gabinete de raridades há embaixo, onde, para o mais cotidiano, estão reservadas as valas mais profundas. Em uma noite de desespero eu me vi em um sonho re...novar tempestuosamente amizade e fraternidade com o primeiro companheiro de meu tempo de escola, que já há decênios não conheço mais e de que mesmo nesse instante mal me lembrava. Ao despertar, porém, ficou claro para mim: o que o desespero, como uma explosão, tinha exposto à luz do dia, era o cadáver desse homem, que estava emparedado lá, parecendo dizer: quem mora aqui agora não deve assemelhar-se a ele em nada" -
(Walter Benjamin. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.12-3).



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A origem do drama trágico alemão - Walter Benjamin

 
"O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro"- (p.17).
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"...o ser humano é belo para aquele que ama, e não em si. E a explicação está no fato de o seu corpo se representar numa ordem superior à do belo. O mesmo se passa com a verdade: ela não é bela em si, mas para aquele que a busca. Poderá haver nisto uma pontinha de relativismo, mas nem por isso a beleza que deve ser inerente à verdade se torna um epíteto metafórico. Pelo contrário, a essência da verdade como essência do reino das ideias que se representa garante que o discurso sobre a beleza da verdade jamais poderá ser afetado. De fato, aquele momento de representação é por excelência o refúgio da beleza. O belo permanece na esfera da aparência, palpável, enquanto se reconhecer abertamente como tal. Manifestando-se como aparência, e seduzindo enquanto não quiser ser mais do que isso mesmo, atrai a perseguição do entendimento e torna reconhecível a sua inocência apenas no momento em que se refugia no altar da verdade. Eros segue-o nesta sua fuga, não como perseguidor, mas como amante; e de tal modo que a beleza, para se manter aparência, foge sempre dos dois, do entendimento por temor e do amante por angústia. E só este pode testemunhar que a verdade não é desvelamento que destrói o mistério, mas antes uma revelação que lhe faz justiça" - (p.19)
*
"A verdade nunca se manifesta em relação, e muito menos numa relação intencional. O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional (...). O procedimento que lhe é adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. A verdade é a morte da intenção"- (Walter Benjamin. A origem do drama trágico alemão. São Paulo: Autêntica, 2011, p.24)
  

domingo, 12 de agosto de 2012

Fragmentos de Passagens - Walter Benjamin

"A vida só tem um encanto verdadeiro: é o encanto do Jogo. Mas e se for indiferente para nós ganhar ou perder?"(p.421).
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"A reforma da consciência consiste apenas em despertar o mundo ...do sonho de si mesmo" (citando Karl Marx em carta à Ruge Kreuzenach, em set de 1843, p. 499).
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"A moderna produção em massa destrói o senso artístico do trabalho e a idéia de obra: temos produtos, não temos mais obras" (citando Balzac, p. 805).
(Passagens. 1 ed. Minas Gerais: UFMG, 2006).

Fraz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte - Walter Benjamin

"No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredí-las sem o saber. Contudo, por mais dolorosamente que elas afetem o homem que não tem consciência de qualquer transgressão, sua intervenção, no sentido jurídico, não é ao acaso, mas destino, em toda a sua ambiguidade (...). O mesmo ocorre com a instância que submete Kafka à sua jurisdição. Ela remete a uma época anterior a lei das doze tábuas, a um mundo primitivo, contra o qual a instituição do direito escrito representou uma das primeiras vitórias. É certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais limitadamente" (p.140).
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"A beleza só aparece no mundo de Kafka nos lugares mais obscuros: entre os acusados, por exemplo. É um fenômeno notável, de certo modo científico...Não pode ser a culpa que os faz belos...não pode ser também o castigo justo que desde já os embeleza...só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere a seu corpo. Depreendemos de O processo que esse procedimento judicial não deixa, via de regra, nenhuma esperança aos acusados, mesmo quando subsiste a esperança de absolvição. É talvez essa desesperança que faz com que os acusados sejam os únicos personagens belos na galeria kafkiana" (p.140).
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"Oh não, disse ele, nosso mundo é apenas um mal humor de Deus, um de seus maus dias. Existiria então esperança, fora desse mundo de aparências que conhecemos? Ele riu: há esperança suficiente, esperança infinita,  mas não para nós. Essas palavras estabelecem um vínculo com aqueles personagens singulares de Kafka, os únicos que fugiram do meio familiar e para os quais talvez ainda exista esperança. Esses personagens não são os animais, e nem sequer os seres híbridos ou imaginários, (...). Não é por acaso que é exatamente na casa de seus pais que Gregor Samsa se transforma num inseto..." (p.142).
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"Em Kafka as sereias silenciam. Talvez porque a música e o canto são para ele uma expressão ou pelo menos um símbolo para a fuga. Uma esperança daquele pequeno mundo intermediário, ao mesmo tempo inacabado e cotidiano, ao mesmo tempo consolador e absurdo, no qual vivem os ajudantes. Kafka é o rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo. Ele chegou ao palácio de Potemkin, mas acabou encontrando em seu porão Josefine, aquela ratinha cantora, que ele descreve assim: ´existe nela algo de uma infância breve e pobre, algo de uma felicidade perdida e irrecuperável, mas também algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensíveis mas reais, e que ninguém pode extinguir´" (p.144).
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"...o homem de hoje vive em seu corpo como o K ao pé do castelo: ele desliza fora dele e lhe é hostil. Pode ocorrer que o homem acorde um dia e verifique que se transformou em um inseto. O país de exílio - o seu exílio - apoderou-se dele. É o ar dessa aldeia que sopra no mundo de Kafka" (p.151-2).
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"A porta da justiça é o estudo. Mas Kafka não se atreve a associar esse estudo as promessas que a tradição associa ao estudo da Torá. Seus ajudantes são bedéis que perderam a Igreja, seus ajudantes são estudantes que perderam a escrita. Ela não se impressiona mais com a "viagem alegre e vazia". Contudo Kafka achou a lei na sua viagem; pelo menos uma vez, quando conseguiu ajustar sua velocidade máxima desenfreada a um passo épico, que ele procurou durante toda a sua vida. O segredo dessa lei está num dos seus textos mais perfeitos, e não apenas por se tratar de uma interpretação. 'Sancho Pança, que aliás nunca se vangloriou disso, conseguiu no decorrer dos anos afastar de si o seu demônio, que ele mais tarde chamaria de Dom Quixote, fornecendo-lhe, para ler de noite e de madrugada, inúmeros romances de cavalaria e de aventura. Em consequência, esse demônio foi levado a praticas as proezas mais delirantes, mas que não faziam mal a ninguém, por falta do seu objeto predeterminado, que deveria ter sido o próprio Sancha Pança. Sancho Pança, um homem livre, seguia Dom Quixote em suas cruzadas com paciência, talvez por um certo sentimento de responsabilidade, daí derivando até o fim de sua vida um grande e útil entretenimento'.
Sancho Pança, tolo sensato e ajudante incapaz de ajudar, mandou na frente o seu cavaleiro. Bucéfalo sobreviveu ao seu. Homem ou cavalo, pouco importa, desde que o dorso seja aliviado do seu fardo" (p.164).
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 137-64).


segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O autor como produtor - Walter Benjamin

"Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: eles ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande processo de fusão  de formas literárias..." - (p.123-4).
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"A tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor" - (p.126);
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"...o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo" - (p.127).
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"Sabemos, e isso foi abundantemente demonstrado nos últimos dez anos, na Alemnanha, que o aparelho burguês pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até de propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que controlam. Isso continuará sendo verdade enquanto este aparelho for abastecido por escritores rotineiros, ainda que socialistas. Defino o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Afirmo ainda que uma parcela substancial da literatura de esquerda não exerceu outra função social que a de extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público. Isso me traz ao tema da "Nova Objetividade". Ela lançou a moda da reportagem. A questão é a seguinte: a quem serviu esta técnica?" - (p.128).
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"...a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário. Por que? Porque a classe burguesa pôs a sua disposição, sob a forma da educação, um meio de produção que o torna solidário com esta classe e, mais ainda, que torna esta classe solidária com ele devido ao privilégio educacional (...). No escritor, a traição consiste num comportamento que o transforma de fornecedor do aparelho de produção intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da revolução proletária (...). A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer (...). Porque a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado" - (p.135-6).

Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do fascismo, em 27/4/1934.
(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 120-36). 

domingo, 5 de agosto de 2012


"...a perda da aura, a famosa “desauratização”, é um fenômeno que não pode ser reduzido a uma transformação do estatuto contemporâneo da arte. É um fenômeno estético no sentido etimológico amplo de uma transformação da percepção humana, isto é, da percepção do mundo, do(s) outro(s) e de si mesmo. O poeta não é mais o mensageiro dos deuses, mas um produtor de mercadorias (poéticas!). Eros não é mais daimôn (o intermediário, o “demônio” no sentido grego do termo) que estabelece uma ponte entre a vida amorosa e sexual e a veneração da beleza divina transcendente. Parece ter sido encerrado numa fixação narcisista que a ideologia individualista da competitividade e do consumo exacerba. Contra essa “dessublimação repressiva” (Marcuse) a luta só pode ser política e, conjuntamente, estética: não reinventar uma transcendência soberana e distante, mas desconstruir a aparência lisa e comportada do real para nele abrir rachaduras e fissuras que permitem vislumbrar um “longínquo” tão desconhecido como imanente. Somente então poderá Eros ser novamente um verdadeiro demônio” .

(Jeane Marie Gagnebin em: "A questão de Eros na obra de Benjamin. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_01_jeanne_marie_gagnebin.pdf).

Uma carta de amor de Walter Benjamin

Walter Benjamin conheceu Anna Maria  Blaupot ten Cate em maio de 1933, em Berlin, durante a queima de livros pelos nazistas. Tendo reencontrado a amada durante o exílio em Ibiza, Benjamin escreve, aproximadamente em 6/8/33:
"...Você é o que eu jamais poderia amar numa mulher: você ... é muito mais. Das suas feições surge tudo o que a torna de mulher a guardiã (Hüterin), de mãe a puta (Hure).
Você transforma uma em outra e a cada uma confere mil formas. Em seus braços o destino pararia para sempre de me encontrar. Sem susto e sem nenhum risco, ele poderia deixar de me surpreender.
O silêncio profundo que paira em torno de você indica o quão distante você está daquilo que te preocupa. Nesse silêncio acontece a mudança das figuras: seu interior. Elas jogam uma nas outras como as ondas: puta e sibila, ampliando mil vezes.”
(Fonte: citado por Carla Milani Damião no artigo: Pequena incursão sobre imagens femininas nos escritos benjaminianos. Disponível em: http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_04/artefilosofia_04_02_eros_filosofia_03_carla_milani_damiao.pdf).  

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Experiência e pobreza - Walter Benjamin

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (...).
Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras (...).
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.

Escrito em 1933

(Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-9).