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sexta-feira, 30 de julho de 2010

Medo - Marilena Chauí ( trechos)

Uma paixão é mais forte do que outra quando aumenta a capacidade de existir de nosso corpo e de nossa alma.


A liberdade nasce desse e nesse movimento de passagem das paixões tristes às alegres e das paixões de alegria às ações suscitadas pelo desejo e pela alegria. Passagem da heteronomia à autonomia, a perfeição ou realidade é o fortalecimento da força do corpo (imaginar sem tristeza) e da alma (pensar sem tristeza), à medida que nosso corpo torna-se capaz de múltiplas afecções simultâneas e nossa alma capaz de múltiplas idéias simultâneas, conhecendo a necessidade interna que as articula. Capacidade para o múltiplo simultâneo, a liberdade é força para coexistirmos com os demais seres humanos e com a Natureza, sem sermos por eles subjugados e sem precisarmos subjugá-los para viver. (...)

A liberdade, força para o plural simultâneo, é presença a si e aos outros sem o medo da morte recíproca.

(In: Os sentidos da Paixão, Org. Adauto Novaes, 2009, 58p)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A arte

Filme "Sabrina", 1954.

“Através da arte, do pensamento e da paixão podem-se pensar idéia e corpo não como uma relação de comando e obediência, mas como expressão recíproca e autônoma”
Adauto Novaes

O conceito de paixão (trechos)

Gérard Lebrun
Cartier-Bresson na cidade luz

“Domínio das paixões, e não enfraquecimento ou extirpação das paixões. Quanto maior é a força do querer, tanto mais liberdade damos às paixões” – Nietzsche

Cartier-Bresson na Romênia

“Destruir as paixões e os desejos, só por causa de sua tolice e para evitar suas conseqüências desagradáveis, parece-me uma manifestação aguda de tolice. Não admiramos mais os dentistas que extraem os dentes para evitar que incomodem mais” – Nietzsche


Robert Doisneau
Uma vez que as paixões não são nem mórbidas nem demoníacas, sou ainda mais responsável pelo mau uso que delas possa fazer.
Resta que eu possa ter sido vítima de uma infância infeliz (...). Talvez. (...) em compensação (...) na vida há sempre um momento em que cabe a mim não contrair maus hábitos.
(...) Ora, não é verdade que a paixão possa me obrigar, propriamente falando, no sentido em que um lutador mais robusto force seu adversário a curvar-se perante ele.
Como distintivo de minha passividade, não é, porém, uma justificativa. Também não é verdade que ela me torna ignorante daquilo que faço, pois não podemos brincar com a palavra ignorância. Édipo, sem dúvida, ignorava que o viajante que feria fosse seu pai, motivo pelo qual seu parricídio pode ser considerado “involuntário”. Mas aquele que age sob o impulso da cólera ou da luxúria é como um homem que comete um crime em estado de embriaguez: cabe-lhe moderar sua paixão, como cabe ao bêbado não se embriagar.

(...) Se a paixão é um componente de minha natureza e de minha saúde é porque (...) ela é dominável.

“Todo homem com saúde é um doente que se ignora” – Jules Romains

“Nada de grande se fez sem paixão” – Hegel

Cartier-Bresson

(In: Os sentidos da paixão. Org. Adauto Novaes. Companhia de Bolso, 2009)

domingo, 25 de julho de 2010

O curioso caso de Benjamin Button

"A vida não é feita de minutos, mas de momentos"


A armadilha do tempo
Adaptação de conto da década de 20 enfoca o inexorável: a impossibilidade de escapar da castração da finitude
por Erane Paladino
 
O Curioso Caso de Benjamin Button - 166 minutos – Estados Unidos, 2008 - Direção: David Fincher- Com: Brad Pitt, Cate Blanchett e Julia Ormond
Agosto de 2005. A alguns minutos da chegada do furacão Katrina, uma senhora no leito de morte, em Nova Orleans, Estados Unidos, abre seu diário e seu coração para a filha, num relato que recupera mais de oitenta anos de amor e segredos. Este é o fio condutor da trama apresentada em O curioso caso de Benjamin Button, adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), lançado na década de 20. Com direção de David Fincher, em 2008, o filme parte da Primeira Guerra Mundial, nos idos de 1918, e chega ao início do século XXI.
Em seu depoimento, Daisy (Cate Blanchett) confessa seu amor por alguém incomum: um homem que nasce velho e rejuvenesce ao longo do tempo. Este é Benjamin Button. Abandonado recém-nascido e, por ironia do destino, criado num asilo, conhece-a ainda menina. Embora distantes por algum tempo, comunicam-se por cartas; Benjamin torna-se navegador e Daisy, bailarina de sucesso. Apesar dos universos e destinos diferentes, o tempo permite o encontro e os dois vivem uma história de amor, no ambiente cheio de esperanças dos anos 60.
Sob este prisma, o filme parece tratar de mais uma história comum, com amor, sofrimento e descobertas. Mas é nas sutilezas que mostra singularidade e poesia. Nesta tonalidade, a primeira lembrança confessada diz respeito a um relojoeiro quase cego, recomendado para fazer uma instalação na estação de trens. O inesperado ocorre na inauguração,quando todos vêem o relógio correr ao contrário. Para seu criador, era uma tentativa de fazer o tempo voltar e recuperar seu filho morto na guerra.
Benjamin é encantado pelo mar e pela força de seu Capitão Mike (Jared Harris). Apaixona-se por Daisy, mas vive passivamente este sentimento, enquanto a jovem vive intensamente. Envolve-se com a esposa de um diplomata que sonha (e realiza na velhice) atravessar a nado o canal da Mancha. A atitude do personagem sugere o ditado da sabedoria oriental, de placidez e complacência diante dos limites e circunstâncias. Suas restrições físicas, decepções amorosas e desafios não o levam à revolta. Nas diferentes situações, parece contemplativo, embora o mundo à sua volta fervilhe. Neste trecho da história, determinada pelo pós-guerra, pela revolução sexual e pela explosão de jovens atuantes, Button rejuvenesce a cada dia, embora seu olhar lembre resignação.
O contraste talvez repouse numa questão importante: embora os limites do tempo sejam intransponíveis, a vida é movimento e surpresa. Freud, em Além do princípio do prazer (1920), fala da luta entre as forças pulsionais de vida e de morte, movimento gerador de uma tensão inerente à condição humana. Como interagem a cada momento de prazer e relaxamento, uma nova força propulsora surge, gerando nova excitação, fruto da impossibilidade de satisfação ou do repouso absoluto, que seriam a morte. Quando se está vivo não caberá o definitivo, no campo das experiências e da vida psíquica. O desejo, então, depende da falta e de um sentimento de incompletude que, para a psicanálise, promove laços, desencontros, embates, paixões, a arte e, enfim, a cultura. De forma bem articulada, o enredo apresenta os momentos em que esperanças e frustrações seriam inevitáveis.
Como se perdoasse os altos e baixos dessa condição, Button é, ao mesmo tempo, protagonista e espectador, cercado por este mundo vibrante. Se não nos é possível escapar dos limites do tempo e da finitude, resta saborear as oportunidades oferecidas e contar coma força vital. Essa configuração de vida, morte e transformação ganha sentido especial com a chegada do furacão Katrina, que invade com águas violentas a cidade – e a fábrica de relógios. Vale lembrar Mario Quintana “...porque o tempo é uma invenção da morte, não o conhece a vida verdadeira, em que basta um momento de poesia, para nos dar a eternidade inteira”.

Erane Paladino é psicóloga clínica, coordenadora e professora do Departamento de Psicodinâmica do Instituto Sedes Sapientiae, autora do livro O adolescente e o conflito de gerações na sociedade contemporânea (Casa do Psicólogo)
 Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_armadilha_do_tempo_imprimir.html

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Pilar & Saramago


"A Pilar, que não deixou que eu morresse"
Saramago, em A viagem do Elefante

"A Pilar que ainda não tinha nascido e tanto tardou a chegar."
Saramago

"Saramago é um ser excepcional, a sua dimensão é distinta e o seu perfil não é o habitual, por isso há tanta gente que não o entende"
Pilar

É Pilar del Rio, a jornalista, espanhola de Sevilha, agora viúva de José Saramago, que conta como o conheceu e como se identificaram tanto por serem marxistas e apaixonados pela literatura. Encontraram-se pela primeira vez em 1986 e o primeiro passeio que fizeram foi ao Cemitério dos Prazeres onde visitaram o túmulo de Fernando Pessoa.
Daí em diante, a literatura se encarregou de unir os dois, um senhor e uma jovem mulher (...)
A literatura parece primar por histórias assim, aos olhos do mundo incompreensíveis, mas que a todos encantam por realizarem o mito das almas gêmeas. Casaram-se e passaram a morar inicialmente em Lisboa, onde Pilar se sentia em casa, cumprindo a passagem bíblica de “o teu povo será o meu povo, a tua casa será a minha casa”.
O escritor e, frise-se, também poeta, José de Souza Saramago, nascido em Azinhaga, no Ribatejo/Portugal, em 16 de novembro de 1922 e falecido em 16 de junho de 2010, em Lanzarote, _ uma ilha espanhola, nas Ilhas Canárias, onde vivia com a mulher e musa. Nobel de Literatura e Prêmio Camões, sofreu perseguições da igreja católica pelas suas declarações e posições políticas. Não negou seu ateísmo.
Casaram-se Saramago e Pilar duas vezes, uma em Lisboa, 1988, e outra em Granada, Espanha, em 2007. Viveram 22 anos em harmonia. A única filha de Saramago, do primeiro casamento, Violante, está aos 63 anos de idade, portanto à frente de Pilar.
Sobre o que mais apreciava no marido, a segura e inteligente jornalista e tradutora de sua obra, María del Pilar del Rio Sánchez, disse em entrevista:
“La coherencia que tiene. Es que no hay posibilidad de distinción entre la persona y el escritor. Es un hombre de una sola pieza y es coherente de la mañana a la noche y de la noche al día.”
Saramago não acreditava na vida eterna e sim no amor, e sobre este disse: "Nossa única defesa contra a morte é o amor". Segundo Anabela Mota Ribeiro, afirmou sobre Pilar o escritor: “mais do que um anjo, uma mulher. Podia ser qualquer outra, dirá você. Pois, mas é esta. A diferença está aí. De anjo tem muito pouco. É de carácter demasiado forte”. E foi por ela que o escritor se tornou “el hombre que paró todos sus relojes a la misma hora solo por amor”, a hora em que conheceu Pilar.

Nota-se nas leituras sobre este tema que não era um amor espetacular, no sentido de show, mas um amor grandioso, moderno. Saramago, como vimos, frisou do caráter firme da sua mulher e não a compararia a um anjo, mas a uma mulher mesmo.
Fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/homenagens/2328303

Só em teus braços - João Gilberto

Uma música em homenagem ao homem que amo com toda a minha alma...


Sim,
Promessas fiz,
Fiz projetos, pensei tanta coisa,
E agora o coração me diz
Que só em teus braços, meu bem,
Eu ia ser feliz
Eu tenho esse amor para dar,
O que é que eu vou fazer?
Eu tentei esquecer
E prometi,
Apagar da minha vida este sonho,
E vem o coração e diz
Que só em teus braços, amor,
Eu ia ser feliz
Que só em teus braços, amor
Eu ia ser feliz...

terça-feira, 20 de julho de 2010

Travessuras de uma menina (trecho) - Clarice Lispector


Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara e me transformar em mais do que o rei da Criação. Fizera de mim a mulher do rei da Criação. Pos logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera sem nojo da dor. Para que servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que não doa mais, meu amor (...) Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto (...)
(In: A descoberta do mundo, 1984, 409-10p)

domingo, 18 de julho de 2010

A Arte e a vida

Estes desenhos são de uma amiga que é artista:

Passei  o final de semana pensando num poema que combinasse com os desenhos mas nenhum digno o suficiente me veio a memória...
Até que o poeta Fernando Pessoa me acudiu:
"Belo é tudo aquilo que, sem nenhuma intelectualização, é objeto de satisfação do espírito".
Ao lembrar do que Pessoa disse, veio à tona o motivo pelo qual acho belo os olhos do meu amor...
E o porquê d´eu amar o mar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Perguntas e respostas para um caderno escolar - Clarice Lispector


-Qual é a coisa mais antiga do mundo?
-Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
-Qual é a coisa mais bela?
-O instante de inspiração.
-E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de sua maior inspiração?
-O Universo sempre existiu. O Cosmos é Deus.
-Qual das coisas é a maior?
-O amor, que é o maior dos mistérios.
-Das coisas qual é a mais constante?
-O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança.
-Qual é o melhor dos sentimentos?
-O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma das minhas verdades.
-Qual é o sentimento mais rápido?
- O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
-Qual é a mais forte das coisas?
-O instinto de ser.
-O que é mais fácil de se fazer?
-Existir, depois que passa o medo.
-Qual é a coisa mais difícil de realizar?
-A própria relativa felicidade que vem do conhecimento de si mesmo.
(Depois as perguntas se tornaram mais complicadas).

(In: A descoberta do mundo, 1984, 478-9p).

terça-feira, 13 de julho de 2010

A perigosa aventura de escrever - Clarice Lispector

"Minhas intenções se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras".

Isso eu escrevi uma vez. Mas está errado, pois que, ao escrever, grudada e colada, está a intuição. É perigoso porque nunca sei o que virá - se se for sincero.Pode vir o aviso de uma destruição, de uma auto-destruição por meio de palavras. Podem vir lembraças que jamais se queria vê-las à tona. O clima pode se tornar apocalíptico. O coração tem que estar puro para que a intuição venha. E quando, meu Deus, pode-se dizer que o coração está puro? Porque é difícil apurar a pureza: às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor. E tudo isso pode-se chegar a ver - e ter isso é irrevogável. Não se brinca com a intuição, não se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortalmente o caçador. 
(In: A descoberta do mundo, 1984, p.271-2).

sábado, 10 de julho de 2010

Jacques Lacan - A Psicanálise reinventada

Um filme escrito por
Elisabeth Kapnist
e
Elisabeth Roudinesco
Realizado
por
Elisabeth Kapnist

Conferência de Louvain disponível no youtube em 7 partes:

Conferência de Louvain, 1972


Jacques Lacan: - Estão ouvindo?
- Não ouvem! (Risos)
....
(Colocando o microfone, que estava sob a gravata, sobre a gravata...)
- E agora, me ouvem?
- Ainda não?...
.....
- Como?
- Ouve-se?
- De modo que a gravata era um obstáculo.

Nunca tenho a menor intenção de dar uma conferência, mas tenho um ensino. Tenho feito isso durante... durante... sim... durante muito tempo. Estou há dezessete anos fazendo isso.

Reinventar a Psicanálise

Narrador: Freud pensava que a Psicanálise era uma revolução do espírito, que deveria ser acolhida com confiança pelo mundo. Considerava o inconsciente como um depósito de forças pulsionais que se encontravam constrangidas nas profundidades biológicas da alma.
Explorador do artifício da palavra, Jacques Lacan foi o único herdeiro de Freud que abandonou esse romantismo da ciência procedente de Darwin para revelar o caráter subversivo da Psicanálise. Lacan converte o inconsciente numa estrutura de linguagem cuja lógica formal se desenvolve como uma fuga de Bach ou um poema de Mallarmé. Eu sou o único que leu Freud, disse.

Jacques Lacan: Considerando que tiveram a amabilidade de apresentar-me, vou abordar a difícil tarefa de fazer-lhes entender esta noite, digamos, alguma coisa.

Christian Jambet (Filósofo): Para se entender realmente a passagem de Freud a Lacan e a importância da Psicanálise com Lacan, há que se voltar para uma reconstrução total dos conceitos, como, por exemplo, o conceito de Sujeito. Como caracterizar o Sujeito no momento em que aparece claramente a doutrina lacaniana? No fundo, ele aparece a partir de vários elementos. Em primeiro lugar, o Sujeito é o que deve ser pensado na construção do Eu, porque, antes de se deter profundamente no Sujeito, Lacan se interroga primeiramente sobre o Eu. Porém, em Freud, entretanto, esse conceito se ergueu sem muito mistério sobre seu sistema percepção-consciência. Em Lacan, sob a influência filosófica, no célebre momento do escrito sobre O estádio do espelho, ele deu nesse resultado, de quê? do outro. Quer dizer que meu Eu é essa imagem de mim mesmo, é o Eu especular que se reflete no espelho como outro e que nesse outro se pode explicar de maneira simples, e aí nesse outro põe-se algo bastante enigmático, o que logo chamará Sujeito. De modo que o eu é essencialmente ilusório, o lugar de ilusão. Assim é como Lacan enfoca o Sujeito.

Narrador: O estádio do espelho é o momento durante o qual a criança, entre os seis e os dezoito meses, antecipa o domínio de sua unidade corporal pela captação de sua imagem no espelho.

Em 1936, Lacan inspira-se na lenda de Narciso, condenado pelos deuses a contemplar seu próprio reflexo. Quando o sujeito reconhece o próximo, alcança a socialização e desprende-se do mundo interior centrado no eu. Ao contrário, quando retrocede ao narcisismo primário, abandona-se num universo fechado onde o outro não existe.

Elisabeth Roudinesco (Historiadora da Psicanálise): É preciso ver a contribuição de Lacan como um quadro moderno. Lacan já não representa o universo clássico das imagens, mas o universo da pintura moderna. É a pintura de Picasso face à pintura clássica. O nariz se deslocou, os olhos se moveram, as imagens estão fraturadas, toda a modernidade está representada, enquanto Freud representa uma imagem muito mais clássica do Sujeito. Precisamente por isso, podemos relacionar Lacan ao Barroco: tudo está deformado. É como se fosse Freud, porém desmedido.

Narrador: Nascido em Paris em 13 de abril de 1901, no seio de uma família de vinagreiros orleanenses, Jacques Lacan pertencia à média burguesia católica política e bem pensante. Com seu irmão menor, Marc-François, que virá a pertencer à ordem dos beneditinos, Lacan manterá uma relação privilegiada.
Durante seus estudos no Colégio Stanislas dedica-se à obra de Nietzsche e de Spinoza e mais tarde rejeita o catolicismo. Daqueles anos passados em uniforme, guardará a convicção íntima de que as saídas psíquicas mais violentas surgem sempre no interior de coletividades aparentemente submetidas à maior normalidade.
Lacan sente-se incompreendido por seu pai, que lhe destina o comércio da mostarda. Assim, entra na modernidade do século 20, por meio de uma rebelião intelectual. Deseja explorar a raiz da loucura, cuja sombra havia percebido no seio de sua própria família, e orienta-se para a Psiquiatria.
No Hospital Sainte-Anne, enfrenta o sofrimento de um asilo e apaixona-se pela paranóia, uma forma de loucura tão coerente que Freud a comparava com um sistema filosófico. Lacan faz da paranóia um modo de relacionamento lógico, inscrito no coração da personalidade humana.

Christian Jambet: Naturalmente, poderíamos nos perguntar pelo próprio tema da paranóia. Sabemos que teve muita importância para Lacan, pois foi o tema de sua tese de doutoramento – da mesma forma que o surrealismo por meio de Salvador Dali. Então, a paranóia é a busca da verdade, e a suposição do paranóico é a de que apesar da desordem das aparências, em alguma parte se esconde uma realidade de cuja existência está plenamente convencido e que confere sentido a tudo o que ocorre à sua volta e essa realidade é, geralmente, um complô ou um crime urdido contra ele. E precisamente essa é a própria estrutura de nossa busca do conhecimento. Portanto, quando dizemos conhecer as coisas obscuras, as coisas ocultas, assim como fazem os céticos, todos nós somos essencialmente paranóicos. Assim, a paranóia ou a psicose revelaria a própria estrutura desse desejo de conhecer que desde Aristóteles todos sabemos que é o desejo da ciência. E eu creio que isso fascinava Lacan, porque isso significa que o fundo [a essência] do espírito é delírio e que, se o fundo do espírito é delírio, a verdade, afinal, segue essa busca delirante.

Narrador: Em 1930, os psiquiatras de sua geração, marcados pela expansão da Psicanálise, interessam-se tanto pelos estudos do delírio como pelas atitudes passionais das mulheres histéricas. A histeria e a paranóia esboçam para elas o mesmo que para os poetas surrealistas os estranhos contornos de uma verdade convulsiva que as remete aos extravios de um mundo vítima de um declínio dos valores clássicos da razão e do progresso.
Em 1932, Lacan publica sua tese de medicina, dedicada ao estudo de um caso de paranóia feminina. Nela ele relata o destino de uma mulher perseguida, saída de um meio modesto.

Elisabeth Roudinesco: É a história de uma empregada dos Correios que sonha com outra vida, que comete uma tentativa de assassinato na pessoa de uma célebre atriz da época, Huguette Duflos, que fracassa em sua tentativa. Depois da tentativa de assassinato de Huguette Duflos - daquela atriz de teatro, Margueritte Pantaine, Margueritte Anzieu – é o caso Aimée –, é internada no Hospital Sainte-Anne, e ali ela é confiada ao cuidado de Lacan, que ainda não é psicanalista, mas psiquiatra, e ele vai fazer uma descrição fascinante, que interessará a todo o meio psiquiátrico e literário da época. E essa mulher, no fundo o que Lacan mostra nessa história de paranóia, de autopunição, é que, ao atacar a atriz, ela estava atacando seu ideal de Eu, aquele com o qual mais se identificava.

Narrador: No ano seguinte, 1933, as irmãs Papin, Christine e Lea Papin , na cidade de Mans, assassinam selvagemente sua patroa. Como no caso Aimée, Lacan mostra que o verdadeiro móvel do crime não é o ódio de classes, mas a estrutura paranóica por meio da qual um sujeito ataca o ideal de amor que tem dentro de si.
Segundo Lacan, essa loucura feminina assemelha-se a um teatro da crueldade, surgido de um tempo imemorial. É a manifestação contemporânea de uma tragédia clássica realizada.
A partir de 1934, Lacan assiste ao Seminário de Alexandre Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, a partir de 1837, e ainda não traduzida para o francês. De origem russa, Kojève oferece a seus ouvintes um comentário perspicaz do texto de Hegel, apoiando-se em exemplos concretos tirados da história política do momento. Georges Bataille e Raymond Queneau são adeptos desse ensino autoral de quem Lacan imitará o estilo.

Christian Jambet: O que, por exemplo, Lacan retira das reflexões de Kojève é a insistência com que o sistema hegeliano, em função da dialética entre Senhor e escravo, e a dialética entre Senhor e Escravo, que tem sua origem na luta de morte das consciências, permitiu a Lacan conceber o Sujeito e que o Sujeito seja dividido; e, efetivamente, por explorá-lo de uma maneira muito esquemática, o gênio hegeliano consistiu em descobrir que quando tento tomar a consciência de mim mesmo, quer dizer de minha existência, vejo-me obrigado a solicitar reconhecimento da dita existência a outro, e, como conseqüência, o outro se converte em senhor de meu próprio ser. Lacan gosta extremamente da lógica hegeliana, segundo a qual meu discurso tem sua causa no Outro e o toma ao pé-da-letra. Pois bem, já que a causa do discurso é sempre o Outro, existe um lugar do Outro, um verdadeiro lugar do Outro, que é precisamente esse tesouro de significantes em que, de certa maneira, se constitui, para mim, alíngua. Alíngua é real, mas vem estruturar-se nesse lugar Outro, e isso é o que me proporciona os fragmentos do discurso que vou articular e, por outro lado, o lugar do Outro é ao mesmo tempo o lugar onde se organiza a estrutura mesma do meu desejo.

Narrador: Em 1934, Lacan casa-se com Marie-Louise Blondin com quem tem três filhos: Caroline, Thibaut e Sybille. Três anos depois de seu matrimônio enamora-se da atriz Sylvia Bataille, cuja família, de origem judia, emigrou da Romênia. Naquela época, ela estava separada do escritor Georges Bataille, de quem era esposa legítima e com quem teve sua primeira filha, Laurence, que mais tarde se tornará psicanalista.
Durante a ocupação, refugiada na zona livre, Sylvia terá com Lacan uma segunda filha, Judith, nascida em 1949. Finalizada a guerra, Lacan casa-se com Sylvia, mas, em acordo de Marie-Louise, oculta aos filhos de seu primeiro matrimônio a existência dos do segundo lar. Teórico do amor e do gozo feminino, Lacan buscará sintetizar os refinamentos de uma sedução da qual saberá descrever todos os enganos.

Jacques Lacan: O Real, para o ser falante, é o que se perde em alguma parte. Mas onde ?Aí está em que Freud finca pé: ele se perde na relação sexual. É absolutamente fabuloso que ninguém articulará isso antes de Freud, já que é da própria vida dos seres falantes que se trata; que nos perdemos nas relações sexuais é evidente, é incontestável, está alí desde sempre, e, ao final, até certo ponto continua sendo assim. Se Freud centrou as coisas na sexualidade, é na medida em que a sexualidade do ser falante balbucia, porque se dá conta de que há o sentimento de que algo que se repete em sua vida, sempre a mesma e que é essa sua verdadeira essência. O que é essa coisa que se repete? Uma certa maneira de gozar.

A mulher não existe.
Amar é dar o que não temos a alguém que não o quer.
O desejo do homem é o desejo do Outro.
Lacan tinha a arte de inventar sentenças e de expressá-las com o sentido do humor.

Narrador: Juliette Mitchell, militante feminista, comprometida com a luta anticolonial, foi a primeira a introduzir o pensamento de Lacan no mundo anglófono, antes de converter-se ele mesma em psicanalista.

Juliette Mithchell: Na Inglaterra, eu espero não adornar a realidade trazendo à prova a nostalgia do passado, creio que nos apropriamos de Lacan. Freqüentemente nos acusaram, freqüentemente me acusaram de trair o pensamento de Lacan, mas creio que foi uma apropriação com fins políticos. Nós é que fomos demasiados estúpidos para entender suas sutilezas. Certamente é uma possibilidade, mas essa não era a razão principal daquela situação. O que nós queríamos é que Lacan servisse a nós, à nossa reivindicação política das esquerdas, e, ao mesmo tempo, que servisse ao feminismo. O feminismo conduziu a Inglaterra com um forte slogan: tudo o que é pessoal é político. Mas as mulheres, nós não aparecíamos em nenhuma estatística sobre educação ou sobre o trabalho nos anos 60; nós, as mulheres, não existíamos como categoria. Tínhamos esquecido que as mulheres não eram uma categoria, e a teoria de Lacan falava dessa não-categoria das mulheres. Portanto, Lacan tinha um duplo interesse. Em seus primeiros escritos interessou-se muito pela família e logo se dedicou àquilo que quase se converteu em um slogan: A mulher não existe, sublinhando o A. Essa combinação de não-existência das mulheres ou de A mulher e o interesse pela família falava precisamente da situação em que nos encontrávamos na cultura inglesa daquela época.

Elisabeth Roudinesco: Lacan destaca algo específico da mulher, das mulheres, do gozo feminino, da sexualidade feminina, mas sem convertê-lo em algo natural, sem introduzir o conceito de naturalidade nesse tema, sem atribuir o papel maternal automaticamente, porém, somente capta uma espécie de loucura feminina.

A tradição de hospitalização de enfermos está ligada à medicina hospitalar. Consistia em exibir um paciente perante um auditório de médicos (facultativos) e de estudantes para que esses fizessem perguntas cuja significação profunda se supunha que lhes escapava. Os atores desse ritual treinavam durante anos de retiro/internamento, e manifestavam em realidade todos os sintomas que os diretores dos asilos esperavam deles.
Lacan rompe com essa clínica do olhar para dar lugar à palavra aos enfermos.
Analisado por Lacan, o psicanalista Jean-Bertrand Pontalis assistiu a essas apresentações, ao mesmo tempo em que participava do famoso seminário cujo resumo transcrevia.

Jean-Bertrand Pontalis: Lacan era extraordinariamente, eu diria até, cortês com seus enfermos, tratando-os não como pacientes de asilo, mas, realmente, como – é o mínimo, vocês me dirão, mas nem sempre era o caso – como seres humanos. E pouco a pouco os impulsionava, criando uma autêntica atmosfera de confiança: devem expressar-se com plena liberdade. Vou contar-lhes uma anedota bastante curiosa: lembro-me de que havia uma mulher paranóica que se queixava de que a seguiam por todas as partes: Me seguem, me seguem, me seguem, me seguem. E Lacan par acalmá-la lhe disse: Não se preocupe, querida senhora - porque decerto era uma senhora - vou procurar alguém que a siga, referindo-se a um médico que acompanhara seu caso e a tratara. Paralelemente, estava no seminário que dava no Sainte-Anne, no Anfiteatro que lhe havia oferecido o professor Jean Delay, de modo que as duas coisas funcionavam completamente, ao mesmo tempo Lacan dava muita importância à assistência a seu seminário. Lembro que uma ou duas vezes faltei às aulas e me falou como se faz com um colegial que gazeteia e me deu uma boa reprimenda: Por que não veio quarta-feira? Não o vi etc. E porque funcionava simultaneamente, porque ali estavam aqueles seminários que eram para mim os grandes anos de Lacan, um Lacan extraordinariamente brilhante, estimulante. Todos os que assistíamos a ele, ainda que não formássemos legião, éramos cerca de uma centena, tínhamos a sensação de estar participando – não só de assistir – mas de estar participando do nascimento da Psicanálise, de sua reinvenção, como se fôssemos pioneiros, como, talvez, puderam ser os primeiros discípulos de Freud. Era uma palavra. Eu insisto muito nisso: o movimento, como se ele mesmo, naqueles anos, estivesse também inventando e inventando-se a si mesmo, aquilo era o que nos dava um certo entusiasmo, que participávamos, eu diria que quase de acordo com ele, em ressonância com ele, em um movimento inventivo.

Narrador: Depois da Segunda Guerra Mundial, sem renunciar à herança da filosofia alemã, Lacan volta-se para o estudo das estruturas simbólicas da subjetividade. Apoiando-se nos trabalhos do antropólogo Claude Lévi-Strauss e do lingüista Roman Jakbson, faz do inconsciente um lugar de uma cadeia de significantes.

Elisabeth Roudinesco: Lévi-Strauss teve uma importância considerável em seus trabalhos. Por quê? Porque o problema que resolveu de certo modo Lévi-Strauss com as estruturas elementares do parentesco foi mostrar que a proibição do incesto, isto é, esse corte, essa obediência à lei do Simbólico, no fundo representa o passo da Natureza à Cultura. Em outras palavras o homem não se proíbe o incesto porque o horroriza, mas porque deseja o incesto. Isso Freud já havia assinalado, mas Lévi-Strauss mostra que é algo estrutural das relações de parentesco. Desse modo, passamos à organização estrutural das relações de parentesco que determina as estruturas simbólicas da sociedade e essas estruturas simbólicas estão dominadas por umas regras que são as regras da linguagem.

Christian Jambet (filósofo): O que é a cadeia significante? A cadeia significante é as estrutura básica do inconsciente, isto é, da linguagem do discurso tal como o crê o sujeito humano, visto que os homens se definem pela fala. Por que falamos de cadeira significante? O conceito procede naturalmente da Lingüística de Ferdinand de Saussure e do que conhecia de Jakobson, etc, mas o que quero dizer é que, quando falamos, mobilizamos um movimento totalmente aleatório de estruturas, isto é, diferenças de linguagem. A linguagem está marcada por diferenças, diferenças de fonemas, diferenças de palavras. Essas diferenças articulam-se seguindo uma lógica, e Lacan fala de uma cadeia porque os significantes se encadeiam segundo uma lógica, e a cura analítica deve encaminhar-se para tornar manifesta essa lógica que é comum a todo sujeito. Mas essa cadeia não se fecha, ou melhor, se fecha como um final ausente, é diretamente infinita, não se fecha como uma pulseira. É como uma pulseira cujo fecho se tivesse soltado. E esse ponto de onde salta é, segundo Lacan, a causa de tudo, como dizia Lenine, com quem se relaciona em outro tempo Lacan, uma cadeia é tão forte como a força de seu trabalho mais forte, que é seu tabalho mais débil, por um interessante laço. Pois bem, é o trabalho mais débil que dá sua coerência à cadeia e, ao mesmo tempo, o que chegou com os casos de Sainte-Anne; e esse trabalho é o objeto do desejo, objeto do desejo que chamará objeto pequeno a, pequeno a porque é outro, sempre é outro objeto, porque é sempre outro objeto que vemos, de modo que é sempre radicalmente outro, é de tal modo outro que não podemos representá-lo.

Jacques Lacan: A experiência nos mostra que falo de uma linguagem, que eu falo a linguagem com que todos vocês cresceram e que cada um recebeu, digamos a palavra, em sua família, não é? E não é alguma coisa que lhes foi transmitida sem veicular, ao mesmo tempo, toda uma realidade trêmula e vacilante, feita do desejo de seus pais. É conforme a formação de cada um, essa incidência da mãe, da língua materna, é alguma coisa que é ao mesmo tempo um princípio, que é para lá que se volta o amor.

Narrador: Pioneira da Psicanálise, Marie-Bonaparte considerava-se, em 1950, como a única herdeira francesa de Freud, cuja adesão/acordo ??? .......... celebrava fielmente com o apoio da IPA (International Psychoanalytical Association), fundada por Freud, em 1910. A IPA estava então dominada por uma corporação de honoráveis clínicos, majoritariamente anglófonos, e pouco abertos às virtuosidades das especulações lacanianas. Criticado pelos defensores daquela legitimidade Lacan abandona a Sociedade Psicanalítica de Paris e participa em 1953, com Daniel Lagache, Serge Leclaire, Vladmir Granoff e François Perrier da criação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Sua amiga Françoise Dolto, fundadora de um novo enfoque psicanalítico da infância, oferece-lhe seu apoio.

Elisabeth Roudinesco: De modo que funda a Sociedade Francesa de Psicanálise, que durará dez anos e que será um caldo de cultura para toda a juventude da época. E é Lacan que vai, como analista, controlador e mestre, iniciador e estimulador, por meio dos seus seminários que têm lugar no Hospital Sainte-Anne naquele momento, e da apresentação dos enfermos, se converte em grande renovador, um grande reinventor da Psicanálise na França, e a primeira geração tem a sensação de ser a pioneira em algo novo, algo novo ao redor de Lacan, mas ao mesmo tempo desejam permanecer na IPA. É nessa legitimidade freudiana em que já não estão, porque seus mestres estão demitidos. A característica de Lacan é que enfrenta o conjunto, que se toma por Freud e é o único e que diz: eu retorno a Freud, eu retorno ao sentido de Freud. Não pós-freudismo, nem tampouco deixar Freud para trás. De modo que se apresenta como re-fundador, e o re-fundador é transgressivo, não respeita nenhuma regra, mas para a IPA resulta incaceitável, e não só pela duração das sessões. Estão dispostos a aceitar os ensinos de Lacan, aceitam totalmente seus ensinos, mas só se permanecesse na IPA como filósofo teórico, nunca como formador de alunos. Desse modo, Lacan vai encontrar-se numa situação totalmente distinta da de Freud, sendo fundador e, ao mesmo tempo, diretor da Escola, isto é, que Lacan ao fundar a Escola Freudiana de Paris em 1964, vai exercer funções que Freud nunca exerceu. Será ao mesmo tempo cabeça pensante, analista e chefe político de sua Escola, isto é, que acumula todas as funções, enquanto Freud havia delegado o poder, digamos, político, a seus discípulos.

Narrador: Eu fundo – tão só como sempre estive na minha relação com a Causa Psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise, cuja direção assumirei pessoalmente durante os próximos quatro anos, pois nada me impede de responder, pessoalmente, pela direção.

Única em seu gênero, a aventura da Escola Freudiana de Paris acabará 16 anos mais tarde, em 1970. Graças a ela, Lacan pôde situar o desejo de ser analista no coração mesmo da formação de futuros didatas.

O inconsciente continuará sendo o centro do ser para uns, enquanto outros acreditarão seguir-me fazendo dele a realidade. A única forma de sair das dúvidas é colocar o que é o real, que não tem nada a ver com nenhuma realidade. O real como impossível de dizer, ou seja, na medida em que o real é o impossível, simplesmente.

Jean-Bertrand Pontalis: A verdade é que produz em mim um efeito curioso, quase uma estranheza inquietante, porque estou ouvindo a voz de Lacan e, ao mesmo tempo, o imitei tantas vezes que já não é transferência, não morte, que já não sei muito bem se é a minha [voz] que escuto ou a dele, isso em toda a sua extensão, com esse suspense como falava há pouco, com essa fórmula definitiva que, e sem dúvida é, totalmente enigmática: O Real é o impossível, o impossível é o real. Tanto que te sentes um pouco perdido, e te dizes a ti mesmo: pode ser genial ou pode ser eu que não entendo nada.
Mas me lembro do que disse Lacan ao começar o seminário com gente como Merleau-Ponty, Hyppolite, Monet, Ricoeur, muitos outros, no entanto, parecia-me estar a escutá-lo enquanto dizia, dirigindo-se a eles e não ao auditório em geral: (Imitando Lacan): Aí está, enfim, vocês não me compreendem... Na verdade, é que não posso dizer que me comova, porque tinha um lado um pouco comediante, ou muito, talvez. Gostava de adornar-se, da mesma maneira que se adornava com ostentação, com suas jaquetas, seus colarinhos, seus culebras, famosos charutos retorcidos.

Françoise Dolto: Quando começou seus seminários, interessou-me muitíssimo e, quando eu entendia algo, parecia-me genial, porque, em poucas palavras, ele levava uma experiência de múltiplos casos, e nisso consiste a simbolização. Então eu me dizia: Esse homem fala dessas coisas e o que eu não entendo deve ser da mesma onda/linha/ordem. Havia muito trabalho para entendê-lo, mas devo confessar que, apesar de meus esforços, quando assistia àqueles seminários – e o fiz durante muito tempo – estão aí algumas pétalas de conhecimento, mas restará de preferência, um clima, talvez em lá menor.

Narrador: Foi em Roma, em 1953, nessa cidade que amava apaixonadamente, a ponto de regressar a ela sem cessar, que Lacan definiu os três termos principais de seu ensino, durante um discurso dirigido aos memebros da Sociedade Francesa de Psicanálise: O Simbólico, o Imaginário e o Real, os três registros pelos quais introduzo um ensino que não pretende inovar, mas restabelecer algum rigor na experiência da Psicanálise, e aí estão, jogando em estado puro em sua relação mais simples.

Christian Jambet: Os três registros, por meio dos quais Lacan quis restabelecer a dignidade da Psicanálise, três registros que estão enodados entre si. Isso é o que ele quer dizer: três conceitos fundamentais no sentido da mais antiga tradição filosófica: o platonismo, o aristotelismo e o historicismo tinham conceitos fundamentais. É impressionante escutar essa pretensão da fundação. E o Real é o que permite enodar-se ao Simbólico e ao Imaginário e enodar-se a si mesmo e aos demais, de modo que, se separarmos um dos outros, os três termos, a estrutura fundamental do ser se desfaz.

Elisabeth Roudinesco: O que é o Imaginário para Lacan? É o lugar das ilusões do ser, mas, cuidado, essas ilusões existem, formam parte de nosso psiquismo, vivemos num mundo de ilusões, de representações, que marcam nossa vida e que permanecem sempre. Daí o famoso tópico de Lacan sobre os três termos importantes: Simbólico, Imaginário e Real. O Simbólico, que de algum modo é prioridade, que nos determina, que se faz Lei; é a função simbólica no sentido de Claude Lévi-Strauss, é a idéia de que estamos dominados por estruturas, estruturas que podem ser sociais, simbólicas, ou estruturas de linguagem; o Real é o que escapa a toda simbolização; é o lugar da loucura, das pulsões, do emergir do ilimitado.

Christian Jambet: De modo que o Real suscita o Imaginário e o Simbólico e se articula com eles. Mas realmente, creio que é preciso entender o Real lacaniano como a falta, como se costuma dizer, e dado o caso de que só pode manifestar-se no nada, mas o nada é o que está aí, o que retorna aí, não o existente que está aí, senão é isso o fato de estar aí, isto é, e é nesse sentido que Lacan é um formidável realista, e o conecta com todas as grandes escolas realistas da filosofia.

Narrador: Em 1963, o filósofo Louis Althusser convida Lacan para a Escola Normal Superior, embarcando ele mesmo numa leitura estrutural da obra de Marx que procura desligar o comunismo e sua derivação stalinista e lhe oferece um brilhante auditório de jovens alunos em busca de uma revolução cultural que tem a China como horizonte. Entre eles Jacques-Alain Miller, que se entrega com entusiasmo ao serviço dos textos lacanianos. Mais tarde se casará com Judith e se converterá no redator dos seminários de seu sogro. Em 1966, durante o célebre colóquio de Baltimore sobre o pensamento francês, Lacan conheceu o filósofo Jacques Derrida.

Jacques Derrida: Ele tentou simultaneamente me seduzir e me atrair para seu terreno, para sua disciplina, por assim dizer, mas ao ver que eu não me prestava a esse jogo, desencadeou-se a guerra, a agressão, e, apesar de tudo, eu lutei comigo mesmo, creio que também contra aquela situação, lutei para não responder nem ao apelo sedutor nem à agressão. Creio que nunca disse, e com o passar do tempo – refiro-me a depois de sua morte – que eu já sabia que se passaria isso quando ainda vivia, com o passar do tempo, no fundo, acabei por gostar daquela situação, por amar aquela lembrança, mas já havia passado, foi uma espécie de fim de guerra e silêncio, muito silêncio, um enorme silêncio.

Narrador: Com a publicação de seus Escritos em 1966, Lacan converte-se em um pensador reconhecido, admirado por seus alunos e odiado por seus adversários.
Na Sala Dussane da Escola Normal, inúmeras assembléias dispõem-se a ouvi-lo. O escritor Philippe Sollers descreverá de forma lírica as harmonias e dissonâncias da grande encenação desses seminários: Lacan aparece na tribuna com gravata borboleta, como um santo, como um monge, cavalheiro e pregador de um outro tempo. Lacan é a lentidão pontuada, o suspiro, a paixão tortuosa, a grandeza, a anedota, o labor, a burla, o insulto, o tom intermitente, o pontilhismo interminável, o tédio profundo, a palavra espirituosa, o sublime.
Ali está o Lacan místico, o Lacan humorista, o Lacan ancestral, o Lacan D. Juan, o Lacan satã, o Lacan charlatão, o Lacan malicioso, o Lacan ruidoso, o Lacan vaidoso, o Lacan brincalhão, o Lacan bufão, sussurante, Lacan bufante, sedutor.
Há o Lacan puro, há o Lacan .... o Lacan opressor/incômodo e o verdadeiro. O surpreendente é que tudo isso dá como resultado uma regra exata de uma alegre sabedoria.

Jacques Lacan: Durante algum tempo, acreditou-se que os psicanalistas sabiam alguma coisa, mas essa crença já não é muito grande. O cúmulo dos cúmulos é que sequer eles crêem em si mesmos. Mas estão equivocados. Porque justamente sabem muito. Só que, assim como o inconsciente – e é essa sua verdadeira definição – não sabem que sabem.

Narrador: Desde 1950, Lacan havia colocado sob interdição o ritual das sessões cronometradas de cinqüenta e cinco minutos, impostas pela I.P.A. (International Psychoanalytic Association) e destinadas a preservar os pacientes e os alunos em formação do poderoso influxo/influência transferencial de seus mestres. Lacan pulveriza essa regra, inventa a sessão de duração variável, que leva o analista a intervir no tratamento por meio de cortes ou interpretações, com a finalidade de que o paciente explore mais rapidamente seus fantasmas inconscientes e perca menos tempo em enunciar palavras vazias.
Em 1971, profundamente afetada pelo suicídio de sua irmã, a psicanalista portuguesa Maria Belo decide realizar com Lacan uma segunda etapa de análise.

Maria Belo: Creio me lembrar que foi uma das primeiras vezes em que me referi ao falecimento de minha irmã. Eu me recordo que estava chorando muito e não tinha lenço; ele se deu conta e saiu para trazer-me um e, bem, eu fiquei com ele porque era um lenço de verdade, não um lenço de papel, era um lenço de mulher, um lenço muito bonito. Assim, levei-o para lavá-lo e devolvê-lo na próxima vez, e me dei conta de que era um lenço muito antigo, porque estava um pouco rasgado, era de seda, e de uma forma imaginária de transferência, eu passei algum tempo – não sei muito bem como se diz em francês – cuidando daquele lenço, fazendo uma espécie de encaixe ao redor daquele rasgo que de fato tinha muito que ver, de uma forma simbólica, com o rasgo que me havia levado até ele. A qualidade de sua presença havia que desencadear um trabalho, cada sessão desencadeava um enorme trabalho analítico em mim, até o ponto em que, quando chegava a minha casa, escrevia cartas de várias páginas, que logo depositava em seu console nos intervalos das sessões, e penso que tudo o que havia feito até então, pois já havia feito alguns anos de análise, que todos aqueles anos haviam sido como uma preparação, uma preparação para o que ia desencadear-se naquele momento.

Narrador: Aos setenta anos, angustiado por não haver dedicado bastante tempo a transmitir seu ensino, Lacan começa a realizar sessões analíticas com todos os discípulos que lhe professam um amor incondicional. Sem justificação clínica, transforma progressivamente a experiência da cura em um laboratório do extremo e acaba reduzindo a duração da sessão a uns poucos minutos.

Elisabeth Roudinesco: Lacan instaurou aquele método até a prática de dissolução da sessão, primeiro porque, em sua situação de mestre solicitado, não podia recusar a análise a nenhuma pessoa, e, por outro lado, sua paixão se traduzia numa escuta muito particular, inclusive quanto a ausência de tempo, que era substituída por outra coisa distinta no estúdio da Rua Lille e de seu apartamento. Aqueles que viveram essa experiência levada ao limite ao limite do impossível, porque aquelas sessões ultrabreves eram como algo impossível, poderiam extrair coisas negativas e às vezes coisas positivas, mas participaram de uma aventura única.

Maria Belo: O que aprendi da análise lacaniana foi sobretudo a forma de cortar a sessão, quer dizer, servir-se do corte de uma sessão como uma forma de interpretação, ou como uma maneira de fazer sentir, compreender e escutar o que o paciente acaba de dizer ou o que está dizendo. Também penso (X)que o que Lacan fazia com aquelas sessões tão curtas estava muito relacionado com o que ele era. Se o pensarmos naquela época, a época dourada, pois não o conhecia como era antes, naquela época dourada da Escola Freudiana, em que era praticamente um mito, pois muita gente o mitificava, Lacan sentia a necessidade, em termos de transferência, de fazer reagir as pessoas, de fazer coisas que nenhuma outra pessoa pôde depois fazer.

Jacques Lacan: Transferência é amor. Pura e simplesmente. E por que amamos um ser semelhante? Vou deixar a pergunta no ar no momento.. Eu lhes dei uma fórmula, e lhes falei a propósito da transferência em termos cheios de armadilhas, como sempre, como em tudo o que eu digo, naturalmente. Por que diria outra coisa quando se trata precisamente disso? Do que há no inconsciente, isto é, que a linguagem não serve, nunca serviu, não só nos permite formular senão coisas que têm três, quatro, cinco, dez, vinte e cinco sentidos, o sujeito suposto saber.

Juliette Mitchel: É interessante ver como Lacan teve muito êxito nos departamentos literários, ou cinematográficos das universidades, devido ao seu amor pela teoria, embora estivesse relacionado clinicamente com o mundo anglo-saxão geral. Há razões bastante complexas para essa maquinação clínica de Lacan. Pelo lado positivo, sua teoria exerceu uma enorme influência no mundo universitário. Sem dúvida pelo aspecto negativo, foi realmente denegrido por seu trabalho clínico. Certamente era um clínico difícil e, durante o desenvolvimento de sua prática, aconteceram algumas coisas que lhe valeram uma má reputação. Na Inglaterra, corriam muitos rumores sobre o número de suicídios, e a simples idéia de que Lacan estava coqueteando com a psicose assustava as pessoas, e é certo que ele o fazia. Sua prática clínica, à imagem de sua concepção teórica, estimulava de certo modo o lado psicótico, aquilo que se considerava muito perigoso, e seguramente o era.

Narrador: Contrariamente a outros clínicos, Lacan sempre havia aceitado analisar pacientes psicóticos ou suicidas, e às vezes não conseguia evitar a passagem ao ato.
No final de sua vida, fascinado pelas matemáticas, Lacan esboça inúmeros desenhos tratando de formalizar por de figuras topológicas os três elementos fundamentais de sua doutrina.
Vítima de problemas cerebrais, Lacan vai perdendo progressivamente a palavra diante dos ouvintes de seus seminários. Todos olham o velho silencioso, privado daquele grande arrojo fulgurante e trágico que havia mantido diante de gerações de intelectuais e de facultativos (ouvintes de modo geral).

Christian Jambet: O que pretendia fazer naquela última etapa? Que pretendia? Segundo, parecia falar cada vez menos. Por meio desse silêncio parecia decifrar por meio de um estranho pitagorismo, parece que colocar em evidência não só o rigor das estruturas inconscientes senão o real em si mesmo, o nó lhe servia para tentar transmitir não só o real como verdade ou o real como inexprimível, senão o real como o que está aí, em sua maior nudez e em sua maior insignificância. A queda de uma corda e ao mesmo tempo seu enrolar-se. O que resta quando isso se desfaz? Um nada, o nada, não o nada e, ao mesmo tempo, esse nada forma uma coisa mais complexa, ou seja, todos esses nós da linguagem a que estamos atados e que tecem nossa vida.

Jacques Derrida: Não posso conceber que alguém que estivesse tão comprometido como ele, com tanta paixão, não só pelo significante senão pela verdade, tal como ele a concebia, essa palavra com tanta paixão pela verdade, sendo tão difícil fazer entender o próprio sentido da palavra verdade, não posso conceber que uma pessoa assim pudesse viver de outra forma que não fosse tragicamente. É justamente isso que me ajudou a evitar qualquer resposta agressiva a Lacan. Não me atreveria a dizer que, como eu, mas eu pensava que aquele homem teria de assumir uma responsabilidade trágica, a responsabilidade de assumir uma tragédia, e que, apesar de suas concepções, de sua aparência, de sua pompa e dos sistemas que fazia, devia sofrer secretamente dessa ferida. E eu o senti, ou ao menos o pressenti, e o respeitei.

Elisabeth Roudinesco: Certamente foi ele quem melhor e da forma mais moderna soube colocar os laços do homem com a verdade de seu desejo desnudado. A questão do Real, a questão da violência na História, o homem em Auschwitz, como os teóricos da Escola de Frankfurt, Lacan evocou sem cessar a capacidade do homem para ir muito longe na destruição de si mesmo, ou seja, viveu o que Freud havia pressentido. Lacan é também a perda das ilusões com as revoluções, era algo muito importante. O que restará quando tivermos perdido todas as ilusões com o compromisso revolucionário? Lacan é um pensador estético, é verdade, mas ao mesmo tempo, apaixonado. O compromisso, a possibilidade de crer em algo, isto é, no desejo que ainda existe, e por isso o sujeito não deve desesperar, mas a única coisa que pode contar é a ética do desejo, pois é a única coisa que nos resta. Não lutar contra nosso desejo, esse é o heroísmo moderno.

Jacques Lacan: A morte entra no domínio da fé. Fazemos bem em crer que vamos morrer, certamente isso nos dá forças. Se não acreditarem nisso, poderiam vocês suportar a vida que levam? Se não estivessem solidamente apoiados nessa certeza de que há um fim, como é que vocês poderiam suportar essa história?

Jacques Lacan morreu em 9 de setembro de 1981.
Eu sou obstinado (...) Eu desapareço.



(Nota final)
Distribuídos em inúmeros paises, especialmente na Europa e na América Latina, os freudianos de obediência lacaniana reagruparam-se em inúmeras associações. A maioria fez o luto da figura do mestre e abandonou sua prática transgressiva. Em todas as partes do mundo, eles contribuíram para que a Psicanálise encontrasse um novo alento. Quanto à obra de Lacan, ela está sempre inacabada e sempre cheia de futuro.


Saudade - Clarice Lispector


Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

Beijo na Times Square

Reza a lenda que um dos beijos mais famosos da fotografia do século XX foi experenciado entre desconhecidos. O soldado voltava do combate, estava feliz com o final da Segunda Guerra, jurou que beijaria na boca a primeira moça bonita que encontrasse em solo americano.
Durante o desfile comemorativo avistou uma voluntária da Cruz Vermelha.
E um artista eternizou o momento.

Uma mente brilhante


Há uma infinidade de filmes que eu gostaria de comentar; tamanha variedade me deixa confusa.
Como estou numa urgência de amor, vou começar por este que narra a história de John Nash, Nobel de Física e esquizofrênico paranóide. Para os que não sabem lidar com as impossibilidades, vale escutar o que Nash declarou ao seu grande amor durante a cerimônia de entrega da sua honraria em Estocolmo, Suécia, em dezembro de 2004:


" O que é mesmo a lógica?
Quem decide o que é racional?
Tal busca me levou através da Física, da Metafísica, do delírio, e de volta.
Então eu fiz a descoberta mais importante da minha carreira, a descoberta mais importante de minha vida.
É somente nas misteriosas equações do amor que alguma lógica real pode ser encontrada.
Eu só estou aqui esta noite por sua causa.
Você é a razão pela qual existo.
Você é toda a minha razão. Obrigado"

Vinícius de Moraes - Um beijo

Para homenagear Vinícius (faz trinta anos que ele nos deixou, não sei o que estão comemorando!), deixo este poema:


Um minuto o nosso beijo
Um só minuto; no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantos milhares de bocas
Uivando de sofrimento0!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros
Tornados o último adeus
Quantas tíbias, quantos fêmures
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
Com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo a extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, a punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de nascituros
Atirados nos valdios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta nos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortos de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto infarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto luto!...
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida, de tanta morte.

O Beijo - Gustav Klimt

Esse quadro tem uma longa história. Um dia a conto pra vocês.

Sylvia Lacan

O senso comum pode sim, transmitir sabedoria. Um dito popular afirma: por trás de todo grande homem, há uma grande mulher.

Apresento Sylvia Lacan:
Judia, atriz, desposou um dos filósofos mais polêmicos do século XX, Georges Bataille. Posteriormente, conheceu Jacques Lacan, que descreveu como sendo um homem fascinante, inteligente, inovador. Após se conhecerem, a atriz e o psicanalista se apaixonaram irremediavelmente, e não mais se deixaram.
Como atriz trabalhou sob a direção de Renoir, filho do famoso pintor das banhistas. Sylvia era interessada por política, artes, e os que a conheceram a descrevem como dona de uma beleza sem par e um coração grande; tanto é verdade que durante a crise advinda da 1a Grande Guerra, trabalhou  em todas as peças que encontrava, em papéis menores, para ajudar no sustento da família.

Sylvia mantinha um precioso círculo de amizades com filósofos, pintores, literatos e afins. Graças a ela, Lacan pode se aproximar ainda mais dos artistas pelos quais mantinha interesse, chegando a se tornar o médico pessoal de Pablo Picasso.

Nesta foto, podemos ver Lacan (1) com Sartre (9), Picasso (5), Simone de Beauvoir (8) dentre outros.

Podemos conhecer melhor a história de Sylvia através de uma bela tese desenvolvida por Jamer Hunt, "Absence to Presence", disponível em: http://scholarship.rice.edu/bitstream/handle/1911/16832/9610654.PDF?sequence=1

"Sylvia Lacan: My last husband changed my life considerably, that is true.
Jamer Hunt: For the reasons? Because he...
SL: He was a man who worked enormously hard. Tremendously intelligent. You know who he is.
JH: of course".