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domingo, 31 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou (II)

 
"Ora, o que se constata? Que, no esquema romântico, a relação da verdade com a arte é de fato imanente (a arte expõe a descida finita da Idéia), mas não singular (pois se trata da verdade, e o pensamento do pensador não se coaduna com nada que difere do que o dizer do poeta desvela). Que, no didatismo, a relação é certamente singular (só a arte pode expor uma verdade sob a forma de aparência), mas de modo algum imanente, pois em definitivo a posição da verdade é extrínseca. E que, finalmente, no classicismo, trata-se apenas do que uma verdade coage no imaginário, sob a forma do verossímil.
Nos esquemas herdados, a relação das obras artísticas com a verdade jamais consegue ser ao mesmo tempo singular e imanente.
Afirmar-se-á, portanto, essa simultaneidade. O que também se diz: a própria arte é um procedimento de verdade. Ou ainda: a identificação filosófica da arte depende da categoria de verdade.
A arte é um pensamento cujas obras são o real (e não o efeito). E esse pensamento, ou as verdades que ele ativa, são irredutíveis às outras verdades, sejam elas científicas, políticas ou amorosas. O que também quer dizer que a arte, como pensamento singular, é irredutível à filosofia.
Imanência: a arte é rigorosamente coextensiva às verdades que prodigaliza.
Singularidade: essas verdades não são dadas em nenhum outro lugar a não ser na arte.
Nessa visão das coisas, o que ocorre com o terceiro termo do entrelaçamento, a função educativa da arte? A arte educa simplesmente porque produz verdades e porque "educação" jamais quis dizer nada além (a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas) do seguinte: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer.
A coisa pela qual a arte educa é simplesmente a sua existência.
Trata-se apenas de encontrar essa existência, o que quer dizer: pensar um pensamento.
A filosofia deve, a partir de então, no que diz respeito à arte e a todo procedimento de verdade, mostrá-Ia como tal. A filosofia é de fato a intermediária dos encontros com as verdades, a alcoviteira do verdadeiro. E da mesma maneira que a beleza deve estar na mulher encontrada, mas não é absolutamente exigida da alcoviteira, as verdades são artísticas, científicas, amorosas ou  políticas, e não filosóficas".
Continua...
*
 (In.Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p.20-1).
 


sábado, 30 de março de 2013

Arte e Filosofia - Alain Badiou



Por "inestética" entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte.

Alain Badiou, abril de 1998


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Laço que desde sempre é alterado por um sintoma, o de uma oscilação, de um batimento.
Nas origens, existe o repúdio sustentado por Platão acerca do poema, do teatro, da música. De tudo isso, deve-se dizer que o fundador da filosofia, evidentemente refinado conhecedor de todas as artes de seu tempo, só dá importância, na República, à música militar e ao canto patriótico. Na outra extremidade, encontra-se uma devoção piedosa em relação à arte, um ajoelhar-se contrito do conceito, pensado como niilismo técnico, diante da palavra poética que oferece sozinha o mundo ao Aberto latente de seu próprio desamparo.
 
 
Mas o sofista Protágoras já designava, afinal, o aprendizado artístico como a chave da educação. Havia uma aliança de Protágoras e de Simônides, o poeta cuja impostura o Sócrates de Platão tenta frustrar e sujeitar a seus próprios fins a intensidade pensável. Vem-me à mente uma imagem, uma matriz analógica do sentido: filosofia e arte são historicamente acopladas tal qual são, segundo Lacan, o Mestre e a Histérica. Sabe-se que a histérica vem dizer ao mestre: "A verdade fala por minha boca, estou aqui, e tu, que sabes, diga-me quem sou." E adivinha-se que, por maior que seja a sutileza douta da resposta do mestre, a histérica lhe dará a entender que ainda não é isso, que seu aqui escapa à apreensão, que se deve retomar tudo e redobrar esforços para lhe agradar. Nesse momento, ela ruma para o mestre e torna-se sua cortesã. E, da mesma maneira, a arte já está sempre aqui, dirigindo ao pensador a questão muda e cintilante de sua identidade, enquanto, por sua constante invenção, por sua metamorfose, ela declara-se decepcionada com tudo o que o filósofo enuncia a seu respeito. O mestre da histérica praticamente não tem outra escolha, caso demonstre má vontade à servidão amorosa, à idolatria que deve pagar com uma produção de saber estafante e sempre decepcionante, a não ser lhe passar o cetro. E, da mesma maneira, o mestre filósofo permanece dividido, no que diz respeito à arte, entre idolatria e censura. Ou dirá aos jovens, seus discípulos, que o cerne de qualquer educação viril da razão é manter-se afastado da Criatura, ou acabará por conceder que só ela, esse brilho opaco do qual só podemos ser cativos, nos ensine sobre o viés por onde a verdade comanda que o saber seja produzido.
Continua.....
*
(Pequeno manual de inestética. Sao Paulo: Estaçao cultural, 2002, p.11-2).

quinta-feira, 28 de março de 2013

Zizek em São Paulo


Questionado sobre o porquê de estar editando um jornal para a classe menos privilegiada, uma vez que era um banqueiro, Kane responde:
"Se eu não defender o interesse dos privilegiados, então uma outra pessoa irá fazê-lo. Talvez alguém sem nenhum dinheiro ou propriedade, talvez eles mesmos comecem a defender os seus privilégios; e a gente não quer isso" -
 
(Zizek citando um diálogo do filme Cidadão Kane, de Orson Wells, na conferência de 8/3/13, em SP).
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Link para a conferência de Zizek no youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=IKDQ7ZJ3Aho

Conversas de botequim - (I)



Na fila de entrada para um evento marxista, encontrei uma senhora que comentava enfaticamente sobre o seu orgulho em não ter permitido que a sua filha adolescente assistisse ao fenômeno de bilheteria "Titanic".
Perguntei: - Mas por que não?...
- Porque o filme foi uma infâmia, lavagem cerebral. Pão e circo. Nada de bons valores sociais que pudessem sensibilizá-la.
-Não? E o drama da família burguesa que beirava a crise? E por que o romance entre Jack e Rose era mal visto? Mais, por que Rose se viu arrebatada por Jack? Mais: Por que haviam tantos imigrantes na terceira classe do navio? Mais ainda: E quanto as condições do navio, a luta dos ocupantes da terceira classe para se salvarem, dentre as classes sociais ocupantes, quem se salvou em maior número, e a custa de quem? Enfim, tem certeza de que sua filha não teria nada com o que ficar sensibilizada?
A inflamada senhora emudeceu.
Se Marx e Engels encontravam nos romances de Balzac, burguês autoproclamado, elementos de reflexão, quem somos nós para fazer por menos? Nada mais atual que o velho provérbio revisitado, a maldade da alienação está naquele que olha mas não vê, algo tanto ou mais assustador quanto as nosssas mazelas sociais, caros companheiros.

terça-feira, 19 de março de 2013

Diário da tua ausência - Margarida Rebelo Pinto (I)

"É possível que no meu patrimônio genético exista o gene da espera, herdado das avós das avós das minhas avós, séculos a fio repletos de gerações de mulheres que viveram toda a sua vida à espera dos homens, desde a reconquista de Portugal, escondidas nas pequenas aldeias do norte  sob a proteção do condado. Depois, até o reinado de D. Afonso IV, enquanto combatiam a mourama. E mais tarde, na era dos Descobrimentos, quando partiam em naus e caravelas e ficavam por lá, a plantar a bandeira de Portugal nas praias que iam conquistando, erguendo padrões e fortes onde podiam, desde a costa africana até às Índias, passando pelo Brasil e por tantos outros lugares.
As mulheres portuguesas sempre esperaram pelos homens e a isso chamo a vocação de Penélope, a sábia e sensata mulher de Ulisses que esperou vinte anos pelo marido, sem nunca permitir que nenhum outro homem se casasse com ela e usurpasse o trono de Ítaca. A lenda não revela se ela satisfez as suas necessidades sexuais com outros homens, por isso nunca saberemos se a mulher do guerreiro era mesmo um modelo de abnegação e sacrifício, ou apenas sabia como fazer as coisas. O que conta é o que a lenda reza e a lenda diz que Penélope nunca cedeu ao medo, nunca deixou de acreditar que um dia Ulisses voltaria (...).
Como é incompleta a Odisséia! A história devia ter contado os milhares de trabalhos de Penélope a tentar defender a sua casa e o seu coração (...). De que valem Cíclopes aterradores, ilhas encantadas, cercos de guerras que duram dez anos e sereias que fazem naufragar navios, comparados com a luta pela sobrevivência de um amor incerto e sem garatias durante mais de vinte anos, num tempo em que ausência não tinha outra resposta que não fosse o silêncio e desconhecimento? Penélope era forte. Não desistiu de esperar, mesmo sem telefones, e-mails, ou mensagens escritas.
A história da humanidade esqueceu-se de contar a outra história, a história de todas as Penélopes...".
(In: Diário da tua ausência. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012, p.12-15).
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Penélope retratada na arte:









domingo, 17 de março de 2013

O dia em que te esqueci - Margarida Rebelo Pinto (II)

 
"Não há culpa nem mérito em tudo o que o destino decide por nós, muito menos quando somos ainda umas crianças e o inesperado nos atinge na maior fragilidade e esmaga os nossos virgens espíritos.
A tua natureza fugidia e arisca não é a tua primeira natureza, antes uma reação à realidade com que  te confrontaste. Nunca te habituaste a dar. Quando eras ainda uma criança, a tua vida mudou tão repentinamente que eese choque só é comparável a um refugiado de guerra" - (p.27).
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"É mais fácil arrancar uma árvore com todas as suas raízes do que esquecer a intimidade" - (p.31).
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"Nunca tive medo da luz, nem tampouco me assustei com a minha sombra, mas aprendi a ver nas trevas dos outros a grandeza da minha própria escuridão, e demorei demasiados anos a a aceitar que, se há coisas que nunca se agarram, o amor é uma delas. Sempre que tentas correr atrás dele, brinca com a tua dor, faz-se de gato da Alice, que escarnece de nós para desaparecer em seguida, brincando aos impostores como Oz, o feiticeiro, que se divertia a ser mau, só para provar que a maldade é uma força indomável, com vida própria, que não vale a pena tentar domesticar ou fingir ignorar. O amor aparece para alterar o rumo da tua vida, e acaba sempre por conseguir, quer queiras, quer não" - (p.30-1).
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"Se não crer em si mesmo é um sinal de fraqueza, de si nunca duvidar é outro, e ainda mais ridículo" - (p.57).
 
(Margarida Rebelo Pinto. O dia em que te esqueci. Rio de Janeiro: Bertrand, 2012).


sexta-feira, 15 de março de 2013

O dia em que te esqueci - Margarida Rebelo Pinto (I)

"Todas as famílias escondem tragédias, guardam segredos e revelam idiossincrasias. Lembro-me de uma frase de Lucía Etxebarría que te enviei há alguns anos e que adotaste como uma das tuas poucas verdades: as únicas famílias felizes são as que se conhecem mal.
Ambos sabemos muito bem quanta sabedoria está contida em tal afirmação. Várias vezes aludiste à falta de intimidade que tens com a tua família, sempre com o cuidado de nunca a confundires com ausência de afeto ou proximidade.
A intimidade é outra coisa, e disso sabemos nós. A nossa assusta-te tanto, que ainda foges dela".
(O dia em que te esqueci. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p.16-7)