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domingo, 29 de outubro de 2017

A vida com Lacan - Catherine Millot

"Houve um tempo em que eu tinha a sensação de ter aprendido o ser de Lacan em sua essência. De ter uma espécie de intuição de sua relação com o mundo, um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas, e também com ele próprio. Era como se eu houvesse deslizado para dentro dele.
Essa sensação de apreender sua essência ia de par com a impressão de estar compreendida, no sentido de estar integralmente incluída nessa sua compreensão, cuja extensão me ultrapassava. Seu espírito - sua amplitude, sua profundidade -, seu espírito mental, englobava o meu como uma esfera que contivesse outra menor (...). Não ter nada a dissimular, nenhum mistério a preservar, dava-me uma total liberdade com ele, mas não só. Uma parte essencial de meu ser lhe era entregue, ele tinha sua guarda, eu me sentia aliviada. Vivi a seu lado anos a fio nessa leveza.
Um dia, contudo, ele manipulando as rodelas de barbante que ele tanto gostava de modelar e, de repente, me disse: "está vendo, isso é você". Eu era - como qualquer um, não importa quem - aquele real que escapava ao seu controle, que tanto mal lhe fazia. Vi-me bruscamente compelida a levar em conta o que em mim lhe resistia como só o real resiste.
Quando digo "seu ser", o que entendo por isso? Sua particularidade, sua singularidade, o que nele era irredutível, seu peso de real. Quando hoje tento apreender novamente esse ser, é seu poder de concentração que retorna, sua concentração quase permanente em um objeto de pensamento que ele nunca abandonava. Com o tempo, ele se simplificara ao extremo. De certa maneira, não era nada além disso, essa concentração no estado puro. Ela se confundia com seu desejo, o qual se tornava tangível.
Eu a encontrava em sua maneira de andar, projetado para a rente, a cabeça primeiro, como se carregado por seu peso, recuperando o equilíbrio no passo seguinte. Nessa própria instabilidade, contudo, via-se determinação, ele não se afastava uma polegada de seu caminho, ia até o fim, sempre em linha reta, indiferente aos obstáculos, que ele parecia ignorar e que, de todo modo, não lhe inspiravam qualquer consideração. Gostava de lembrar que era do signo de Capricórnio" (p.5-7).
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"O real é aquilo contra o qual nada podemos, com o que nos chocamos, é o intransponível, o impossível de contornar, de negociar. Para ele, tanto na vida como numa análise, tratava-se de alcança-lo, esse indestrutível núcleo d realidade, e tudo o que o isola, o mantém à distância ou máscara pertence à esfera da frivolidade" - (p.12).
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"Lacan tinha grande apreço pela Roma católica. A tal ponto que fomos visitar um cardeal amigo seu, com quem deixara um exemplar dos Escritos para que entregasse ao papa" - (p.17).
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"Nos primeiros tempos, Lacan, implicante, me dizia que as mulheres assemelhavam-se sempre a algum flagelo. Eu e meu gênero éramos uma inundação. In petto, eu ruminava que ele não erguia nenhum dique contra o pacífico dessa invasão" - (p.26).
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"O real é quando "os pinos não entram nos buraquinhos", ele gostava de dizer. Lacam exprimia frequentemente essa cólera no cotidiano, que fornecia diversos ensejos para al. Então ele nada tinha de teatral e geralmente não se dirigia a ninguém a não ser, digamos, à má vontade do real. Esperar fazia-o quicar de impaciência, fosse num sinal vermelho ou numa passagem de nível. Se demorassem a servi-lo num restaurante, ele reagia imediatamente soltando um grito estridente ou um suspiro semelhante a um grito. E se voltasse ao local, a presteza estava garantida" - (p.35-36).
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"Quando não fazia um monte de perguntas a respeito de um assunto que o intrigava, preferia ficar calado. Saindo de seu silêncio, intervinha com uma tirada brusca, não raro desconcertante: "Quando um homem não é mais um homem, sua mulher o esmaga", lançara subitamente. "Esmaga mesmo?", eu repeti, pasma. Sollers, por sua vez, entendera uma coisa completamente diferente: "Quando uma mulher não é mas uma mulher, ela esmaga seu homem" - (p.42).
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"Um dia, quando eu lhe falava do que vivenciava com o desconforto de ser mulher, ele me disse: "Você não é a única, isso não a torna menos sozinha". Ele não deixava sua plateia se iludir com uma esperança sobre o futuro terapêutico de seus doentes. Na discussão que se seguia à apresentação, depois que o doente saía, não hesitava em afirmar a respeito de um ou outro que ele estava "fodido". Às vezes, aliás, dizia-o ao próprio paciente, o que espantosamente tinha o efeito de aliviá-lo" - (p. 52).

(A vida com Lacan  - Rio de Janeiro: Zahar, 2017).

Sobre o livro:

Catherine Millot no Brasil:

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Não me fira - Caio Fernando Abreu

"Minha cara incendiava. Ele apagou o cigarro dentro do pequeno capacete militar invertido, sustentado por três espingardas cruzadas. E me olhou de frente, pela primeira vez, firme, sobrancelhas agudas sobre o nariz, fundo, um falcão atento à presa, forte. A mosca levantou vôo da ponta do meu nariz.
Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranquila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete, repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só resta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém.
Feito cometas, faíscas cruzaram na frente dos meus olhos. Tive medo de cair. Mas as folhas mais altas dos cinamomos começaram a se mover. O sol quase caindo no Guaíba. E não sei se pelo olhar dele, se pelo nariz livre da mosca, se pela minha história, pela brisa vinda do rio ou puro cansaço, parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências.
Pois, seu Hermes, então tu é o tal que tem pé chato, taquicardia e pressão baixa? O médico me disse. Arrimo de família, também?
Sim, meu sargento, menti apressado, aquele médico amigo de meu pai. Uma suspeita cruzou minha cabeça, e se ele descobrisse? Mas tive certeza: ele já sabia. O tempo todo. Desde o começo. Movimentei os ombros, mais leves. Olhei fundo no fundo frio do olho dele.
Trabalha?
Sim, meu sargento...menti outra vez.
Onde?
Num escritório, meu sargento.
Estuda?
Sim, meu sargento.
O quê?
Pré-vestibular, meu sargento.
E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?
Não, meu sargento.
Odontologia? Agronomia? Veterinária?
Filosofia, meu sargento.
Uma corrente elétrica percorreu os outros. Esperei que atacasse novamente. Ou risse. Tornou a me examinar lento. Respeito, aquilo, ou pena? O olhar se deteve, abaixo do meu umbigo. Acendeu outro cigarro, Continental sem filtro, eu podia ver, com o isqueiro em forma de bala.
Espiou pela janela. Devia ter visto o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte das ilhas. Voltou os olhos para mim. Pupilas tão contraídas que o verde parecia vidro liso, fácil de quebrar.
Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria.
Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. Olhou em volta, o alemão, o crioulo, os outros machos. E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte.
Caminhei para a porta, tão vitorioso que meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tardezinha. Abriram caminho para que eu parasse. Lerdos, vencidos. Antes de entrar na outra sala, ouvi o rebenque estalando conta a bota negra.
Sem-tido! Estão pensando que isso aqui é o "cu-da-mãe-joana"?"

(Trecho do conto Sargento Garcia, publicado originalmente no livro Morangos Mofados. In. Melhores Contos de Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global, 2006).

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dias de abandono - Elena Ferrante (trechos)

"Mostrar-se resistente, sê-lo. Eu tinha que dar um bom exemplo do que eu era. Somente impondo-me esta obrigação poderia me salvar".
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"...estava lá no meio da densidade das árvores sem nome, a mim me parecia mais uma aquarela do que a realidade. Estavam atrás de mim e aos meus lados. Álamos? Cedros? Acácias? Rubiáceas? Nomes ao acaso, o que eu sabia? Ignorava tudo, até o nome das árvores debaixo da minha casa. Se tivesse de escrever, não teria conseguido. Os troncos apareciam-me todos sob uma lupa poderosa. Não havia dist~^anciã entre mim e eles e, ao contrário, a regra reza que para contar é necessário, antes de qualquer coisa, tomar a distância, um metro, um calendário, calcular quanto tempo passou, quando espaço se colocou entre nós e os fatos, as emoções a serem narradas. Eu, ao contrário, sentia que tudo estava sempre em mim, respiração contra respiração. Mesmo naquela ocasião me parecia, por um momento, não estar vestida com minha camisola mas com um longo manto no qual estava pintada a vegetação do parque Valentino, as avenidas, a ponte Principessa Isabella, o rio, o prédio onde morava, até o cão pastor. Por isso estava tão pesada e inchada. Levantei-me choramingando de vergonha e de dor de barriga, a bexiga cheia, eu não aguentava mais".
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"Eu não dava tapas, nunca o havia feito, no máximo eu ameaçava. Mas talvez para as crianças não houvesse diferença alguma entre a ameaça e o que realmente se faz. Eu, pelo menos - agora me lembrava -, quando pequena era assim, talvez até já depois de grande. O que poderia me acontecer caso eu violasse uma proibição de minha mãe acontecia de qualquer jeito, independentemente da violação. As palavras realizavam de imediato o futuro e queimava-me ainda hoje a ferida da punição quando eu nem mesmo me lembrava da culpa do que eu poderia ou gostaria de ter feito. Lembrei-me de uma frase recorrente da minha mãe: "Pare ou te corto as mãos", dizia quando tocava os seus materiais de costureira. E aquelas suas palavras para mim eram como tesouras internas, longas e com um metal bem afiado, que saíam pela boca, mandíbulas de lâmina que se fechavam sobre os pulsos deixando tocos costurados com agulha e linha do carretel.
"Eu nunca te dei tapa nenhum", disse.
"Não é verdade".
"No máximo eu disse que daria. Tem uma boa diferença".
Não há diferença alguma, pensei, e me assustei ouvindo esse pensamento na minha mente".
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"...eu não sabia encontrar uma resposta para a interrogação, qualquer resposta possível parecia-me absurda. Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do por quê".
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"Preciso, para escrever bem, para ir até o âmago de cada pergunta, de um lugar menor, mais seguro. Apagar o supérfluo. Restringir o campo. Escrever a verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo".
*
"O que aconteceu com você naquela noite?"
"Tive uma reação de excesso que rompeu a superfície das coisas".
"E depois?"
"Caí".
"E onde você parou?"
"Em lugar nenhum. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada".

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Na minha pele - Lázaro Ramos (trechos).

"Lázaro, certamente você não aprendeu que na Revolução Farroupilha lanceiros negros lutaram com a promessa de liberdade. Nem que as primeiras greves no Brasil não foram promovidas pelos italianos, mas por escravos em Ilhéus, no fim do século XVIII. Eles negociaram com os senhores as condições de volta ao trabalho, inclusive o direito de cantar e dançar. André Rebouças, o maior engenheiro do Império, era negro. Não precisamos fazer nenhuma inversão de supremacia: apenas mostrar que o Brasil foi feito através das intervenções de diversos povos".
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"Satã [Madame Satã] era negro, pobre, gay, e seu corpo era sua única arma. E ele fez uso dessa arma, seja na capoeira, na sexualidade ou como artista nos palcos. Entender esse personagem como um homem que conseguiu se reinventar a despeito do pouco acesso a dinheiro e status social me fez perceber como é possível - e necessário - contar boas histórias invertendo o ponto de vista comum: Satã não é tratado como um coadjuvante de sua própria vida, ele é o senhor do seu destino".
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"Seu lugar é aquele onde você sonha estar"(...). Eu sempre repetia essa frase em conversas de bar, nas peças que escrevia, em artigos e palestras, sem saber por que não conseguia me livrar dessa sentença chiclete. Hoje assumo: precisava propagar essa ideia de que o sonho é a meta. Há que se desejar mais e pensar que é possível. Ela é o oposto de outra frase muito perigosa e frequentemente dita por aí: "Vá procurar o seu lugar". Como se houvesse um lugar predeterminado que alguém fosse obrigado a ocupar porque não há como escapar dele. Eu sentia que não éramos estimulados a quebrar barreiras nem a enfrentar obstáculos. Por isso repetia a minha frase".
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"A grande escritora Conceição Evaristo me ensinou algo que nunca vou esquecer. Ela diz que temos visto nos últimos tempos pessoas negras de estratos populares chegarem às universidades, a postos de comando no mercado de trabalho etc. São histórias exemplares, mas também perigosas. Devemos fazer uma leitura de que somos exceção. Quando nos prendemos muito a esse elogio da história pessoal ("ela veio da favela e conseguiu"), corremos o risco de dizer que o outro não conseguiu porque não quis, e isso não é verdade. A exceção simplesmente confirma a regra".
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"Mas não falemos da lei [10.630], falemos de algo que ouvi da professora Vanda Machado, egbomi do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, numa das muitas conversas que tivemos ao longo do caminho. É uma lenda africana sobre origem adaptada por Vanda e Carlos Petrovich, seu marido, e que descreve melhor os caminhos da lei do que qualquer explicação minha. Chama-se "O espelho da verdade". Me disse Vanda, no quadro de encerramento de uma das temporadas do Espelho [programa do Canal Brasil], que no princípio havia uma única verdade no mundo (em todo fim de programa dessa temporada, Vanda fazia um quadro em que falava como o candomblé é de uma sabedoria enorme - e aplicável - sobre nossas questões existenciais e mesmo sociais).
Entre o Orum (0 mundo espiritual) e o Aiyê (mundo material) existia um espelho, e tudo o que aparecia no Orum materializava-se no Aiyê. Ou seja, o mundo espiritual refletia exatamente o mundo mateiral e não havia a menor dúvida de que cada acontecimento constituía uma verdade absoluta. Portanto, todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade, que ficava justamente entre os dois mundos.
Mas vivia no Aiyê uma jovem chamada Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, desavisadamente, ao perder o controle do movimento ritmado da mão do pilão, bateu forte no espelho, que se espatifou, lançando seus cacos pelo mundo. Assustada, Mahura foi se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando o encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko, uma árvore considerada sagrada para os africanos. Olorum ouviu as desculpas da jovem atentamente e, em seguida, declarou que daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade. "Quem achar um pedacinho do espelho estará encontrando apenas uma parte da verdade, porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar em que se encontra".
Esses somos nós, reflexos de um espelho quebrado que, como um mosaico, apresenta um pedacinho de nossa história. Se visto com carinho, cada pedaço pode ter sua beleza, valores e complexidades reconhecidos. Para isso têm surgido novas vozes, novos portadores do microfone, prontos para ampliar suas falas, experiências e histórias. Ouçam as vozes desse Brasil plural e nosso".
*
"A propósito, uma das entrevistas de que mais gostei de fazer no Espelho foi com Ana Maria Gonçalves. Me lembro dela também dizendo que, durante o processo da abolição, o que as elites quiseram fazer foi um branqueamento da sociedade brasileira. Não havia interesse em integrar os negros, o interesse era que eles desaparecessem. Notem que, quando falamos de um europeu, sempre especificamos se ele é inglês, português, francês; quando falamos de um africano, falamos um africano, e não de onde ele é. A África é um continente, sabiam? Cada região possui características próprias (...). Um jeito que o Brasil arrumou para não valorizar esse passado das nações africanas foi tratar o passado europeu como a História (com H maiúsculo) e o passado africano como etnografia".
*
"A publicidade não virá como elemento de vanguarda que vai mudar a imagem do negro perante a mídia. Ela vai mudar à medida que a sociedade for mudando sua resistência em relação ao negro".

sábado, 5 de agosto de 2017

A desumanização - Valter Hugo Mãe (trecho)

"Acordei e pensei que não fazia sentido nenhum que a morte doesse.
Sente-se como uma dor no estômago mais a fundo. Como se o estômago estivesse a descer e a querer sair pernas abaixo. O meu pai perguntou: a morte. E eu respondi: não. As flores das mulheres. O sangue apodrece e cheira mais forte. Corre dentro como um bocado de fogo raivoso, porque me arde. Expliquei assim. Mas o meu pai não conversou mais nada. Teve vergonha. A minha mãe disse que era um pequeno vulcão. São as flores das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam. Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o que isso significava de perigo e condenação. Ser mulher, explicavam, era como ter o trabalho todo do que respeita à humanidade. Que os homens era para tarefas avulsas, umas participações quase nenhumas. Como se fossem traves de madeira que se usavam momentaneamente para segurar um teto que ameaçasse cair. Se não valessem pela força, nunca valeriam por motivo algum, porque de coração sempre estavam mal feitos. Eram gulosos, pouco definidos, mudavam com facilidade os desejos, não conheciam a lealdade passional, concebiam apenas engenharias e mediam até os amores pelo lado prático da beleza, gostavam sempre de quem lhes parecesse dar mais jeito, como se procurassem empregadas ao invés de esposas, como se precisassem de precaver os seus próprios defeitos mais do que as virtudes livres das mulheres.
(...).
Se um rapaz entrasse dentro de mim, deixava-me filhos. Sairiam filhos de mim. Como se um saco onde estivessem guardados. Pasmava à espreita das minhas pernas nuas. O cimo das pernas aberto como se estivesse estragado. Podre. Tinha apodrecido igual à minha irmã morta. Pingava e magoava. Cheirava mal. O sangue estava esquisito. Eu disse: a menstruação é o sangue que entristece".
*
(Valter Hugo Mãe. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.19-20).

Vídeo do lançamento do livro em Lisboa em 2014:
 

segunda-feira, 31 de julho de 2017

A Odisséia de Penélope - Margaret Atwood (trechos)

"Agora que morri, sei de tudo. Era isso que eu esperava que acontecesse, mas, como muitos dos meus desejos, deixou de se realizar. Sei apenas alguns fatos dispersos que antes ignorava. Desnecessário dizer, trata-se de um preço alto demais a pagar pela satisfação da curiosidade.
Já que estou morta - já que atingi o estado desossado, deslabiado, despeitado -, aprendi coisas que preferia desconhecer, como ocorre quando alguém escuta debaixo da janela ou abre cartas alheias. Você gostaria mesmo de ler a mente? Pense bem.
Aqui todos chegam com um saco igual para guardar os ventos, mas todos os sacos estão cheios de palavras - palavras que a pessoa disse, palavras que ouviu, palavras que foram ditas a seu respeito. Alguns sacos são muito pequenos; outros, grandes; o meu tem tamanho razoável, mas boa parte das palavras se refere a meu distinto marido. Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos. Ele se safava de todas, outra de suas especialidades: safar-se.
Ele sempre foi muito convincente. Muita gente acreditava que sua versão dos acontecimentos era verdadeira, com, talvez mais, talvez menos, alguns assassinatos, algumas lindas mulheres seduzidas e vagos monstros de um olho só. Até eu acreditava nele, de vez em quando. Sabia que era ardiloso e mentia, mas não imaginava que fosse capaz de me enganar e de me contar mentiras. Não fui fiel? Não esperei, e esperei, e esperei, apesar da tentação - quase compulsão - de desistir? E o que me restou, quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras mulheres. Por que não podem todas ser tão circunspectas, confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os cantores, os rapsodos. Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês - sim, nos de vocês! Mas, quando tento gritar, pareço uma coruja.
Claro, eu desconfiava da ligeireza dele, da esperteza, da astúcia, da - como dizer? - da sua falta de escrúpulos, mas fingia não ver nada. Ficava de boca fechada; ou, se a abrisse, só elogiava. Não refutava, não fazia perguntas inconvenientes, não me aprofundava. Queria finais felizes naquela época, e os finais felizes são alcançados quando mantemos certas portas trancadas e dormimos na hora da confusão.
Contudo, quando os principais eventos passaram e o caso se tornou menos legendário, me dei conta de quantas pessoas riam de mim pelas costas - elas zombavam, contavam anedotas a meu respeito, piadas sujas e limpas; me transformaram numa história, ou em várias histórias, embora não fossem do tipo que eu gostaria de ouvir sobre minha pessoa. O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso esperei mais um pouco.
Agora que todos os outros perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma .
(...)
Antigamente, as pessoas ririam se eu bancasse o menestrel - não há nada mais ridículo do que uma aristocrata que se mete a artista -, mas a esta altura não me importo mais com a opinião pública. A opinião de quem está aqui: das sombras, dos ecos. Portanto, vou tecer minha própria narrativa.
A dificuldade é não ter boca pela qual falar. Não consigo que me compreendam, não as pessoas do mundo de vocês, do mundo dos corpos, das línguas e dos dedos; na maior parte do tempo não tenho ouvintes, não do seu lado do rio. Entre vocês, quem consegue captar um murmúrio perdido, um grito solto, facilmente confunde minhas palavras com o som da brisa dos juncos, morcegos ao crepúsculo, pesadelos.
Mas sempre fui determinada. Paciente, diziam.
Gosto de ver o final da história".
"Os deuses nunca desprezavam a chance de arranjar encrenca. Na verdade, adoravam. A visão dos olhos de um ou uma mortal a fritar nas órbitas graças a uma overdose de sexo com os deuses provocava gargalhadas terríveis. Havia certa maldade infantil nos deuses. Posso dizer isso porque não possuo mais um corpo, superei esse tipo de sofrimento, e além disso os deuses não estão escutando. No mundo de hoje as pessoas não recebem mais visitas dos deuses como antigamente, a não ser que tomem drogas".
"Esse era um dos seus grandes segredos para convencer os outros - ele conseguia fazer uma pessoa acreditar que os dois enfrentavam um obstáculo comum e que precisavam unir forças para superá-lo. Conseguia fazer qualquer um colaborar em sua pequena conspiração inventada. Ninguém era capaz de fazer isso melhor do que ele: aí, as histórias não mentem. E ele tinha mesmo uma voz maravilhosa, profunda e sonora".
*

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Com amor - carta de Celso Afonso Gay de Castro pra Ana Cavalli


"Ana meu amor....
Ás vezes a convivência consigo mesmo se torna difícil. São aquelas horas perdidas na noite, em que uma vaga tristeza, um cansaço sem sono, uma grande saudade e uns tragos a mais ajudam a aprofundar uma depressão que já é quase estrutural.
Normalmente trato de dormir, sair, ler, tomar outros tragos, tirar o peso de cima.
Hoje é uma dessas noites. Depois de muito tempo pensando na vida, parece que a única coisa que devo fazer é escrever-te; afinal, pensar na vida hoje significa em grande medida pensar em ti.
A opção pela revolução é um elemento determinante nas coisas que faço, de uma maneira estrutural. Não que eu me considere um supermilitante, e que todos os meus atos de manhã a noite sejam reflexo da minha consciência bolchevique. O fato é que há muito tempo minha preparação principal e minha ocupação quase total se referem a um projeto revolucionário.
Também não quero dizer que todo o meu tempo eu dedico ao trabalho político, já que boa parte desse tempo eu dedico a nada. Depois de quase dois anos em Paris, consumindo-me no trabalho, na gráfica e em reuniões e mais reuniões de todos os tipos com produtividade política absolutamente insatisfatória, eu estava buscando uma alternativa.
Mudar de vida, de tipo de vida como única maneira de me inserir num projeto politico realmente sério e viável".
*
(In. Filme Diário de uma busca - de Flávia Castro).

*


domingo, 16 de abril de 2017

Bukowski - Morte & vida de um velho safado

"As 11:55 da manhã de quarta-feira, 9 de março de 1994, Bukowski morreu. Estava com setenta e três anos.
(...)
A ligação entre \mariana e o pai havia sido extremamente íntima. "Eu sempre soube que, se alguma coisa desse errado, tudo que eu tinha a fazer era pedir ajuda e ele dava um jeito", diz ela. "Mesmo sendo uma pessoa adulta, que tinha se virado por muitos anos, e me virado bem, notei que, além de sentir a falta dele depois que morreu, também sentia falta da segurança que tinha lá no fundo, sabendo que tudo estava sempre BEM, mas que, se não estivesse, podia chama-lo e, de algum modo, ele fatia com que tudo ficasse bem".
Embora Bukowski garantisse ser um solitário, alguém que não precisava ou não queria amigos íntimos, havia uma quantidade de homens e mulheres para quem sua morte foi uma grande perda.
(...)
Os obituários do jornal destacaram a imagem da vida desregrada de Bukowski. Ele era o "bardo do mar", um escritor simples que inexplicavelmente tinha um culto de seguidores. Com exceção de ocasionais boas críticas de seus romances e da atenção dispensadas a Barfly, a mídia de massa sempre o tratara com desprezo.
Contudo, Bukowski é único na literatura americana moderna, inclassificável e muito imitado. Seu estilo simples de prosa e poesia teve origem nas ideias comuns: ele foi influenciado, inicialmente, pela leitura de Hemingway e Fante, mas, como ele mesmo dizia, não se ria muito com Hemingway, então acrescentou humor. O dia a dia foi o tema escolhido por Bukowski, e não aventuras heroicas ou pessoas glamourosas, mas a experiência dos americanos não tão bem-sucedidos, vivendo em apartamentos baratos e tendo trabalhos degradantes. Escreveu de modo convincente sobre esse mundo, embora exagerasse e editasse sua ´própria história de vida. Também falou de relações humanas com sinceridade: a relação entre uma criança e seus pais, entre homens e mulheres.
Em função do seu gosto por escrever e pela bebida, seu desejo de sensacionalizar sua vida e de ser gratuitamente vulgar, Bukowski pôs-se em posição de ser criticado. Também publicou demais, com certeza muita poesia. Mas quando se lê seu trabalho cuidadosamente - os seis romances, as dúzias de contos, o roteiro e os inúmeros livros de poesia - vê-se uma filosofia pessoal descompromissada que é convincente, senão desafiadora: uma rejeição a regras impostas e degradantes, à autoridade e pretensão; uma aceitação do fato de que a vida humana é quase sempre desprezível e que as pessoas são frequentemente cruéis umas com as outras, mas que essa vida também pode ser bonita, sensual e engraçada".


(In. Howard Sounes. Vida e loucuras de um velho safado. São Paulo: Veneta, 2016, p. 325-328).


domingo, 12 de março de 2017

Para educar crianças feministas - um manifesto

"3. Terceira sugestão: Ensine a ela que "papéis de gênero" são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para fazer ou deixar de fazer alguma coisa "porque você é menina".
"porque você é menina" nunca é razão para nada. Jamais.
Lembro que me diziam quando era criança para "varrer direito, como uma menina". O que significava que varrer tinha a ver com ser mulher. Eu prefiria que tivessem dito apenas para "varrer direito, pois assim vai limpar melhor o chão". E prefiria que tivessem dito a mesma coisa para os meus irmãos.
Ultimamente ocorreram uns debates nas redes sociais nigerianas sobre as mulheres e a cozinha, que diziam que as esposas precisam cozinhar para os maridos. É engraçado, quero dizer, engraçado como uma coisa triste, que em 2016 ainda estejamos falando de cozinhar como uma espécie de "teste de boa esposa" para as mulheres.
Saber cozinhar não é algo que vem pré-instalado na vagina. Cozinhar se aprende. Cozinhar - o serviço doméstico em geral - é uma habilidade que se adquire na vida, e que teoricamente homens e mulheres deveriam ter. É também uma habilidade que às vezes escapa tanto aos homens quanto às mulheres.
Também temos de questionar a ideia do casamento como um prêmio para as mulheres, pois é o que está na base desses debates absurdos. Se pararmos de condicionar as mulheres a verem o casamento dessa forma, não precisaremos discutir tanto se uma esposa precisa cozinhar para ganhar esse prêmio.
Acho interessante como o mundo começa a inventar papéis de gênero desde cedo. Ontem fui a uma loja infantil para comprar uma roupa para Chizalum. Na seção das meninas, havia umas coisas pálidas espantosas, em tons de rosa desbotado. Não gostei. A seção dos meninos tinha roupas num tom azul forte e vibrante. Como achei que o azul ia ficar lindo em contraste com a pele morena dela - e sai melhor nas fotos -, comprei uma roupinha azul. A moça do caixa me disse que era o presente ideal para um garotinho. Falei que era para uma menininha. Ela fez uma cara horrorizada: "Azul para uma menina?".
Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa dualidade rosa-azul. Havia também uma seção de "Gênero neutro", com uma infinidade de cinzassem graça. "Gênero neutro" é uma bobagem, porque tem como premissa a ideia do masculino como azul e do feminino como rosa, sendo o "gênero neutro" uma categoria própria. Por que não organizar as roupas infantis por idade e expô-las em todas as cores? Afinal, todos os bebês têm o corpo parecido.
Olhei a seção de brinquedos, também organizada por gênero. Os brinquedos para meninos geralmente são "ativos", pedindo algum tipo de "ação" - trens, carrinhos -, e os brinquedos para meninas geralmente são "passivos", sendo a imensa maioria bonecas. Fiquei impressionada com isso. Eu não tinha percebido ainda como a sociedade começa tão cedo a inventar a ideia do que deve ser um menino e do que deve ser uma menina. Eu gostaria que os brinquedos fossem divididos por tipo, não por gênero.
(...)
 Se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaço para alcançar todo o seu potencial. Por favor, veja Chizalum como indivíduo. Não como uma menina que deve ser de tal ou tal jeito. Veja seus pontos fortes e seus pontos fracos de maneira individual. Não a meça pelo que uma menina deve ser. Meça-a pela melhor versão de si mesma.
Uma jovem nigeriana uma vez me contou que passou muitos anos se comportando "como menino" - gostava de futebol e não achava graça em vestidos -, até que a mãe a obrigou a abandonar seus interesses "de menino" e agora ela agradece à mãe por ajuda-la a começar a se comportar como menina. A história me deixou triste. Fiquei imaginando o que ela teve de abafar e silenciar dentro de si, o que sua personalidade perdeu, pois aquilo que a moça chamava de "se comportar como um menino" era, na verdade, se comportar como ela
mesma.
(...)
Os estereótipos de gênero são tão profundamente incutidos em nós que é comum os seguirmos mesmo quando vão contra nossos verdadeiros desejos, nossas necessidades, nossa felicidade. É muito difícil desaprende-los, e por isso é importante cuidar para que Chizalum rejeite esses estereótipos desde o começo. Em vez de deixa-la internalizar essas ideias, ensine-lhe autonomia. Diga-lhe que é importante fazer por si mesma e se virar sozinha. Ensine-a a consertar as coisas quando quebram. A gente supõe rápido demais que as meninas não conseguem fazer várias coisas. Deixe-a tentar".
*
(In. Chimanda Ngozi Adichie.  Para educar crianças feministas - um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 21-28).


quinta-feira, 9 de março de 2017

A vida invisível de Eurídice Gusmão

 
"Foi uma cerimônia simples, seguida por uma festa simples, e por uma lua de mel complicada. O lençol não ficou sujo, e Antenor se indignou.
"Por onde raios você andou?"
"Eu não andei por canto algum".
"Ah, andou, mulher".
"Não, não andei".
"Não me venha com desculpas, você sabe muito bem o que deveríamos ter visto aqui".
"Sim, eu sei, minha irmã me explicou".
"Vagabunda. Eu me casei com uma vagabunda".
"Não fale assim, Antenor".
"Pois eu falo e repito. Vagabunda, vagabunda, vagabunda".
Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.
Nas semanas seguintes a coisa se acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixa-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras "Do lar".
Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! 
Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!
Responsável pelo aumento de cem por cento do núcleo em menos de dois anos, Eurídice achou que era hora de se aposentar da parte física de seus deveres matrimoniais. Tentou explicar a decisão para Antenor, através de umas indisposições que passou a ter, nas horas soltas das manhãs de sábado e naqueles momentos escuros, depois das nove da noite. Mas Antenor não queria saber de não me toques. Ele era um homem de hábitos e de rotinas, como aquela que envolvia achegar-se à camisola da mulher e afundar o nariz no macio do pescoço branco. Eurídice então se fez ouvir de outras formas. Ganhou um monte de quilos que falavam por si, e gritavam para Antenor se afastar.
Ela emendava o café da manhã no lanche das dez, o almoço no lanche das quatro e o jantar na ceia das nove (...). Quando viu que estava no ponto, que era o ponto de fazer o marido nunca mais se aproximar, adotou formas saudáveis de alimentação. Fazia dieta nas manhãs de segunda-feira e no intervalo entre as refeições.
O peso de Eurídice se estabilizou, bem como a rotina da família Gusmão Campelo. Antenor saía para o trabalho, os filhos saíam para a escola e Eurídice ficava em casa, moendo carne e remoendo os pensamentos estéreis que faziam da sua uma vida infeliz. Ela não tinha um emprego, ela já tinha ido para a escola, e como preencher as horas do dia depois de arrumar as camas, regar as plantas, varrer a sala, lavar a roupa, temperar o feijão, refogar o arroz, preparar o suflê e fritar os bifes?
Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.
E foi assim que concluiu que não deveria pensar".
 
 
 
(In. Maria Batalha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 9-11).


Em busca do real perdido - Alain Badiou

"E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a palavra "democracia" é uma palavra admirável, e será preciso retomá-la e redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora da morte de Molière - que o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem representada, é a melhor peça de que o capitalismo é capaz. Os espectadores e os participantes em geral aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é que é um rito para o qual são convocados e ao qual se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a democracia imaginária que é representada e, por baixo, o processo mundializado do capitalismo e da pilhagem imperial que prossegue, com seu real impalpável, cuja descrição não serve para nada. Enquanto essa peça durar e um vasto público continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou seja, a capacidade de dividi-lo, de obriga-lo a uma cisão de si mês que seja ativa e que prometa sua dissipação, sua destruição, permanecerá politicamente inacessível. Porque se essa peça é a peça do semblante democrático, se ela é a máscara que fornece ao capitalismo imperial a cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, nenhuma possibilidade de arrancar essa máscara, de interromper essa peça de teatro, está na ordem do dia, então alguma coisa  permanece politicamente inacessível para qualquer empreendimento político de acesso ao real nu".
 
(In. Alain Badiou. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica: 2017, pp. 25-26). 


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Enclausurado - Ian McEwan

 
"Então, aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um modo conhecido. Quando ouço a palavra "azul", que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de "verde" - que também nunca vi. Considerando-me um inocente, descomprometido com lealdades o obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que me dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero-me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.
Parece. Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como - isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê-la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra"".
 
(Ian McEwan. Enclausurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp.  6-7).


domingo, 22 de janeiro de 2017

Bauman por Bauman

 
"Em nenhuma época esteve tão presente a máxima de John Donne ("Nenhum homem é uma ilha...Cada homem é parte do continente". "A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade. Por isso nunca procures saber por quem os sins dobram, eles dobram por ti."). Não se trata mais da evocação puramente  poética de uma compaixão nobre, porém idealista. É agora um relato factual de vínculos genuínos, tangíveis, que conectam a difícil condição de todos nós. Somos todos responsáveis por qualquer coisa que aconteça a qualquer um de nós, e o postulado de assumir responsabilidade por nossa responsabilidade envolve agora a necessidade de aliviar sofrimentos em qualquer canto do planta em que eles possam ocorrer, incluindo os sofrimentos mais distantes.
Esse novo desafio amplia até o limite (ou talvez mesmo além dele) a durabilidade do "impulso moral", considerando-se que por muitos séculos esse impulso costumava operar (e assim aprendeu a se sentir realmente em casa) apenas na proximidade do outro. Agora ele precisa abarcar um outro distante, na verdade "abstrato", um "outro" que é improvável conhecer, e que dificilmente será algum dia confrontado cara a cara.
Intrépidas e infatigáveis equipes de TV trazem para os nossos lares, de tempos em tempos, as imagens dessa miséria distante. Isso tem um efeito instantâneo, como acontece com toda proximidade do sofrimento humano. Ajusta a enormidade das novas responsabilidades à capacidade de nossa sensibilidade moral. Seria isso, contudo, suficiente para avaliar a magnitude dos desafios? O resultado comum das campanhas promovidas pela mídia é (...) uma sucessão de "farras piedosas" e períodos de "fadiga da caridade". De tempos em tempos ocorrem surtos de compaixão, mas é só isso, e não mais do que nossos sentimentos morais podem suportar por si mesmos. Logo aplacados, eles tiram uma soneca até o próximo "evento" em que serão uma vez mais brutalmente acordados para o fato de que nada pode ser alterado no que se refere ao volume e à profundidade da miséria humana, a despeito dessas breves explosões de piedade.
Por sua natureza, as "farras piedosas" conduzidas pela mídia são mal-equipadas para sedimentar um vínculo institucionalizado sólido, permanente e efetivo, para além dos surtos temporários de sentimentos do tipo "somos todos parte do mesmo continente". Comprovam a horrorosa semelhança do sofrimento humano, mas ficam muito longe de expor suas causas, como os meios de subsistência destruídos pelo livre comércio, os solos devastados pela monocultura imposta pelo mercado ou as inimizades tribais apoiadas e instigadas pela indústria e pelo tráfico de armamentos que enchem os cofres de nossos tesouro e aumentam o PIB doméstico.
Não admira que as raízes da miséria permaneçam intactas, independentemente do êxito que possam ter tido as sucessivas campanhas de "ajuda humanitária". Além disso, nossa própria responsabilidade direta ou indireta pela miséria que lamentamos com tanta sinceridade permanece encoberta. É como se não devêssemos coisa alguma a essas pessoas miseráveis. O que fazemos por elas não deveria ser visto como uma tentativa de quitar nossas dívidas e nos arrepender de nossos pecados, mas louvado como expressão de nossos nobres sentimentos, aumentando assim nossa glória moral".
 
(Bauman por Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 137-138).
 
 


domingo, 15 de janeiro de 2017

A filha perdida - Elena Ferrante

 
" Eu observava minhas filhas quando elas estavam distraídas e sentia por elas uma complicada alternância entre simpatia e antipatia. Bianca é antipática, eu pensava às vezes, e sofria por isso. Depois eu descobria que ela era muito querida, tinha amigas e amigos,  sentia que só quem a achava antipática era eu, a mãe dela, e aquilo me dava remorso. Eu não gostava de sua risadinha de escárnio. Não gostava de sua ânsia de querer sempre mais do que os outros: à mesa, por exemplo, ela pegava mais comida do que todos, não para comer, mas para ter certeza de que não perderia nada, deque não seria negligenciada ou passada para trás. Eu não gostava da sua mudez teimosa quando ela percebia que havia errado, mas não conseguia admitir o erro.
Você também é assim, dizia meu marido. Talvez fosse verdade, e o que me parecia antipático em Bianca se tratasse somente do reflexo da antipatia que eu sentia por mim mesma. Ou não, não era tão simples, tudo era mais intrincado. Mesmo quando reconhecia nas duas garotas aquilo que eu considerava minhas qualidades, sentia que algo não funcionava. Tinha a impressão de que elas não sabiam usá-las bem, de que a melhor parte de mim mesma, no corpo delas, resultava em um enxerto equivocado, uma paródia, e ficava com raiva, sentia vergonha.
Na verdade, pensando bem, o que eu mais amava nas minhas filhas era o que me parecia estranho. Delas - eu sentia - agradavam-me mais os traços que haviam puxado ao pai, mesmo após o fim tempestuoso do casamento. Ou os traços que tinham vindo de seus antepassados, dos quais eu nada sabia. Ou os traços que pareciam, na combinação dos organismos, uma invenção caprichosa do acaso. Em outras palavras, quanto mais eu me sentia próxima delas, mais parecia não carregar a responsabilidade por seus corpos.
Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sofrimentos delas. Acusavam-me em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos, justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte. Tons de voz quase imperceptíveis. Um gesto pequeno, um modo de bater as pálpebras, um sorriso-careta. O passo, o ombro que pende um pouquinho à esquerda, um balançar gracioso dos braços. A impalpável mistura de movimentos mínimos que, combinados de um certo modo, tornam Bianca sedutora e Marta, não, ou vice-versa, e então causam soberba, dor. Ou ódio, porque a potência da mãe parece sempre se dar de maneira injusta, desde o nicho vivo do ventre".
 
(In. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 59-60).


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Os garotos da minha vida - Beverly Donofrio (trecho)



"Então, um dia, Olivia, a única italiana do prédio, habitado quase que só por porto-riquenhos, decidiu que seria minha amiga e começou a contar a história da sua vida em capítulos. Olivia era uma autêntica solteirona. Tinha uns sessenta anos, era baixa e gorda, dando a ideia de um tijolo. Seu cabelo era pintado de preto-azulado, e na rua ela usava uma capa preta horrível batendo nos tornozelos e uma boina escocesa vermelha (...). Toda vez que eu subia as escadas o apartamento de Olivia estava aberto, e ela me convidava para bater papo, o que significava que me contaria mais uma parte da história da sua vida.
(...) Na última vez em que fui lá, Olivia nem me ofereceu café solúvel antes de começar a falar, numa voz entrecortada, como se o ar estivesse preso no peito. Percebi que naquele dia chegaríamos ao ponto importante da sua história.
- Minha vida foi arruinada. Está vendo esses sapatos pretos horríveis? São sapatos ortopédicos. Você nunca notou como eu ando? Devagar, como o tique-taque do relógio. As crianças caçoavam de mim quando a gente ia para a escola. Eu nunca podia manter o mesmo paço que elas. Nunca me casei por causa dos meus pés. Falo três línguas mas nunca viajei. Desisti de ser religiosa porque sou muito amarga. 
Naquela noite, fui acordada com um bater de asas histérico. Um pardal estava voando dentro da minha sala, batendo nas paredes, esbarrando a cabeça no teto. Como eu não conseguia ver o passarinho, muito menos pegá-lo, chamei Jason.
Ele encurralou o pardal na prateleira de baixo da estante de livros e pegou-o com as mãos em concha. Olhou para o bichinho um instante, fez um carinho na sua cabeça com o dedo, esticou a mão na janela e o passarinho saiu voando.
Quando voltei para a cama não consegui mais dormir. Fiquei pensando nos passarinhos que saíam dos ninhos voando e ficavam presos em algum lugar. Depois me lembrei dos pés de Olivia, que lhe haviam atrapalhado a vida. Na verdade, ela é que tinha atrapalhado sua vida pensando nos pés.
Durante metade da minha vida, desde que fiquei grávida, sempre pensei que Jason tinha atrapalhado a minha vida. Mas essa era uma forma de ver as coisas. Outra forma era achar que Jason havia enriquecido a minha vida, e talvez evitado que eu entrasse em mais encrenca. Com um filho para cuidar, por pior que eu agisse, tinha que manter pelo menos um pé no chão, sempre. Talvez eu tenha tido vantagem com isso. Talvez nunca tivesse oportunidade de ir para a faculdade se não fosse uma mãe vivendo à custa do seguro social. Talvez não me sentisse tão mais velha agora se não tivesse tido um filho; ao ser forçada a crescer depressa, me rebelei e me mantive criança muito mais tempo, o que contribuiu para minha vida boêmia (que começava a ficar fora de moda na metade da década de oitenta) e minha falta de dinheiro (idem), mas também manteve minhas perspectivas frescas, com amigas que queriam comprar Harley-Davidsons aos 45 anos de idade, e uma porção de interesses focalizados na alegria.
Jason tinha arruinado ou enriquecido a minha vida. A escolha era minha. A gente passa por umas coisas na vida que não pode controlar, portanto é melhor aprender com elas do que se deixar vencer por elas. Como Olivia, cheia de fel e amargura num apartamento branco brilhante, sozinha com passarinhos presos na janela".
(In. Os garotos da minha vida. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 193-195).
 
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Site oficial de Beverly Donofrio:
 
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Trailer do filme baseado em Riding in cars with boys:
 
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