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quinta-feira, 9 de março de 2017

A vida invisível de Eurídice Gusmão

 
"Foi uma cerimônia simples, seguida por uma festa simples, e por uma lua de mel complicada. O lençol não ficou sujo, e Antenor se indignou.
"Por onde raios você andou?"
"Eu não andei por canto algum".
"Ah, andou, mulher".
"Não, não andei".
"Não me venha com desculpas, você sabe muito bem o que deveríamos ter visto aqui".
"Sim, eu sei, minha irmã me explicou".
"Vagabunda. Eu me casei com uma vagabunda".
"Não fale assim, Antenor".
"Pois eu falo e repito. Vagabunda, vagabunda, vagabunda".
Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.
Nas semanas seguintes a coisa se acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito. Além do mais, o incidente da noite de núpcias serviu para deixa-lo mais alto, fazendo com que precisasse baixar a cabeça ao se dirigir à esposa. Lá de baixo Eurídice aceitava. Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras "Do lar".
Cecília veio ao mundo nove meses e dois dias depois das bodas. Era uma bebê risonha e gordinha, recebida com festa pela família, que repetia: É linda! 
Afonso veio ao mundo no ano seguinte. Era um bebê risonho e gordinho, recebido com festa pela família, que repetia: É homem!
Responsável pelo aumento de cem por cento do núcleo em menos de dois anos, Eurídice achou que era hora de se aposentar da parte física de seus deveres matrimoniais. Tentou explicar a decisão para Antenor, através de umas indisposições que passou a ter, nas horas soltas das manhãs de sábado e naqueles momentos escuros, depois das nove da noite. Mas Antenor não queria saber de não me toques. Ele era um homem de hábitos e de rotinas, como aquela que envolvia achegar-se à camisola da mulher e afundar o nariz no macio do pescoço branco. Eurídice então se fez ouvir de outras formas. Ganhou um monte de quilos que falavam por si, e gritavam para Antenor se afastar.
Ela emendava o café da manhã no lanche das dez, o almoço no lanche das quatro e o jantar na ceia das nove (...). Quando viu que estava no ponto, que era o ponto de fazer o marido nunca mais se aproximar, adotou formas saudáveis de alimentação. Fazia dieta nas manhãs de segunda-feira e no intervalo entre as refeições.
O peso de Eurídice se estabilizou, bem como a rotina da família Gusmão Campelo. Antenor saía para o trabalho, os filhos saíam para a escola e Eurídice ficava em casa, moendo carne e remoendo os pensamentos estéreis que faziam da sua uma vida infeliz. Ela não tinha um emprego, ela já tinha ido para a escola, e como preencher as horas do dia depois de arrumar as camas, regar as plantas, varrer a sala, lavar a roupa, temperar o feijão, refogar o arroz, preparar o suflê e fritar os bifes?
Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.
E foi assim que concluiu que não deveria pensar".
 
 
 
(In. Maria Batalha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 9-11).


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