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sábado, 15 de agosto de 2015

Sobre a visita de Lacan a Jung

 
 
...enquanto Freud identificava-se com Aníbal para associar sua descoberta a um princípio de resistência, Lacan ia bem mais longe: queria fazer dessa descoberta o paradigma de todas as formas possíveis de rebelião humana. Sob esse aspecto, inscrevia sua trajetória na tradição da exceção francesa. A França, sabemos, é o único país do mundo onde foi afi...rmada com força a ideia de que Freud realizara uma revolução no sentido pleno da palavra: teórica, política e ideológica. A origem dessa exceção remonta, em primeiro lugar, à revolução de 1789, que deu uma legitimidade científica e jurídica ao olhar da razão sobre a loucura, fazendo nascer a instituição do hospício, e, depois, ao caso Dreyfus, que tornou possível a instauração de uma consciência de si da classe intelectual. Ao designar-se como vanguarda, esta pôde apoderar-se das ideias mais inovadoras e fazê-las frutificar.
(...) Para firmar essa hipótese de uma natureza subversiva do freudismo, de que ele era o herdeiro por seu convívio com os surrealistas, com Bataille e a obra nietzschiana, Lacan havia buscado fazer remontar a origem dela ao próprio Freud. Mas, como dar a prova de tal afirmação quando ela não se encontrava em nenhum lugar? Lacan resolvera esse delicado problema ao visitar Carl Gustav Jung por volta de 1954.
O mais célebre dissidente da saga freudiana estava então com 79 anos. Em sua esplêndida casa de Kusnacht, às margens do lago de Zurique, distribuía atenções, conselhos e erudição, qual um sábio velho oriental, aos numerosos visitantes vindos dos quatro cantos do mundo para encontrá-lo. Consciente da dificuldade de chegar até ele, Lacan havia pedido a seu colega Roland Cohen que interviesse a seu favor. Psiquiatra e germanista, este conhecera Jung em 1936, tornara-se seu discípulo e depois realizara a primeira tradução francesa de suas obras. Frequentando Nacht, Lacan, Ey e Lagache no hospital Saint-Anne depois da guerra, ele havia tentado em vão convencê-los a levar em conta o ensinamento junguiano em seus trabalhos. Quando Lacan pediu-lhe uma carta de recomendação para Jung, Cahen acreditou numa confrontação possível entre duas doutrinas: "Escuta, meu velho, entre teus significados e nossos arquétipos, somos primos-irmãos". Lacan opôs uma recusa categórica: "Jamais", respondeu, "mas desejo ver Jung porque estou certo de que ele tem lembranças a contar sobre Freud e quero publicá-las".
Nessa data, Jung ainda não havia empreendido a redação de suas Memórias, sua correspondência com Freud não fora publicada e nenhum trabalho biográfico a respeito dele estava em andamento. Para compreender a história das origens e dos começos da Psicanálise, dispunha-se apenas da hagiografia freudiana. Ora, Jung sempre aparecia aí como uma personagem negativa e infiel ante a sacrossanta figura do mestre vienense, apresentado como um herói sem temor e sem pecha. A ideia de Lacan de fazer Jung testemunhar sobre suas relações com Freud era portanto excelente. O encontro realizou-se, mas Roland Cahen lamentou o que se passara, e Jung guardou da conversa apenas uma lembrança fugaz.
Se Lacan não quis dizer nada a seu colega, é que reservava sua informação a outros ouvintes. Em 7 de novembro de 1955, em sua conferência sobre a "coisa" freudiana pronunciada em alemão em Viena, mencionou pela primeira vez a visita a Kusnacht: "É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o universo: ´Eles não sabem que lhe trazemos a peste´, lhe é devolvido como uma sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho".
Ao comentar esse dito, Lacan sublinhava que Freud havia se enganado: acreditara que a Psicanálise seria uma revolução para a América, e foi a América que devorou sua doutrina ao retirar-lhe seu espírito de subversão. Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas para Lacan esse preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão a peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregaram a palavra. Quanto a historiadores do freudismo, de Ernest Jones a Max Schur passando por Henri Ellenberger, Vincent Brome, Clarence Oberdorf, Paul Roazen, Nathan G. Hale e Peter Gay, eles observam que Freud disse apenas: "Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer".
Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão da "peste freudiana" chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e renovador.

 (In. Elisabeth Roudinesco. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 359-362).