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sexta-feira, 16 de abril de 2021

Somos adultos - Natalia Ginzburg

 


"E agora somos verdadeiramente adultos: é o que pensamos numa manhã, olhando no espelho nosso rosto sulcado, escavado; olhando-o sem nenhum orgulho, sem nenhuma curiosidade, com um pouco de misericórdia. Temos de novo um espelho entre quatro paredes; quem sabe daqui a pouco tenhamos de novo um tapete, talvez uma luminária. Mas perdemos as pessoas mais queridas: então, que nos importam os tapetes e as pantufas vermelhas? Aprendemos a separar e a guardar os objetos dos mortos; a voltar sozinhos aos lugares onde estivemos com eles; a interrogar, sentindo o silêncio ao redor. Já não temos medo da morte: olhamos a morte toda hora, a cada minuto, recordando seu grande silêncio sobre o rosto mais querido.
E agora somos verdadeiramente adultos - pensamos - e nos sentimos surpresos de que ser adulto seja isto, e não tudo aquilo que acreditávamos na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas da terra. Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre nosso comportamento atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não tínhamos entendido como era irreparável e sem remédio, a morte: somos adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que trazemos dentro de nós. Somos adultos por aquele breve momento que um dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as coisas da terra e renunciamos a possuí-las e as restituímos à vontade de Deus; e de repente as coisas da Terra nos pareceram em seu lugar preciso sob o céu, e assim todos os seres humanos, e nós mesmos suspensos a olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e memórias, tudo nos pareceu em seu exato lugar sob o céu. Naquele breve momento encontramos um equilíbrio para nossa vida oscilante; e nos parece que sempre poderemos reencontrar aquele momento secreto, buscar ali as palavras para o nosso ofício, nossas palavras para o próximo; olhar o próximo com olhos sempre justos e livres, não com o olhar temerosos ou arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será seu senhor ou seu servo. Durante toda a vida só soubemos ser senhores ou servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro senhorio nem verdadeira servidão sobre a terra. Assim, agora, tornando àquele nosso momento secreto, tentaremos enxergar nos outros se eles já viveram um momento idêntico, ou se ainda estão longe disso: é o que importa saber. Na vida de um ser humano, este é o momento mais alto: e é necessário que estejamos com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos".



(In. Natalia Ginzburg. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, pp. 107-108).

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A lua e as fogueiras - Cesare Pavese

"Desta vez ficou quieto, esticando os lábios para a frente, e somente quando lhe contei aquela história das fogueiras nos restolhos levantou a cabeça. "Claro que fazem bem", disse. "Despertam a terra".
"Mas Nuto", eu disse, "nem Cinto acredita nisso!".
No entanto, disse ele, não sabia o que era, se o calor ou a chama ou que os humores despertavam, o fato era que todas as culturas em cuja orla se acendia a fogueira davam uma colheita mais suculenta, mais viva.
"Essa é nova", disse eu. "Então você também acredita na lua?"
"Na lua", disse Nuto, "não há como não acreditar. Experimente cortar um pinheiro na lua cheia, os vermes o comem inteiro. Um tonel você tem de lavar quando a lua é jovem. Até os enxertos, se não se fizerem nos primeiros dias da lua, não pegam".
Então eu lhe disse que no mundo ouvira muitas histórias, mas as mais bobas eram essas. Era inútil ele criticar tanto o governo e as conversas dos padres, se depois acreditava nessas superstições, como os velhos do tempo de sua avó. E foi então que Nuto calmamente me disse que superstição é somente aquilo que faz mal e se alguém utilizasse a lua e as fogueiras para roubar os camponeses e mantê-los na ignorância, então seria ele o ignorante e deveria ser fuzilado na praça. Mas antes de falar eu devia voltar a ser camponês. Um velho como Valino podia não saber mais nada, mas a terra ele conhecia bem.
(...)
Sou um bobo, eu dizia, faz vinte anos que estou longe e esses lugares esperam por mim. Lembrei que desilusão fora caminhar pela primeira vez pelas ruas de Gênova - eu caminhava no meio e procurava um pouco de capim. O porto, este sim, estava lá, e também os rostos das moças, as lojas e os bancos, mas as canas, o cheiro da lenha, um pedaço da vinha, onde estavam? Eu também conhecia a história da lua e das fogueiras. Só que, dera-me conta, eu não sabia mais que a sabia".
(In. A lua e as fogueiras. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2002, pp.60-61).

Cesare Pavese em 1950