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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Misto-quente - Bukowski (trechos)


"Meu pai não gostava de gente. Não gostava de mim.
- As crianças foram feitas para serem olhadas e não ouvidas - ele me falou" - (p. 18).
*
"- Este é o Henry Jr.?
- Sim.
- Ele só fica olhando. É tão quietinho.
- É assim que queremos que ele seja.
- As águas paradas são as que têm maior profundidade.
- Não nesse caso. A única profundidade que ele tem são os buracos nos ouvidos" - (p.24).
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"- Você vai comer cada cenoura e cada ervilha em seu prato! - disse meu pai.
(...) Comecei a comer. Era terrível. Sentia como se os estivesse comendo, comendo as coisas em que acreditavam, aquilo que eles eram. Não mastiguei os alimentos, engoli-os apenas, como que para me livrar da obrigação (...). Quando voltei ao meu quarto, pensei: essas pessoas não são meus pais, devem ter me adotado e agora não estão satisfeitas com o que me tornei" - (.45-6).
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"Não sabia se estava infeliz. Sentia-me miserável demais para ser infeliz" - (.73).
"Levei algumas surras do meu pai por sair com Frank, mas percebi que iria apanhar de qualquer jeito. Assim, pelo menos, eu me divertia" - (p.93).
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"Um dia eu estava ali parado, esperando como de costume, de mal com o pessoal, mas a fim de fazer as pazes com eles, quando Gene se aproximou de mim correndo:
- Ei, Henry, venha cá!
- O que é?
- Venha de uma vez!
Gene começou a correr e fui atrás dele. Seguimos até o quintal dos Gibson. Os Gibson tinham um muro alto de tijolo ao redor de todo o pátio dos fundos.
- Veja! Ele está com o gato encurralado! Ele vai matá-lo!
Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos enm fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldoque fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.
- Cara, vocês armaram essa - eu disse.
- Não - rebateu Chuck -, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados - eu disse.
- Barney vai matar o gato - disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do bichano - disse Eddie. - Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerrado.
Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pelos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.
O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?
Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas não tinnha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.
- Chuck - eu disse -, deixe o gato ir, por favor. Chame seu cachorro.
- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato!
Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.
- Pegue ele, Barney - disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito! - gritei para ele.
- Não fale comigo desse jeito - retrucou.
- Cara, vocês armaram tudo isso aqui - eu disse.
Ouvi um leve ruído atrás de n´s e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por quê?
(...)
O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse sscapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidadeinteira. 
Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chagando à calçada. Caminhei emdireção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.
- Onde você estava? - ele eprguntou.
Não respondi.
- Já pra dentro - ele disse. - E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei para que você realmente sinta o que é infelicidade! " - (p.97-9).
*
"Precisávamos de compaixão. Nossas vidas já eram suficientemente idiotas. Alguma coisa tinha que nos salvar " - (p. 110).
*
"Que tempos penoso foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade" - (p.238).
(In. Misto-quente. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2013).