Pesquisar este blog

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morra, amor - Ariana Harwicz

 

"Quero ir ao banheiro desde que acabou o almoço, mas é impossível fazer qualquer coisa além de ser mãe. E dá-lhe choro, chora, chora, chora, vou ficar doida. Sou mãe, pronto. Eu me arrependo, mas nem posso dizer. Para quem. Para ele, sentado os meus joelhos, metendo a mão no meu prato com seus restos frios, brincando com o osso de galinha? Não. Deixa isso que você engasga. Jogo um biscoitinho para ele. Ele me devolve. Tenho a boca cheia da sua saliva, de migalhas. Tenho tomate grudado no braço. Não o deixo terminar e lhe meto outro biscoito, ele se entala. Não me preocupo com o que possa pensar de mim. Eu o trouxe ao mundo, já é o suficiente. Sou mãe em piloto automático. Choraminga e é pior do que o choro. Eu o levanto, lhe ofereço um sorriso falso, aperto os dentes. Mamãe era feliz antes do bebê. Mamãe se levanta todos os dias querendo fugir do bebê e ele chora mais. Quero ir ao banheiro, mas esse cacarejo interminável, essa queixa, faz com que seja impossível. Que quer de mim. O que você quer? Não me deixa deixá-lo. Arqueia-se. Ontem tive que ir fazer com ele, hoje prefiro fazer na roupa. Ligo para o meu marido. Preciso de reforços. Enquanto ligo eu o levo pendurado em um ombro, vai me destroncar, gruda algo viscoso no meu umbigo. Atende, por favor, atende. Oi, escuta, amor, você precisa vir não aguento mais. Não, não dá para demorar tanto, você tem que vir já, você não está entendendo, não está querendo entender, não aguento até de noite, e desligo na cara dele porque ele se faz de desentendido; que pelo menos se assuste e venha. E ficamos rodando enredados no cabo para o caso de ele ligar e o levo até a porta para ver se passa alguém a quem eu o possa dar. Mas não há vizinhos como os que preciso. Há bastardos. E se eu bater n porta da velha que vive com as janelas gradeadas e suas tartarugas agressivas? Certamente poderia distraí-la, seria como ter uma televisão, como ir ao cinema. Ninguém passa, ninguém o quer, nada se mexe, ar parado dos diabos. Eu o deixo largado aos meus pés. Ele se retorce, se estica, grita comigo, arranca a fralda e desabotoa meus sapatos, come a tira de couro. Eu o olho como um caranguejo olha para um menino. Um carro de corrida passa com uma família. Têm a cara para fora das janelinhas. É noite e continuo apoiada na porteira, me vejo grávida, quando achava que levava dentro de mim uma gárgula. Eu me vejo parindo, expulsando. Picam a gente, tenho que entrar e acender a lareira, tirar o almoço repleto de formigas vermelhas levando comida para o inverno que vem. O pai nem piscou. Eu o levo nas costas e entro com ele suado e faminto, as unhas afiadas. Tenho que fazer macarrão ou sopa para ele, ir pegar alguma verdura na horta do vizinho, mas me dá leseira. Ser mãe é tão pouco excitante. Morro de vontade. Uma bola se forma dentro de mim. Eu o deixo cair, cruzo as pernas. Corro e me fecho. Chora como os asiáticos nos enterros rasgando as vestimentas. Não aguento e abro a porta para ele, penso quão asqueroso é isso tudo" - (pp.89-90).
(In. Morra amor. Ariana Harwicz. São Paulo: Editora Instante, 2019).

Mais sobre o livro:

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A vida mentirosa dos adultos - Elena Ferrante

 

"Eu detestava aquele Pai que havia criado seres tão frágeis, expostos continuamente à dor, facilmente perecíveis. Detestava que ele observasse como nós, fantoches, lidávamos com a fome, a sede, as doenças, os terrores, a crueldade, a soberba e até mesmo com os bons sentimentos que, sempre sob o risco da má-fé, ocultavam a traição. Detestava que ele tivesse tido um filho parido por uma mãe virgem e o expusesse ao pior, como acontecia com as mais infelizes das suas criaturas. Detestava que aquele filho, embora tivesse o poder de fazer milagres, usasse aquele poder para jogos poucos resolutivos, nada que realmente melhorasse a condição humana. Detestava que aquele filho tendesse a brigar com a mãe e não tivesse coragem de sentir raiva do pai. Detestava que o Senhor Deus deixasse aquele filho morrer entre tormentos atrozes e que, ao seu pedido de ajuda, não se dignasse a responder. Sim, era uma história que me deprimia. E a ressureição final? Um corpo horrivelmente massacrado que voltava à vida? Eu tinha horror dos ressuscitados, não conseguia mais dormir à noite. Por que vivenciar a experiência da morte se depois voltamos à vida por toda a eternidade? E que sentido tinha a vida eterna em meio a uma multidão de mortos ressuscitados? Era mesmo uma recompensa ou uma condição de intolerável horror? Não, não, o pai que residia no céu era exatamente como o pai desafeiçoado dos versículos de Mateus e de Lucas, aquele que dá pedras, serpentes e escorpiões ao filho que tem fome e pede pão. Se eu conversasse a respeito com meu pai, corria o risco de acabar dizendo: esse Pai, papai, é pior do que você. Por isso, eu justificava todas as criaturas, até as piores. A condição delas era dura e, quando ainda assim conseguiam exprimir, de dentro do seu lodo, grandes sentimentos verdadeiros, eu ficava do lado delas" - (pp. 261-262).

*

(In. A vida mentirosa dos adultos. Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020).

*

Mais sobre o livro:

https://istoe.com.br/a-vida-mentirosa-dos-adultos-reafirma-paixao-e-coragem-na-voz-de-elena-ferrante/

https://blog.intrinsecos.com.br/tag/a-vida-mentirosa-dos-adultos/

https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/como-e-feia-essa-menina

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Contos de cães e maus lobos - Valter Hugo Mãe

 

"Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes de paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.

Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento (...).

Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.

Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.

O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de-escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.

Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas" - (pp. 55-56).


(Contos de cães e maus lobos. Valter Hugo Mãe. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2018).

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O fascismo eterno - Umberto Eco

 

"1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo (...).

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade (...)

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão (...)

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se ornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição (...)

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos (...).

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do "nacionalismo". Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. Mas a conspiração tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora (...)

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo (...)

9. Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes "vida para a luta". Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente (p.44-52).

(In. Umberto Eco. O Fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020).

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Seu paciente favorito - Violaine de Montclos

 

"Dois Homenzinhos de Papel Machê - Sylviane Giampino & Gretel".

"Gretel agendou uma consulta para uma menina de nove anos. Sylviane Giampino imaginou, portanto, ver chegar uma mãe com sua filha, mas é uma mulher de 63 anos que se apresenta, sozinha, à porta de seu consultório. O encontro delas começa com um mal-entendido.
Gretel explica com um forte sotaque que deseja falar de Violette, sua neta, que passa por um sofrimento incompreensível. Faz pouco tempo, a criança não consegue mais andar. Ela começou, há alguns meses, a sentir dores difusas, depois começou a mancar, a pular em uma perna só, e, desde então, Violette não consegue mais se manter de pé. É impossível, de tanta dor que sente, colocar um pé no chão. Evidentemente, foram feitos todos os exames de prache, pensou-se em uma doença degenerativa,  foi descartado o fantasma de uma questão neurológica. Violette, fisiologicamente, não tem nada. Acabou de dar entrada, para uma breve estadia, no serviço psiquiátrico de um grande hospital parisiense.
Gretel mantém uma relação difícil com a própria filha, mãe da criança. Sua filha e o esposo a mantêm violentamente afastada desse acontecimento. O casal insinua que ela é indesejável ao lado da neta, que, no fundo, sua presença é nociva, como se quisessem proteger a criança de algum misterioso perigo do qual ela seria a portadora. A velha senhora conseguiu, ainda assim, visitar Violette, e conversou com sua psiquiatra, que fala da situação da criança, que evoca os casos espetaculares de histeria outrora examinados por Charcot e que elucida que o caso, ao que tudo indica, é raríssimo. Gretel, muito angustiada, vem encontrar Sylviane Giampino na esperança de entender o que acontece com sua neta: ela é psicanalista, lida frequentemente com crianças, poderia ajudá-la a elucidar esta situação?
Eis a pergunta feita na ocasião desse encontro frente a frente, e que, portanto, não caracteriza uma demanda de análise. Sylviane Giampino tenta, no entanto, procurar saber mais sobre a tensão que existe com a mãe de Violette, e a velha senhora, então, descreve sua filha mais velha como uma mulher extremamente brilhante, uma quimica renomada, um pouco fria, muito organizada, a quem ama, mas ao mesmo tempo, teme. Ela usa, ao descrevê-la, esta expressão desconcertante: "Ela é de raça pura". Ela fala também, em um mesmo impulso, de sua mãe...Gretel nasceu durante a guerra, contaram-lhe que sua mãe havia fugido com ela, ainda bebê, e que ficaram escondidas, as duas, por alguns meses, no final do conflito. É isso. Desde o primeiro encontro, quatro gerações de mulheres são, então, convocadas para o consultório de Sylviane Giampino, entre as quais, a menina que não consegue mais andar. Diante de mim, muito tempo depois dessa visita inaugural, a psicanalista mergulha no pequeno dossiê que manteve durante o tratamento de Gretel e que contém nomes, datas, alguns detalhes significativos. Mas a consulta a esse dossiê é supérflua, já que Sylviane Giampino não esqueceu nada da surpreendente história que virá adiante.
(...) Gretel está frequentemente melancólica, oprimida pelo sofrimento de Violette e pela frieza demonstrada pela própria filha. Fala muito de seu pai, grande médico, figura muito admirada, que Gretel, assim como seus irmãos, amou muito. Prisioneiro em um campo russo, retornou ao lar apenas cinco anos após o fim da guerra; a velha senhora se recorda muito bem dos reencontros felizes. Ela fala de seu esposo, da maneira como educaram seus três filhos, uma menina e dois meninos, da profissão que exerceu, e, agora, de sua aposentadoria. Ela evoca também a mania que tem, desde sempre, de guardar papeis velhos. Todos os papéis. Calendários, boletins escolares, receitas médicas, faturas, desenhos, cartões-postais, cartas, documentos administrativos de todo tipo. Ela diz que faz camadas, pilhas que invadem o escritório, a sala, o sótão. Seu marido fica irritado com isso, não sabe mais onde colocá-los, seria necessário desfazer-se deles, que se pensava ser inútil, algum dia se revelasse indispensável? Ela se justifica, citando misteriosamente uma frase que atribui a Goethe: "O papel é paciente".
Semanas, meses, perto de dois anos se passaram e Gretel, desde então, adquiriu o hábito de ir falar com sua psicanalista toda semana. Ela se apresenta vestida de maneira muito simples, mas sua aparência e graça natural impressionam Sylviane Giampino (...). Gretel fala também de sua nova paixão. Desde que inicia as visitas a Sylviane Giampino, aprende a confeccionar, com um enorme prazer, esculturas em papel machê.
(...)
Então, uma cena surpreendente lhe retorna brutalmente. Teria sonhado, imaginado, assistido? Gretel vê seu pai vasculhar a casa da família, revirar cada um dos cômodos como um louco, esvaziar as gavetas, correr de um andar a outro; efetivamente, tinha perdido um papel de importância crucial...Ela quer saber mais sobre isso, vai e volta da Alemanha várias vezes, onde sua mãe muito idosa ainda reside, tenta entender de onde vem essa lembrança, mas não obtém resposta e mergulha então em profunda desolação. "Não tenho mais forças", ela diz à sua psicanalista. Apenas na quarta viagem é que a mãe reconhece, enfim, que houve, algum dia, um papel perdido.
Ao final dos anos 1940, em plena desnazificação, o documento atestava que o pai de Gretel não era um nazista, e ele o perdeu. Ele nunca mais achou esse papel de tão extrema importância? Não. E ela, sua mãe, nunca pôde ver o papel com os próprios olhos? Também não.
A partir de então, contra a opinião de sua mãe e de seus irmãos e irmãs, mas encorajada por seu esposo, Gretel dá início a pesquisas, percorre associações e as bibliotecas, consulta documentos históricos. E descobre, enfim, o verdadeiro objeto de sua vergonha. Seu pai, o homem que ela tanto amou, o médico tão admirado, essa figura tão importante de sua existência, era um nazista. Teria até mesmo participado de experimentos médicos, trabalhando como ginecologista, para a ascensão de uma suposta "raça pura". Nem a mãe de Gretel, nem seus primos, nem nenhum de seus irmãos, com exceção de um, querem saber disso. Eles a ridicularizam, a criticam por vasculhar inutilmente o passado, e Sylviane Giampino fala hoje da imensa admiração que tem pela tenacidade de sua paciente. Descobrir-se, em tal idade, herdeira de história tão vergonhosa e manter-se firme, apesar de tudo. Gretel lhe dirá um dia, em sessão: "Se é necessário que eu derrube a estátua de meu pai para que Violette ande, então como poderia desistir?".
Pois é exatamente disso que se trata. Violette, que, no entanto, nada sabe do trabalho que sua avó realizou sobre ela mesma e sobre seu passado, Violette, a quem Gretel evita revelar seu segredo, Violette iniciará o sétimo ano em pé, logo após essa terrível descoberta...E é isso que Gretel, feliz, anuncia, enfim, à sua psicanalista, certa de ter libertado sua neta. 
(...)
E Sylviane Giampino jamais se esquecerá o sorriso de Gretel em sua última sessão. No cafarnaum de objetos alegres que enfeitam sua sala de espera, existe, em cima de uma prateleira, o presente que sua paciente lhe ofereceu, ao dizer adeus: dois homenzinhos em papel machê" - (pp. 85-90).

(In. Seu paciente favorito - 17 histórias extraordinárias de psicanalistas. São Paulo: Perspectiva, 2020).

Mais sobre o livro:
 

O que ela sussurra - Noemi Jaffe (trecho)

"O passado é um cobertor rosa que não serve para cobrir nossos corpos. Sempre falta ou sobra uma parte e as memórias se contorcem, são como galhos semimortos presos a raízes parasitas, você e eu. O tempo ultrapassa nossos corpos, mas precisa se agarrar a eles, tomar seu tamanho e hoje meu tempo cabe exatamente em mim, o passado fui eu que inventei. Por que, na alvorada da nova era, no começo mesmo do século XX, eu recebi o nome de Nadejda? Foi esperança que eles quiseram me nomear, para que eu ficasse condenada ao futuro, projetando-me para a frente, quando meu corpo só me puxava para trás. Sou o passado lançado para um futuro, cujo único conteúdo conhecido é continuar a sussurrar teus poemas" - (p.16).
*
"É preciso manter alguma irracionalidade, alguma infantilidade quando você está sendo perseguido sem explicação. Não é possível ficar pensando estrategicamente ou manter a seriedade ou o desespero o tempo todo. Tínhamos formas de acreditar que a normalidade era possível e, entre eles dois, espirituosos e sardônicos, o humor fazia o papel de sanidade e até de sobrevivência. Se não mantivessem o riso diante do absurdo, cederiam a ele e perderiam a pouca força que tinham. Óssip cardíaco e Anna viúva com o filho preso" - (p.42).




"Já compreendi que a realidade das coisas é que se molda conforme o desejo, o gosto e a conveniência do intérprete e não o inverso e, nesse caso, tudo é possível, até acreditar na poesia de Óssip, de Pasternak, de Akhmátova e no partido ao mesmo tempo" - (p. 51).

*

"Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo" - (p.57).

"Passei mais de vinte anos sussurrando; uma dedicação comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e agora eu entendo que não foi só para proteger os poemas do esquecimento. Foi também para continuar perto dele e ele perto de mim, para que um amor que sempre foi físico e erótico - a noite todas as nossas discordâncias se dissolviam - tivesse uma continuidade também concreta, pela voz e pelo som. Todo poema que falo me faz sentir mais redonda, as sílabas se reunindo na boca, passando pela língua me fazem subitamente bonita, as palavras sendo sopradas pelos círculos de fumaça, que assopro a cada tragada, me transformam rápido numa coquete. É patético, mas ainda tenho uma intimidade, eu que me dediquei a apagá-la" - (p.80).

(In. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020).

*

Para saber mais sobre o livro:



quinta-feira, 30 de julho de 2020

Caderno de memórias coloniais - Isabela Figueiredo (trechos)

"As incursões sexuais pelo caniço não assombravam o seu futuro, porque uma negra não reclamava paternidade. Ninguém lhe daria crédito.
Mas um branco podia, se quisesse, casar com uma negra. Esta ascenderia socialmente, e passar a a ser aceite, com reservas, mas aceite, porque era mulher do Simões, e por respeito ao Simões... Era frequente no caso dos cantineiros e machambeiros afastados da cidade, homens relativamente à parte na sociedade colonial decente, que mais cedo ou mais tarde se cafrealizavam.
Para uma branca, assumir união com um negro, implicava proscrição social. Um homem negro, por muito civilizado que fosse, nunca seria suficientemente civilizado" - (p. 35).
*
"Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, e abrir as pernas, a ser largas. Uma branca cumpria a obrigação" - (p. 40).
*
"O negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse.
Esta era a ordem natural e inquestionável das relações: preto servia o branco, e branco mandava no preto. Para mandar, já lá estava o meu pai; chegava de brancos!" - (p.43).
*
"O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras do jardim. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção nenhuma. Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade, sem a prosperidade do seu corpo, logo, sem existência. Nada nos meus livros, que recorde, estava escrito desta exata forma, mas foi o que li" - (p. 46).
*
" A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre" - (p. 127).
*
"Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados.  Há vítimas-vítimas e vítimas culpadas. Entre as vítimas há carrascos.
Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensávamos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias de sangue e de raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo." - (p. 136).
(In. Caderno de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2018).
*
Mais sobre o livro:
*
Sobre Isabela Figueiredo:

terça-feira, 28 de julho de 2020

José & Pilar - conversas inéditas (trechos)


"Eu não perdi nada da minha identidade, a Pilar tão-pouco. Nesse sentido, somos muito respeitadores de cada um de nós em relação ao outro. Isso não quer dizer que não se aprenda com o outro, que não se transmita ao outro algo daquilo que é nosso, e não quer dizer que isso que se transmite não seja incorporado no outro. Pois se eu leio hoje um livro e se esse livro influi em mim, como é que não há de influir a pessoa com quem eu vivo um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos? Mas nem eu me converto no livro nem me converto na outra pessoa. Agora, que nós nos interpenetramos a toda hora com emoções, com sentimentos, com ideias, com opiniões, e tudo mais... claro. Cada um de nós é um mata-borrão, um mara borrão que vai absorvendo aquilo que encontra" (José, p. 76).
*
"Não, eu não me sinto mais jovem. Hoje eu tenho oitenta e quatro anos, naquela altura eu tinha sessenta e três. Repara na diferença. Agora, aquilo que eu posso perguntar, e me pergunto muitas vezes, e para o que não tenho resposta, é que pessoa de oitenta e quatro anos eu seria hoje se não a tivesse conhecido. O problema está aí e é o que eu quis dizer com "se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, morreria muito mais velho do que serei quando isso tiver que suceder". É porque esses vinte anos não passaram em vão, não são vinte anos vividos simplesmente um atrás do outro. São vinte anos cheios de uma riqueza, de uma força, de uma intensidade...Imagine que eu não a tinha conhecido e você diz "Ah, mas teria conhecido outras mulheres". Com certeza! Mas, enfim, não é disso que se trata, não é uma questão quantitativa, saber que conheceria outras mulheres ou não conheceria nenhuma, não é isso. É simplesmente o fato de que conheci a ela, nada mais. Isso mudou a minha vida completamente" - (José, p. 79).
*
"La familia es un grupo social. Y lo que decia el otro día es que, en líneas generales, es el grupo social más perverso que puede haber para el individuo" - (Pilar, p. 90).
*
"No! Porque si se pudiesse morir de amor, conozco algunas personas que ya habrían muerto de amor. No. Se puede morir de desgarro, se puede morir de despecho,..De eso que hablávamos antes, de perversión, de la perversión de los sentimientos que pueden ir consumiendo, pero el amor es expansivo, lo llena todo. Creo que se vive de amor" - (Pilar, p.94).
*
"...yo entiendo que la fidelidad no se pide, pero, además, tampoco se entrega. Se vive y punto. Uno la vive, y la ora parte hará lo que sea. Y uno, de lo que tiene que estar seguro es de lo que hace, y la otra parte tendrá que actuar también de acuerdo con sus principios. Y lo que puedes pedir es que cambie" - (Pilar, p. 95).
*
"pues como la tienes garantizada, que dejes de pensar. O sea, la muerte es la única cosa que tenemos garantizada, así que vamos a pensar en otra cosa. Ese objetivo ya está conseguido. El objetivo de morir ya lo tenemos conseguido. Ahora vamos a conseguir el objetivo de vivir" - (Pilar, p. 201).
(In. José e Pilar. Conversas inéditas. Miguel Gonçalves Mendes. Lisboa: Quetzal, 2011).
*
 Documentário José e Pilar (trailer):
 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

O inventário das coisas ausentes - Carola Saavedra

"Há sempre algo que me escapa. Talvez esteja nessa vivência original o grande mal-entendido" - (p.25).
*
"Eu penso, casei com uma mulher e com a biblioteca dessa mulher. Casei com as leituras dessa mulher. E com os livros que ela comprou e nunca leu. Luiza volta com um livro na mão, aqui o húngaro que você está procurando, depois me dá um beijo e volta para a mesa de jantar onde além do computador, acumulam-se uma série de teses de mestrado e doutorado, trabalhos de faculdade, cadernos, pequenos vasos de plantas, velas. Luiza espalha suas coisas por toda a casa, quadros, plantas, enfeites, pouco a pouco foi ocupando todos os espaços. Eu olho para ela, surpreso que isso não me incomode" - (p.27).
*
 "Não é fácil ter um corpo, não é algo necessariamente natural, para isso é preciso coragem. Faço alguns ensaios. Abro um pote de creme, passo pelas pernas, coxas, braços, o creme promete manter a pele brilhante e elástica. Uma pele que não se desfaça, que mantenha órgãos e vísceras ordenados naquele espaço vazio, ou que ao menos dê limites a essa espaço. O corpo é uma rede que nos envolve" - (p.46).
*
"A casa das palavras é frágil e ressecada. Eu te amo, diz o texto. Talvez entre o eu te amo e o amor propriamente dito haja um espaço intransponível. Talvez o tempo que passa. Mas não apenas. Talvez um inevitável desencontro. Essa incoerência " - (p. 64-65).
*
"Você não sabe o que é a morte, o que é chegar muito perto da morte, tê-la ao seu lado, dentro de você, mas eu sei, e não desta morte agora, esta morte do dia a dia, eu me refiro à outra, àquela que escava, que invade, que aprofunda no corpo, a morte agarrada ao corpo, feito um polvo, a morte e seus tentáculos de polvo, suas ventosas. Eu tinha dezenove anos quando vi a morte pela primeira vez, quando a conheci, e ela me acompanharia o resto da vida, até agora, até que a morte me resgate da morte, entende?" - (p.85).
*
"Aos quarenta e seis anos tudo o que eu tenho é um apartamento alugado, dois quartos, na realidade um quarto e outro reversível. Tenho também Nina, mas não a tenho, tenho também um trabalho, mas não o tenho. É necessário coragem para possuir as coisas, o homem velho diz, porque coragem não é só sair por aí vociferando meia dúzia de ideais, coragem é ser capaz das coisas mais prosaicas, como ter coisas que te prendam a um lugar, que te amarrem, coisas que pesem sobre teus ombros, veja esta casa, ela pesa sobre os meus ombros, veja estes livros, esta casa, esta mesa, estas paredes, está vendo?, tudo aqui pesa sobre os meus ombros, inclusive você, nada mais pesado do que você sobre os meus ombros, desde o início (...) Porque o peso não te deixa ir embora" - (p. 102).

(In. O inventário das coisas ausentes. Carola Saavedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014).
*
Sobre o livro:
*

Primavera num espelho partido - Mario Benedetti (trechos)

"É curioso, mas o bom companheirismo não consiste sempre em falar ou ouvir, em contar vidas e mortes, amores e desamores, em narrar romances que lemos há muito tempo e que agora já não temos à mão, em discutir filosofia e seus meandros, em tirar conclusões de experiências passadas, em analisar e nos analisar ideologicamente, em intercambiar as respectivas infâncias ou, quando se pode, em jogar xadrez. O bom companheirismo consiste muitas vezes em calar, em respeitar o mutismo do outro, em compreender que é disso que o outro necessita naquela precisa e obscura jornada, e então envolvê-lo com nosso silêncio ou deixar que ele nos envolva com o seu, porém, e esse porém é fundamental, sem que nenhum dos dois o peça ou exija, mas que o outro compreenda por si mesmo, numa espontânea solidariedade" - (p. 163).
*
"Não há (e talvez não haja) casamento, mas o que não posso negar é que, embora Lydia não seja de minha aldeia, ela é, em compensação, de minha casta, de minha tribo. E isso de ter me vinculado ao país Lydia não é simplesmente linguagem figurada, pois foi ela quem me introduziu nas coisas, nas comidas, nas gentes daqui" - (p.186).
*
"Você se dá conta Rolando, de tudo que essa carta diz? Pode ler, como eu, todas as entrelinhas? Por isso eu disse há pouco que talvez esteja feliz e é isso que me deixa um pouco estranho. Estar feliz e, no entanto, não ser feliz. Ah, nunca imaginei que estar feliz pudesse incluir tanta tristeza, sabe?" - (p.198).
 (In. Primavera num espelho partido. Mario Benedetti . São Paulo: Alfaguara, 2018).

Sobre o livro:

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Meu ano de descanso e relaxamento - Otessa Moshfegh

"Não consigo reconhecer nada que justifique minha decisão de hibernar. No começo, eu só queria uns tranquilizantes para abafar meus pensamentos e juízos, já que o bombardeio constante tornava difícil a tarefa de não odiar a tudo e a todos. Achava que a vida seria mais tolerável se meu cérebro demorasse um pouco mais para condenar o mundo ao meu redor " - (p.22).
*
"Eu não era insone, era infeliz. Me lamuriar para a dra. Tuttle teve um efeito estranhamente libertador" - (p. 25).
*
"Nada parecia real de verdade. Dormindo, acordada, tudo colidia numa viagem cinzenta e monótona de avião por entre as nuvens. Eu não conversava mentalmente comigo mesma. Não tinha muito o que dizer. Foi assim que soube que o sono estava fazendo efeito: estava ficando cada vez menos apegada à vida. Se continuasse, pensei, desapareceria por completo, depois reapareceria sob alguma outra forma. Essa era a minha esperança. Esse era o meu sonho" - (p. 76).
*
"O mundo da arte acabou se mostrando parecido com o mercado de ações: um reflexo de tendências políticas e convicções do capitalismo movido pela ganância, por fofoca  cocaína. Eu bem que podia ter trabalhado em Wall Street, teria dado na mesma. Especulação e opiniões guiavam não só o mercado como também os produtos e, infelizmente, os valores, que dependiam não da inefável qualidade da arte enquanto ritual humano sagrado - um valor que de qualquer forma é impossível medir -, mas do que um bando de idiotas ricos achava que "elevaria" seus portfólios e inspiraria inveja e, delirantes como eram, lhes traria respeito. Eu ficava bem feliz de ter tirado rodo aquele lixo da minha cabeça" - (p.154).
(In. Meu ano de descanso e relaxamento. Otessa Moshfegh. São Paulo: Todavia, 2019).

Mais sobre o livro em:
*
*
*

Querida Kombini - fragmento


"Não me lembro com clareza de como era minha vida antes de eu renascer como funcionária da loja de conveniência.
Nasci em uma família comum, numa área residencial dos subúrbios, e cresci cercada de amor como qualquer criança. Porém, as pessoas costumavam me achar estranha.
Certa vez, por exemplo, quando estava no jardim de infância, encontramos um passarinho morto no parque. Era um lindo pássaro azul, provavelmente fugido de alguma gaiola, e estava caído no chão com o pescoço retorcido. As outras crianças choravam ao seu redor. Enquanto uma menina murmurava "Oh, e agora, o que vamos fazer?", eu rapidamente peguei o passarinho do chão e o levei até minha mãe, que estava de conversa, sentada em um banco.
- O que foi, Keiko? Puxa, um passarinho! De onde será que ele veio? Coitadinho... Vamos fazer uma sepultura para o senhor passarinho, Keiko? - disse ela com voz gentil, afagando minha cabeça.
- Vamos comer isto aqui! - eu disse.
-Quê?
´- Vamos levar para casa e comer hoje à noite. Podemos fazer espetinho, como o papai gosta - achei que ela não tinha me ouvido direito, então expliquei pronunciando claramente as palavras.
Minha mãe se encolheu assustada. A mãe de outra criança, sentada ao seu lado, também deve ter ficado em choque, pois seus olhos, narinas e boca se escancaravam todos de uma vez. Era uma expressão muito engraçada e eu quase ri. Mas ao notar que ela também olhava para o passarinho na palma da minha mão, pensei que talvez um só não fosse suficiente.
- É melhor a gente pegar mais alguns? - perguntei, lançando um olhar para dois ou três pardais que ciscavam ali por perto.
- Keiko! - minha mãe voltou a si e me censurou com um grito nervoso.. - Temos que fazer uma sepultura para o pobrezinho. Olha só, todo mundo está chorando, estão todos tristes porque o amiguinho morreu. Que  peninha dele, não é?
- Mas por quê? Ele já morreu, mesmo! É melhor aproveitarmos.
Minha mãe ficou sem palavras.
Na minha mente eu via meu pai, minha mãe e minha irmã, que ainda era pequena, comendo alegremente o passarinho. Meu pai gostava de espetinho, eu e minha mãe gostávamos de frango frito... Havia tantos passarinhos naquele parque, a gente podia levar um monte! Eu não entendia o propósito de enterrar o bicho em vez de o comermos.
- Olha só Keiko, ele é tão pequeno e bonitinho! Vamos fazer uma sepultura para ele e enfeitar com flores, tá? - insistiu minha mãe.
No fim das contas, foi isso o que aconteceu, mas para mim não fazia sentido algum.
- Coitado do passarinho, que judiação! - repetiam todos, aos prantos, enquanto matavam flores partindo seus caules.
- Que flores lindas, o passarinho vai ficar muito contente!
Para mim pareciam loucos" - (p. 13-15).
*
"Não era minha intenção deixar meu pai e minha mãe confusos ou aflitos, nem obrigá-los a se desculpar para várias pessoas, então decidi que, fora de casa, falaria o mínimo possível. Resolvi deixar de fazer qualquer coisa por iniciativa própria e apenas imitar o que todo mundo fazia, ou obedecer as ordens de alguém.
Quando parei de falar o que quer que fosse além do estritamente necessário e de agir de forma espontânea, os adultos pareceram aliviados.
(...)
Continuei assim mesmo depois de me formar no ensino médio e entrar na faculdade. Passava praticamente todo meu tempo livre sozinha e quase não tinha conversas particulares. Meus pais se preocupavam comigo, pois ainda que eu não causasse mais tumultos como os do começo do primário, decerto acreditavam que eu não conseguia me inserir na sociedade daquele jeito. Assim, sempre pensando que eu precisava me curar, fui me tornando adulta - (p.18-19).
*
(In. Querida Kombini. Sayaka Murata. São Paulo: Estação Liberdade, 2019).

Mais sobre o livro:

*

Resenha do livro:

domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobre os ossos dos mortos - Olga Tokarczuk


"Cresci numa bela época, que infelizmente já passou. Havia nela uma enorme disposição para mudanças e a capacidade de criar ideias revolucionárias. Hoje em dia ninguém tem a coragem de inventar algo novo. Fala-se apenas sobre como as coisas já são e se continua lançando as mesmas ideias antigas. A realidade envelheceu e ficou senil; está sujeita às mesmas leis que qualquer organismo vivo - envelhece. Assim como as células do corpo, seus componentes mais elementares - os sentidos - sucumbem à apoptose. A apoptose é a morte natural, provocada pelo cansaço e pelo esgotamento da matéria. Em grego essa palavra significa "a queda das pétalas". As pétalas do mundo caíram" - (p. 60).
*
 "E talvez o próprio Blake, se estivesse vivo, diria, ao ver tudo isso, que ainda havia lugares no universo não tomados pela decadência, o mundo não virou do avesso e o Éden ainda existe. Ali o ser humano não age de acordo com as regras da razão, estúpidas e rígidas, mas segundo o coração e a intuição. As pessoas não matam o tempo se pavoneando com aquilo que sabem, mas criam coisas extraordinárias fazendo uso de sua imaginação. Assim, o Estado não exerce o papel de um grilhão, não constitui o fastio do cotidiano, mas ajuda as pessoas a realizarem os seus sonhos e suas esperanças. E o ser humano não é apenas uma engrenagem no sistema desempenhando um papel predeterminado, mas um ser livre. Era isso que passava pela minha mente, fazendo do meu tempo em repouso quase um prazer.
Às vezes eu acho que apenas os doentes são de fato sãos" - (p. 83).
*
"Os animais mostram a verdade sobre um país (...). A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa" - (p. 99).


"Quando ouvi o relato de Boas Novas sobre sua vida, comecei a formular perguntas que começam com "Por que você não...", seguidas pela descrição do que, em nossa opinião, se deveria fazer naquele tipo de situação. Meus lábios estavam a ponto de articular um desses insolentes "por que você não", mas mordi a língua.
Quem faz isso são as revistas, e, por um momento, eu queria ser como elas: apontam para aquilo que não foi feito, para as falhas e o que foi negligenciado; por fim, nos colocam diante de nós mesmos nos enchendo de autodesprezo.
Então eu não disse nada. As histórias de vida de alguém não são assunto para ser discutido. Deve-se ouvi-las e retribuir na mesma moeda. Por isso eu também falei sobre a minha vida para Boas Novas e a convidei para ir à minha casa e conhecer as meninas" - (p. 123).
*
"Aliás, acho que a psique humana se constituiu para nos incapacitar de enxergar a verdade. Para nos impedir de ver o mecanismo sem obstáculos. A psique é nosso mecanismo de defesa - é responsável por não nos permitir entender aquilo que nos rodeia. Ocupa-se principalmente de filtrar as informações, embora as possibilidades do cérebro sejam enormes. Seria impossível suportar tamanho conhecimento, visto que todas as partículas do mundo, por menores que sejam, estão compostas de sofrimento" - (p.208).
*
"Quem é que dividiu o mundo em útil e inútil, e quem lhe deu o direito de fazê-lo? (...). Quem foi o dono da mente que se atreveu a tanta arrogância para julgar quem é melhor ou pior? Uma árvore enorme e cheia de buracos sobreviveu por vários séculos sem ser derrubada, porque não se podia fazer nada com ela. Esse exemplo deveria animar pessoas como nós. Todos conhecem o benefício do útil, mas ninguém conhece o proveito do inútil" - (p. 230).

(São Paulo: Todavia, 2019).



Mais sobre o livro:


Canção de Ninar - Leila Slimani


"A solidão agia como uma droga da qual ela não sabia se queria abdicar. Louise vagava pela rua, desconcertada, os olhos tão abertos que doíam. Na solidão, ela começou a olhar para as pessoas. A vê-las de verdade. A existência dos outros se tornou palpável, vibrante, mais real que nunca. Observava nos menores detalhes os gestos dos casais sentados nos terraços. Os olhares oblíquos dos velhotes abandonados. A afetação dos estudantes que fingiam estudar, sentados no encosto de um banco. Nas praças, na saída de uma estação do metrô, reconhecia o estranho desfile dos que estão perdendo a paciência. Esperava com eles a chegada de alguém. A cada dia ela reencontrava os companheiros de loucura, falantes solitários, malucos, mendigos.
A cidade, nessa época, estava cheia de loucos".
(São Paulo: Planeta: 2018, p. 86).