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domingo, 13 de janeiro de 2019

O amor - por Valter Hugo Mãe

"Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido" - (p. 26).
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"O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução" (p.45).
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(In. O paraíso são os outros. São Paulo: Biblioteca azul: 2018). 


salazar em minúscula - Valter Hugo Mãe

"Éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os melhores pais de família. um homem havia de ser medido pelos seus actos, pouco importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte adentro. essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse" - (p. 131).
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"que melhor discurso pode haver para os padres do que a promoção da beleza de ser pobrezinho. a promoção da beleza de ser pobrezinho. é um casamento perfeito. o político que gosta dos pobrezinhos e os mantém pobrezinhos. mas, quer o político, quer a igreja, dominam ou podem dominar o fausto. não é brilhante. isto inventado seria mentira. ninguém teria cabeça para inventar tal porcaria, só sendo verdade mesmo" - (p.150).
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"sabe o que é que afinal foi mesmo uma máquina para roubar a metafísica aos homens. perguntou aquilo e suspendeu-se no nosso ar, expectante, à espera de esclarecimento. a ditadura é que nos quis pôr a todos rasos como as tábuas, sem nada lá dentro, apenas o andamento quase mecânico de cumprir uma função e bico calado. a ditadura, colega silva, a ditadura é que foi uma terrível máquina de roubar a metafísica aos homens" - (p.161).
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"hoje é possível reviver o fascismo, quer saber. é possível na perfeição. basta ser-se trabalhador dependente. é o suficiente para perceber o que é comer e calar, e por vezes nem comer, só calar" - (p.167).
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"O salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que os tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. a maioria silenciosa terá de emergir um dia, dissera-me por outras palavras o estudante comunista. tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma e nos portássemos apenas como engrenagem de uma máquina a passar por cima de nossos ombros, complexa e grande de mais para lhe percebermos o início, o fim e o fito de cultivar a soberba de um só homem. tudo contribuía para que essa cidadania de abstenção, para que apenas a recebêssemos por título honorífico enquanto prosseguíssemos sem manifestação. como se humilham as mulheres enquanto homens honorários, nós éramos gente exclusivamente por generosidade do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como tantos, um porco" - (p.188). 
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(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016).

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mãe

"Na entrega daquele homem, logo ali, havia uma sublimação evidente que partiria de uma dor estrutural"- (p. 45).
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"Um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão que para que, tão à frente à morte, não entremos em pânico. a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de amanhã estejamos mais espertos quando pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. a esperança que  se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige. e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos. nós sabemos que erramos e sabemos que, na distração cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. fazemos por descoordenação entre o que há certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. é tudo mais forte do que nós"- (p.47).
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"Não podemos ficar velhos e miseráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa tomar cuidado com as nossas dores" - (p. 87).
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"Íamos todos progredir. que merda de palavra, o progresso. e o sucesso e tudo quanto o capitalismo usa para nos pôr a competir uns com os outros" - (p. 106).
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"achava que sentir que deus existe é como sentirmos que gostamos de alguém e passamos a vida inteira a creditar na correspondência desse amor para descobrirmos, mais tarde, que a pessoa esteve conosco por inércia, por comodidade. sentir o que não existe é uma qualquer saudade de nós próprios. muita coisa é apenas uma saudade. muitos dos sentimentos. é como lhe digo. sabe, até o suspirarmos por alguma coisa antes da revolução. ó senhor Cristiano, não vai falar outra vez do regime. não é isso, éque é importante pensar nestas coisas, respondia ele, estamos aqui todos fascistas, com pensamentos de um fascismo indelével a achar que antigamente é que era bom. este é o fascismo remanescente que vem das saudades. sabe, achamos que Salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente era bom é que estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de Salazar" - (p.129).
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"Quem fomos há de sempre estar contido em quem somos, por mais que mudemos ou aprendamos coisas novas" - (p. 130).

(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca azul: 2016).