Pesquisar este blog

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dias de abandono - Elena Ferrante (trechos)

"Mostrar-se resistente, sê-lo. Eu tinha que dar um bom exemplo do que eu era. Somente impondo-me esta obrigação poderia me salvar".
*
"...estava lá no meio da densidade das árvores sem nome, a mim me parecia mais uma aquarela do que a realidade. Estavam atrás de mim e aos meus lados. Álamos? Cedros? Acácias? Rubiáceas? Nomes ao acaso, o que eu sabia? Ignorava tudo, até o nome das árvores debaixo da minha casa. Se tivesse de escrever, não teria conseguido. Os troncos apareciam-me todos sob uma lupa poderosa. Não havia dist~^anciã entre mim e eles e, ao contrário, a regra reza que para contar é necessário, antes de qualquer coisa, tomar a distância, um metro, um calendário, calcular quanto tempo passou, quando espaço se colocou entre nós e os fatos, as emoções a serem narradas. Eu, ao contrário, sentia que tudo estava sempre em mim, respiração contra respiração. Mesmo naquela ocasião me parecia, por um momento, não estar vestida com minha camisola mas com um longo manto no qual estava pintada a vegetação do parque Valentino, as avenidas, a ponte Principessa Isabella, o rio, o prédio onde morava, até o cão pastor. Por isso estava tão pesada e inchada. Levantei-me choramingando de vergonha e de dor de barriga, a bexiga cheia, eu não aguentava mais".
*
"Eu não dava tapas, nunca o havia feito, no máximo eu ameaçava. Mas talvez para as crianças não houvesse diferença alguma entre a ameaça e o que realmente se faz. Eu, pelo menos - agora me lembrava -, quando pequena era assim, talvez até já depois de grande. O que poderia me acontecer caso eu violasse uma proibição de minha mãe acontecia de qualquer jeito, independentemente da violação. As palavras realizavam de imediato o futuro e queimava-me ainda hoje a ferida da punição quando eu nem mesmo me lembrava da culpa do que eu poderia ou gostaria de ter feito. Lembrei-me de uma frase recorrente da minha mãe: "Pare ou te corto as mãos", dizia quando tocava os seus materiais de costureira. E aquelas suas palavras para mim eram como tesouras internas, longas e com um metal bem afiado, que saíam pela boca, mandíbulas de lâmina que se fechavam sobre os pulsos deixando tocos costurados com agulha e linha do carretel.
"Eu nunca te dei tapa nenhum", disse.
"Não é verdade".
"No máximo eu disse que daria. Tem uma boa diferença".
Não há diferença alguma, pensei, e me assustei ouvindo esse pensamento na minha mente".
*
"...eu não sabia encontrar uma resposta para a interrogação, qualquer resposta possível parecia-me absurda. Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do por quê".
*
"Preciso, para escrever bem, para ir até o âmago de cada pergunta, de um lugar menor, mais seguro. Apagar o supérfluo. Restringir o campo. Escrever a verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo".
*
"O que aconteceu com você naquela noite?"
"Tive uma reação de excesso que rompeu a superfície das coisas".
"E depois?"
"Caí".
"E onde você parou?"
"Em lugar nenhum. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada".

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Na minha pele - Lázaro Ramos (trechos).

"Lázaro, certamente você não aprendeu que na Revolução Farroupilha lanceiros negros lutaram com a promessa de liberdade. Nem que as primeiras greves no Brasil não foram promovidas pelos italianos, mas por escravos em Ilhéus, no fim do século XVIII. Eles negociaram com os senhores as condições de volta ao trabalho, inclusive o direito de cantar e dançar. André Rebouças, o maior engenheiro do Império, era negro. Não precisamos fazer nenhuma inversão de supremacia: apenas mostrar que o Brasil foi feito através das intervenções de diversos povos".
*
"Satã [Madame Satã] era negro, pobre, gay, e seu corpo era sua única arma. E ele fez uso dessa arma, seja na capoeira, na sexualidade ou como artista nos palcos. Entender esse personagem como um homem que conseguiu se reinventar a despeito do pouco acesso a dinheiro e status social me fez perceber como é possível - e necessário - contar boas histórias invertendo o ponto de vista comum: Satã não é tratado como um coadjuvante de sua própria vida, ele é o senhor do seu destino".
*
"Seu lugar é aquele onde você sonha estar"(...). Eu sempre repetia essa frase em conversas de bar, nas peças que escrevia, em artigos e palestras, sem saber por que não conseguia me livrar dessa sentença chiclete. Hoje assumo: precisava propagar essa ideia de que o sonho é a meta. Há que se desejar mais e pensar que é possível. Ela é o oposto de outra frase muito perigosa e frequentemente dita por aí: "Vá procurar o seu lugar". Como se houvesse um lugar predeterminado que alguém fosse obrigado a ocupar porque não há como escapar dele. Eu sentia que não éramos estimulados a quebrar barreiras nem a enfrentar obstáculos. Por isso repetia a minha frase".
*
"A grande escritora Conceição Evaristo me ensinou algo que nunca vou esquecer. Ela diz que temos visto nos últimos tempos pessoas negras de estratos populares chegarem às universidades, a postos de comando no mercado de trabalho etc. São histórias exemplares, mas também perigosas. Devemos fazer uma leitura de que somos exceção. Quando nos prendemos muito a esse elogio da história pessoal ("ela veio da favela e conseguiu"), corremos o risco de dizer que o outro não conseguiu porque não quis, e isso não é verdade. A exceção simplesmente confirma a regra".
*
"Mas não falemos da lei [10.630], falemos de algo que ouvi da professora Vanda Machado, egbomi do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, numa das muitas conversas que tivemos ao longo do caminho. É uma lenda africana sobre origem adaptada por Vanda e Carlos Petrovich, seu marido, e que descreve melhor os caminhos da lei do que qualquer explicação minha. Chama-se "O espelho da verdade". Me disse Vanda, no quadro de encerramento de uma das temporadas do Espelho [programa do Canal Brasil], que no princípio havia uma única verdade no mundo (em todo fim de programa dessa temporada, Vanda fazia um quadro em que falava como o candomblé é de uma sabedoria enorme - e aplicável - sobre nossas questões existenciais e mesmo sociais).
Entre o Orum (0 mundo espiritual) e o Aiyê (mundo material) existia um espelho, e tudo o que aparecia no Orum materializava-se no Aiyê. Ou seja, o mundo espiritual refletia exatamente o mundo mateiral e não havia a menor dúvida de que cada acontecimento constituía uma verdade absoluta. Portanto, todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade, que ficava justamente entre os dois mundos.
Mas vivia no Aiyê uma jovem chamada Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, desavisadamente, ao perder o controle do movimento ritmado da mão do pilão, bateu forte no espelho, que se espatifou, lançando seus cacos pelo mundo. Assustada, Mahura foi se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando o encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko, uma árvore considerada sagrada para os africanos. Olorum ouviu as desculpas da jovem atentamente e, em seguida, declarou que daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade. "Quem achar um pedacinho do espelho estará encontrando apenas uma parte da verdade, porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar em que se encontra".
Esses somos nós, reflexos de um espelho quebrado que, como um mosaico, apresenta um pedacinho de nossa história. Se visto com carinho, cada pedaço pode ter sua beleza, valores e complexidades reconhecidos. Para isso têm surgido novas vozes, novos portadores do microfone, prontos para ampliar suas falas, experiências e histórias. Ouçam as vozes desse Brasil plural e nosso".
*
"A propósito, uma das entrevistas de que mais gostei de fazer no Espelho foi com Ana Maria Gonçalves. Me lembro dela também dizendo que, durante o processo da abolição, o que as elites quiseram fazer foi um branqueamento da sociedade brasileira. Não havia interesse em integrar os negros, o interesse era que eles desaparecessem. Notem que, quando falamos de um europeu, sempre especificamos se ele é inglês, português, francês; quando falamos de um africano, falamos um africano, e não de onde ele é. A África é um continente, sabiam? Cada região possui características próprias (...). Um jeito que o Brasil arrumou para não valorizar esse passado das nações africanas foi tratar o passado europeu como a História (com H maiúsculo) e o passado africano como etnografia".
*
"A publicidade não virá como elemento de vanguarda que vai mudar a imagem do negro perante a mídia. Ela vai mudar à medida que a sociedade for mudando sua resistência em relação ao negro".

sábado, 5 de agosto de 2017

A desumanização - Valter Hugo Mãe (trecho)

"Acordei e pensei que não fazia sentido nenhum que a morte doesse.
Sente-se como uma dor no estômago mais a fundo. Como se o estômago estivesse a descer e a querer sair pernas abaixo. O meu pai perguntou: a morte. E eu respondi: não. As flores das mulheres. O sangue apodrece e cheira mais forte. Corre dentro como um bocado de fogo raivoso, porque me arde. Expliquei assim. Mas o meu pai não conversou mais nada. Teve vergonha. A minha mãe disse que era um pequeno vulcão. São as flores das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam. Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o que isso significava de perigo e condenação. Ser mulher, explicavam, era como ter o trabalho todo do que respeita à humanidade. Que os homens era para tarefas avulsas, umas participações quase nenhumas. Como se fossem traves de madeira que se usavam momentaneamente para segurar um teto que ameaçasse cair. Se não valessem pela força, nunca valeriam por motivo algum, porque de coração sempre estavam mal feitos. Eram gulosos, pouco definidos, mudavam com facilidade os desejos, não conheciam a lealdade passional, concebiam apenas engenharias e mediam até os amores pelo lado prático da beleza, gostavam sempre de quem lhes parecesse dar mais jeito, como se procurassem empregadas ao invés de esposas, como se precisassem de precaver os seus próprios defeitos mais do que as virtudes livres das mulheres.
(...).
Se um rapaz entrasse dentro de mim, deixava-me filhos. Sairiam filhos de mim. Como se um saco onde estivessem guardados. Pasmava à espreita das minhas pernas nuas. O cimo das pernas aberto como se estivesse estragado. Podre. Tinha apodrecido igual à minha irmã morta. Pingava e magoava. Cheirava mal. O sangue estava esquisito. Eu disse: a menstruação é o sangue que entristece".
*
(Valter Hugo Mãe. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.19-20).

Vídeo do lançamento do livro em Lisboa em 2014: