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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

No tempo da minha memória somos pra sempre - Aline Bei

 


"Em são paulo

o Vento ganhou banho,

levou ponto,

tomou vacina.

e o veterinário disse que foi corajoso

meu ato

sorri sem jeito.


-ele ficou até com cara de menino - eu disse

passando a mão no pelo dele.

-não ficou? mas olha,

foi bom você ter falado nisso.

porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a

idade exata dele,

dá pra saber que ele já é bem idoso.


- claro. - respondi.

entendendo que o tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.


em casa eu disse pro Vento

- Chegamos.


ele me ouviu de lado

batendo o rabo

no vaso

que espatifou no chão.


-deixa pra lá, depois eu limpo.


ele subiu no sofá,

se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,

era a melhor cama que ele já teve, os olhos

derramando porto

mais que vinho.


- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o 

nosso encontro.

porque no tempo da minha

memória

somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como

uma canção.

as canções não morrem nunca porque elas moram

dentro das pessoas que gostam delas. você conhece

aquela da rua? se

essa rua

se essa rua fosse minha?

eu mandava eu mandava ladrilhar

com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

para o meu

para o meu

Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que

se chama que se chama solidão.

dentro dele dentro dele mora um

Vento

que roubou

que roubou meu

coração " - (pp. 111-113).

(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).

*

Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....


O mapeador de ausências - Mia Couto

 


"Aprendi a ter vergonha desse passado que, sendo dele, também me pertence. É injusto herdar passados, é como se nos amarrassem o tempo aos nossos pés" - (p. 19).
*
"Mas neste mundo de hoje, meu querido neto, ser cego para as raças pode ser uma maneira de não ver o racismo. E eu quero que estejas atento a este mundo cheio de coisas feias, mas também repleto de gente bonita.
Repara, por exemplo, neste nosso empregado, o Juliano, que está muito velhinho. Pedi ao teu pai que não o mandasse embora. E há boas razões para esse meu pedido. Primeiro porque ele próprio não quer ir. Segundo porque este velho preto - que todos dizem ser já de nenhum préstimo - todos os dias me traz uma história. Na verdade, acho que é o único serviço que ele faz aqui em casa. Não imaginas como preciso de escutar essas histórias. Noutro dia falou-me de um amigo seu que morrera fora de Moçambique.
Conto-te agora esse episódio, pensa nele como a prenda que me pediste ontem quando adormecias. A história fala de um velho mineiro que faleceu nas minas da África do Sul. Os seus companheiros optaram pelo mais fácil: enterrá-lo em território estrangeiro, para evitar a chatice de o transladar. Tiraram-lhe as medias, quotizaram-se entre eles e mandaram fabricar um caixão, o mais barato que houvesse. Quando quiseram colocá-lo dentro da urna, o corpo não cabia. Voltaram à funerária para encomendar um caixão de maiores dimensões. Mas voltou a acontecer o mesmo: o corpo sobrava da madeira. Já sem dinheiro, decidiram prescindir da urna. Embrulharam o cadáver num pano branco para o enterrar à pressa. Aconteceu então que o corpo não cabia na cova. Abriram uma cova maior e logo entenderam que de pouco valia aumentar o tamanho da sepultura. Alguém disse: este morto quer voltar para a sua terra. Colocaram o falecido numa carroça, atravessaram a fronteira e conduziram-no para o lugar onde ele nasceu. E ali o morto coube, enfim, na sua própria morte.
Entendes esta história, meu neto? Não é sobre um morto anônimo e distante. É sobre mim, a tua avó Laura Santiago, condenada a morrer numa terra que, depois destes anos todos, continua a ser estranha. Dizem que Moçambique também é Portugal. Li em algum lado que a eficiência da mentira diz mais da ingenuidade do enganado que da arte do mentiroso. Pois arranjem uma história mais bem engendrada. Desejo muito, meu neto, que te mantenhas ingênuo a vida inteira. Mas deves saber escolher as tuas ingenuidades" - (pp.133-134).


  (In. Mia Couto. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das Letras, 2021 - edição especial TAG).


segunda-feira, 19 de julho de 2021

Natalia Ginzburg & a Psicanálise

 


"En el verano de 1945 comenzó un tratamiento psicoanalitico. "Deberia haberme sentido como una enferma ante un médico. Pero no me se sentia enferma, solo llena de culpas oscuras y de confusión". Durante un par de meses, anotaba todos los dás sus sueños - en un café, a las apuradas, antes de la sesión -, y se sentía como una estudiante. Luego subía, se sentaba frente al analista y hablava con él. "En su mirada nunca se apagaban la ironía y una profunda atención... La luz de su inteligencia me iluminó durante aquel verano negro". Al finalde ese verano decidió regresar a Turín. Extrañaba a sus hijos, quería volver a vivir com ellos". "No me habia liberado de mis neurosis, simplesmente había aprendido a soportalas o, al final, las había olvidado".


(In. Maja Pflug. Natalia Ginzburg: audazmente tímida. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2020).

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O amigo - Sigrid Nunez

 


"Durante a década de 1980, na Califórnia, um grande número de mulheres cambojanas foi ao médico com a mesma queixa: elas não podiam enxergar. Eram todas refugiadas de guerra. Antes de fugirem de sua terra natal, elas testemunharam as atrocidades pelas quais o Khmer Vermelho, que estivera no poder de 1975 a 1979, era bem conhecido.  Muitas delas haviam sido estupradas, torturadas ou, sob outros aspectos, brutalizadas. A maioria testemunhara membros da família serem assassinados. Uma mulher, que nunca mais viu o marido e os três filhos depois que os soldados vieram e os levaram, disse que havia perdido a visão após ter chorado todos os dias durante quatro anos. Ela não era a única que parecia ter chorado até ficar cega. Outras sofriam de visão turva ou parcial, os olhos perturbados por sombras e dores. 
Os médicos que examinaram as mulheres - cerca de cento e cinquenta ao todo - descobriram que os olhos delas eram todos normais. Outros testes mostraram que o cérebro delas também era normal. Se as mulheres estivessem dizendo a verdade - e havia quem duvidasse disso, quem achasse que fingiam porque queriam atenção ou esperavam receber algum benefício graças à deficiência -, a única explicação seria cegueira psicossomática.
Em outras palavras, a mente das mulheres, forçada a absorver tanto horror e incapaz de assimilar mais, conseguiu apagar as luzes" - (pp.7-8).
*
"Eu mesmo estou inclinado a concordar com pessoas como Doris Lessing, que achava que a imaginação faz o melhor trabalho em conseguir a verdade. E não engoli essa ideia de que a ficção não é mais uma questão de retratar a realidade. Eu diria que o problema está em outro lugar. E eis outra coisa que notei os alunos: como eles se tornaram hipócritas, como são intolerantes a qualquer fraqueza ou falha no personagem criado por um escritor. E não estou falando sobre racismo e misoginia flagrantes, por exemplo. Estou falando de qualquer pequeno sinal de insensibilidade ou preconceito, qualquer prova de problema psicológico, neurose, narcisismo, obsessividade, maus hábitos.... qualquer excentricidade. Se o escritor não se encaixar no tipo de pessoa que os alunos gostariam de ter como amigo, o que invariavelmente significa alguém progressista e com um estilo de vida saudável, foda-se ele. Uma vez tive uma turma inteira concordando que não importava quão grande fosse o escritor Nabokov, um homem assim - esnobe e pervertido, conforme o viam - não deveria constar da bibliografia obrigatória de ninguém. Um romancista, como qualquer bom cidadão, tem que se sujeitar às regras, e a ideia de que uma pessoa poderia escrever exatamente o que quisesse, independentemente da opinião dos outros, era impensável para eles. É claro que a literatura não pode cumprir seu papel em uma cultura como essa. O fato de a escrita ter se tornado tão politizada me perturba, mas meus alunos estão mais do que bem com isso. Na realidade, alguns deles querem ser escritores precisamente por causa disso. E, se você se opuser a qualquer coisa, se tentar falar com eles sobre, digamos, arte pela arte, eles tapam os ouvidos, eles o acusam de "profexplicar". É por isso que decidi não voltar a lecionar. Sem querer ser auto compassivo demais, mas, quando alguém está tão em desacordo com a cultura e seus temas do momento, de que adianta?" - (pp.190-191).

(In. O amigo. Sigrid Nunez. São Paulo: Editora Instante, 2019).


Mais sobre o livro:


quinta-feira, 15 de julho de 2021

Zazie no metrô - Raymond Queneau

 


"- Então, por que é que você quer ser professora?

- Pra encher o saco das crianças - respondeu Zazie. - As crianças que tiverem a minha idade daqui a dez anos, vinte anos, cinquenta anos, cem anos, mil anos, sempre vai ter crianças para serem aporrinhadas.

(...)

 - Sabia - disse Gabriel, com calma -, segundo os jornais, não é de jeito nenhum nessa direção que caminha a educação moderna. É totalmente o contrário. Vamos na direção da suavidade, da compreensão, da gentileza. Não é isso, Marceline, o que dizem no jornal?

- É - respondeu Marceline, suavemente. - Mas violentaram você na escola, Zazie?

- Queria ver eles tentarem.

- Além disso - disse Gabriel -, daqui a vinte anos não vai mais ter professoras: vão ser trocadas pelo cinema, pela tevê, pelos eletrônicos, essas coisas. Também estava escrito no jornal, outro dia. Não é, Marceline?

- É - respondeu Marceline, suavemente.

Zazie vislumbrou aquele futuro por um instante.

- Então - declarou - vou ser astronauta.

- Isso aí - disse Gabriel, aprovando. - Isso aí, é preciso viver de acordo om os tempos.

- É - continuou Zazie -, vou ser astronauta para encher o saco dos marcianos".

(In. Zazie no metrô. Raymond Queneau. São Paulo: Cosacnaify, 2009, pp. 20-21).



quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sim, eu a amava - Samuel Beckett

 


"Sim, eu a amava, é o nome que eu dava, que ainda dou, ai de mim, ao que eu fazia, naquela época. Eu não tinha dados sobre isso, nunca tendo amado antes, mas tinha ouvido falar da coisa, naturalmente, em casa, na escola, no bordel, na igreja, e tinha lido romances, em prosa e em verso, sob a direção do meu tutor, em inglês, francês, italiano, alemão, nos quais ele era tratado em detalhes. Portanto eu era capaz, apesar de tudo, de dar um nome ao que eu fazia, quando me via de repente escrevendo a palavra Lulu (...). Eu pensava em Lulu e, se isso não é tudo, já é o suficiente, na minha opinião. Aliás, já estou farto desse nome, Lulu, e vou lhe dar outro, de uma sílaba dessa vez, Anne por exemplo, não é uma sílaba mas não importa. Então eu pensava em Anne, eu que tinha aprendido a não pensar em nada, a não ser nas minhas dores, muito rapidamente, depois nas medidas para não morrer de fome, ou de frio, ou de vergonha, mas jamais, sob nenhum pretexto, nos seres vivos enquanto tais (eu me pergunto o que isso quer dizer), não importando o que eu possa ter dito ou possa me acontecer dizer a esse respeito. Pois eu sempre falei, sempre falarei de coisas que nunca existiram, ou que existiram, se quiserem, e que provavelmente sempre existirão, mas não com a existência que atribuo a elas (...). Eu a admirava, apesar da escuridão, apesar do meu incômodo, o modo como a água parada, ou que corre lentamente, se ergue, como que sedenta, em direção à que cai (...). É preciso considerar que eu estava fora de mim naquela época. Eu não me sentia bem ao lado dela, mas pelo menos me sentia livre para pensar em outra coisa que não ela, e isso já era enorme, nas velhas coisas experimentadas, uma depois da outra, e assim pouco a pouco em nada, como que descendo gradualmente em águas profundas. E eu sabia que, abandonando-a, perderia essa liberdade (...).Teriam sido necessários outros amores, talvez. Mas o amor não se encomenda".

(In. Primeiro amor. Samuel Beckett. São Paulo: Cosacnaify, 2004).

terça-feira, 13 de julho de 2021

Who are you? - Lina Meruane

 


"Faz-se um silêncio seguido de um lento who are you, e eu tento explicar a ela quem acredito ser. Há então um momento de agitação na linha, a convulsão de uma língua que tenta traduzir o que lhe digo e que, pressionada a dizer algo, começa a gritar a única palavra que tem a mão. Aaaaa! Family!, diz, num grande alvoroço, family! family!, e eu, sem saber mais o que dizer, respondo yes, yes, e começo a rir porque há estardalhaço e há exagero e há confusão nessa palavra, e há também um enorme vazio de anos de mar e de possível pobreza, mas, a cada family que ela grita, mais eu rio, dizendo yes, family, yes, como se tivesse esquecido todas as outras palavras. E nesse tiroteio telefônico não sei se consigo lhe dizer ou se ela terá compreendido que estou prestes a viajar, ou retornar, e que meu desejo é ir vê-las" - (p. 51) 

(...)

"Enquanto lava os pratos e panelas e todos os copos sujos do dia, Zima diz ter compreendido com o tempo que sua família não havia traído: permanecer é continuar marcando a presença de uma cidadania palestina que os israelenses tentam negar (...). E que a condição de refugiados para os palestinos, e só para eles, para nós, é hereditária. É importante defender esta herança, não porque todos estejam sofrendo, mas porque foram deslocados por circunstâncias histórica. O que importa é não perder a possibilidade de retorno. Reivindicá-lo" - (pp. 86-87).

(In. Tornar-se Palestina. Lina Meruane. Minas Gerais: Relicário, 2019).

Mais sobre o livro:

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/p/retornar-e-preciso

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/tornar-se-palestina/

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Somos adultos - Natalia Ginzburg

 


"E agora somos verdadeiramente adultos: é o que pensamos numa manhã, olhando no espelho nosso rosto sulcado, escavado; olhando-o sem nenhum orgulho, sem nenhuma curiosidade, com um pouco de misericórdia. Temos de novo um espelho entre quatro paredes; quem sabe daqui a pouco tenhamos de novo um tapete, talvez uma luminária. Mas perdemos as pessoas mais queridas: então, que nos importam os tapetes e as pantufas vermelhas? Aprendemos a separar e a guardar os objetos dos mortos; a voltar sozinhos aos lugares onde estivemos com eles; a interrogar, sentindo o silêncio ao redor. Já não temos medo da morte: olhamos a morte toda hora, a cada minuto, recordando seu grande silêncio sobre o rosto mais querido.
E agora somos verdadeiramente adultos - pensamos - e nos sentimos surpresos de que ser adulto seja isto, e não tudo aquilo que acreditávamos na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas da terra. Somos adultos porque temos nos ombros a presença muda das pessoas mortas, a quem pedimos um juízo sobre nosso comportamento atual, a quem pedimos perdão pelas ofensas passadas; gostaríamos de arrancar do nosso passado tantas palavras cruéis que dissemos, tantos gestos cruéis que fizemos, quando ainda temíamos a morte, mas não sabíamos, não tínhamos entendido como era irreparável e sem remédio, a morte: somos adultos por todas as respostas mudas, pelo perdão calado dos mortos que trazemos dentro de nós. Somos adultos por aquele breve momento que um dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as coisas da terra e renunciamos a possuí-las e as restituímos à vontade de Deus; e de repente as coisas da Terra nos pareceram em seu lugar preciso sob o céu, e assim todos os seres humanos, e nós mesmos suspensos a olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e memórias, tudo nos pareceu em seu exato lugar sob o céu. Naquele breve momento encontramos um equilíbrio para nossa vida oscilante; e nos parece que sempre poderemos reencontrar aquele momento secreto, buscar ali as palavras para o nosso ofício, nossas palavras para o próximo; olhar o próximo com olhos sempre justos e livres, não com o olhar temerosos ou arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será seu senhor ou seu servo. Durante toda a vida só soubemos ser senhores ou servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro senhorio nem verdadeira servidão sobre a terra. Assim, agora, tornando àquele nosso momento secreto, tentaremos enxergar nos outros se eles já viveram um momento idêntico, ou se ainda estão longe disso: é o que importa saber. Na vida de um ser humano, este é o momento mais alto: e é necessário que estejamos com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos".



(In. Natalia Ginzburg. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, pp. 107-108).

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A lua e as fogueiras - Cesare Pavese

"Desta vez ficou quieto, esticando os lábios para a frente, e somente quando lhe contei aquela história das fogueiras nos restolhos levantou a cabeça. "Claro que fazem bem", disse. "Despertam a terra".
"Mas Nuto", eu disse, "nem Cinto acredita nisso!".
No entanto, disse ele, não sabia o que era, se o calor ou a chama ou que os humores despertavam, o fato era que todas as culturas em cuja orla se acendia a fogueira davam uma colheita mais suculenta, mais viva.
"Essa é nova", disse eu. "Então você também acredita na lua?"
"Na lua", disse Nuto, "não há como não acreditar. Experimente cortar um pinheiro na lua cheia, os vermes o comem inteiro. Um tonel você tem de lavar quando a lua é jovem. Até os enxertos, se não se fizerem nos primeiros dias da lua, não pegam".
Então eu lhe disse que no mundo ouvira muitas histórias, mas as mais bobas eram essas. Era inútil ele criticar tanto o governo e as conversas dos padres, se depois acreditava nessas superstições, como os velhos do tempo de sua avó. E foi então que Nuto calmamente me disse que superstição é somente aquilo que faz mal e se alguém utilizasse a lua e as fogueiras para roubar os camponeses e mantê-los na ignorância, então seria ele o ignorante e deveria ser fuzilado na praça. Mas antes de falar eu devia voltar a ser camponês. Um velho como Valino podia não saber mais nada, mas a terra ele conhecia bem.
(...)
Sou um bobo, eu dizia, faz vinte anos que estou longe e esses lugares esperam por mim. Lembrei que desilusão fora caminhar pela primeira vez pelas ruas de Gênova - eu caminhava no meio e procurava um pouco de capim. O porto, este sim, estava lá, e também os rostos das moças, as lojas e os bancos, mas as canas, o cheiro da lenha, um pedaço da vinha, onde estavam? Eu também conhecia a história da lua e das fogueiras. Só que, dera-me conta, eu não sabia mais que a sabia".
(In. A lua e as fogueiras. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2002, pp.60-61).

Cesare Pavese em 1950
 

terça-feira, 23 de março de 2021

As inseparáveis - Simone de Beauvoir

 

"Meus pais falavam comigo e eu falava com eles, mas não conversávamos; com Andrée eu tinha verdadeiras conversas, como papai tinha com mamãe à noite. Ela havia lido muitos livros durante a longa convalescença e me causou espanto, porque parecia acreditar que as histórias neles contadas haviam realmente acontecido: detestava Horácio e Polieuto, admirava Dom Quixote e Cyrano de Bergerac, como se tivessem existido em carne e osso. Em relação aos séculos passados também tinha opiniões categóricas. Gostava dos gregos, os romanos a aborreciam; insensível às desventuras de Luís XVII e família, comovia-se com a morte de Napoleão.
Muitas dessas opiniões eram subversivas, mas em vista de sua pouca idade, a escola as perdoava: "Essa menina tem personalidade", dizia-se no colégio (...). Tocava tão bem piano que logo foi colocada na categoria das alunas médias; também começava a ter aulas de violino. Não gostava de costurar, mas tinha jeito; fazia com competência balas de caramelo, biscoitos amanteigados, trufas de chocolate; apesar de franzina, sabia fazer pituetas, espacate e todo tipo de cambalhota. Mas o que aumentava seu prestígio a meus olhos eram certas características singulares cujo sentido nunca conheci: quando via um pêssego ou uma orquídea, ou se simplesmente alguém pronunciasse esses nomes diante dela, Andrée estremecia, seus braços se arrepiavam; então ela manifestava da maneira mais perturbadora o dom que recebera do céu e que me maravilhava: a personalidade. Em segredo, eu me dizia que Andrée era sem dúvida uma dessas crianças-prodígio cuja vida é contada depois em livros".

(In. As inseparáveis. Rio de Janeiro: Record, 2021, pp. 25-26).

Simone de Beauvoir & sua inseparável Zaza

Mais sobre o livro:
https://revistacult.uol.com.br/home/as-inseparaveis-simone-de-beauvoir/





quinta-feira, 11 de março de 2021

A estrangeira - Claudia Durastanti

 

"A descoberta da burguesia teve um impacto elétrico, neurótico, em mim, e daquele momento em diante tudo me pareceu uma traição. Do meu corpo em primeiro lugar: eu tinha melhorado, me nutri bem, então por que meu chefe me disse que eu comia como uma pobre?
Num longo artigo publicado na revista Nautilus, intitulado "Why Poverty Is Like a Disease", Christian H. Cooper, um homem de alta finança que hoje ganha mais de setecentos mil dólares por ano, mas que nasceu numa família paupérrima em Rockwood, no Tennessee, diz que emancipou somente graças aos professores e às bolsas de estudo, e conta por que o mito da meritocracia americana é, na verdade, uma fraude, desmistificada pela ciência.
A pobreza não é só uma condição social, é uma doença que afeta o plano biológico. Transmite-se de uma geração a outra pelos genes e outras formas impensadas, e condiciona o corpo num modo que nenhuma futura riqueza pode remediar. Dar a todos as mesmas condições no ponto de partida não é sempre suficiente, porque há uma diferença, oculta dentro de quem participa da corrida, que muitas vezes é ignorada. Na verdade, é a metáfora da corrida que cria um problema, é um clichê difícil de abandonar: ter crescido na pobreza não significa necessariamente ter vontade de chegar a algum lugar, ou chegar aonde todos pensam que você queira ir. Pode significar ficar parada no mesmo lugar, se é um lugar acolhedor, desejado e que garante todos os recursos necessários. Pode significar ter fome, mas não fome de sucesso, no mundo em que isso é entendido dessa forma pela maior parte das pessoas.  A própria ideia de "fome" e "sucesso" na mesma frase tem algo de farsa, de século passado. Lá, à espera, perto da partida, uma garota pode decidir ir embora para os bosques. Sua vida pode até ser um lindo desperdício; igualdade significa colocá-la em condições para que se torne uma astronauta, se quiser, mas também dar-lhe a possibilidade de exercitar o ócio de quem ainda não sabe bem o que quer fazer, e escrever artigos enquanto isso, sem uma casa deixada em herança pelos avós. Igualdade significa que os filhos dos operários não se tornem apenas médicos e advogados, mas também escritores subempregados e pintores à espera de descobrir se têm talento.
Há com frequência, no pobre que se emancipa de sua condição social, uma mentalidade de autosabotagem que se manifesta em forma de saudade.
Minha mãe sente orgulho, mas também rancor pela melhoria da minha condição social: quando eu trabalhava num escritório, ela suspirava sempre: "Bendita você que pode", me deixando aflita com sua resignação e lembrando os belos tempos em que era funcionária da Agip Petróleo; quando pedi demissão, ignorou meu mal-estar para me dizer que eu era uma decepção e um insulto à emancipação da mulher: "E o que você vai ser, uma manteúda?"
Eu reagia começando a desenvolver uma relação catastrófica com o dinheiro: assim que chegava, eu fazia de tudo para não vê-lo, não gerenciá-lo ou acumulá-lo. Não queria ter saudade de não ser mais como ela, acabada e também lamentosa. Mas eu tinha.
A pobreza é uma mancha nas células, um borrão no DNA. Nada se realinha, após uma adolescência passada na necessidade. Não se aprende a comer de um jeito diferente, mas como morta de fome. Toda vez que preciso deixar algo em meu prato porque o fizeram também os outros ou porque não tenho fome, se instaura em mim um desgosto: provoco em mim mesma uma violência e preciso contar até dez, senão não consigo.
(...)
Mas o que é a pobreza senão a impossibilidade de cometer erros com o dinheiro e dar à própria desordem o nome de excentricidade?
(...) Isso porque do pobre se espera não só que faça a revolução, como se tivesse tempo livre, em vez de dedicar toda a sua energia nervosa para entender como obter algo a mais, com todos os meios possíveis, mas que tenha também uma boa educação e se comporte bem" - (pp.220-223).

(In. A estrangeira. Cláudia Durastanti. São Paulo: Todavia, 2021)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A cachorra - Pilar Quintana (trecho)

 

"Rogelio era um negro grande e musculoso, com uma cara zangada permanente. Quando Damaris chegou em casa com a cachorra, ele estava do lado de fora, limpando o motor da roçadeira. Nem sequer se deu o trabalho de cumprimentá-la e disparou:

- Outro cachorro? Nem pense que eu vou cuidar dele.

- `Por acaso alguém pediu alguma coisa a você? - retrucou Damaris, seguindo direto para o casebre.

A seringa não funcionou. O braço de Damaris era forte, porém desajeitado, e os seus dedos tão gordos como o resto de sua pessoa. Cada vez que empurrava, o êmbolo ia até o final e o jorro de leite saía com tudo do focinho da cachorra, derramando-se por todo lado. Como a cachorra não sabia lamber, Damaris não podia lhe dar o leite em uma vasilha, e as mamadeiras vendidas no povoado eram para bebês humanos, grandes demais. Seu Jaime lhe recomendou que usasse um conta-gotas, e ela tentou fazer isso, mas bebendo dessa forma a cachorra não encheria a barriga nunca. Então ela teve a ideia de embeber pão no leite e deixar que a cachorra o sugasse. Essa foi a solução: ela o devorou inteiro.

O casebre onde moravam não ficava na praia, e sim em um rochedo de mata onde as pessoas brancas da cidade tinham casas de veraneio grandes e bonitas, com jardins, caminhos de pedras e piscinas. Para chegar ao povoado, descia-se por uma escadaria comprida e íngreme que, como chovia muito, tinham que esfregar com frequência para retirar a lama e par que não ficasse escorregadia. Depois era preciso atravessar a angra, um braço de mar largo e caudaloso como um rio, que se enchia e esvaziava com a maré.

Naqueles dias a maré estava alta pela manhã, de modo que, para comprar o pão para a cachorrinha, Damaris tinha que se levantar na primeira hora, sair do casebre já carregando o remo, descer a escada com ele no ombro, empurrar a canoa desde o cais, colocá-la na água, remar até o outro lado, amarrar a canoa a um coqueiro, levar o remo no ombro até a casa de algum pescador que morasse junto à angra, pedir ao pescador, sua mulher ou às crianças que cuidassem dela, ouvir as lamúrias e as histórias do vizinho e atravessar meio povoado a pé, até a venda de seu Jaime...E a mesma coisa na volta. Todos os dias, mesmo sob a chuva.

Durante o dia, Damaris levava a cachorra enfiada no sutiã, entre os seios macios e fartos, para mantê-la quentinha. à noite, deixava-a na caixa de papelão que seu Jaime tinha dado a ela, com uma garrafa de água quente e a camiseta usada por ela naquele dia, para que não sentisse falta de seu cheiro.

O casebre em que moravam era de madeira e estava em mau estado. Quando caía uma tempestade, tremia com os trovões e balançava com o vento, a água entrava pelas goteiras do teto e pelas frestas nas tábuas das paredes, tudo ficava frio e úmido, e a cadela punha-se a choramingar. Fazia muito tempo que Damaris e Rogelio dormiam em quartos separados, e nestas noites ela se levantava depressa, antes que ele pudesse dizer ou fazer algo. Tirava a cachorra da caixa e ficava com ela na escuridão, acarinhando-a, morta de susto por causa das explosões dos raios e da fúria do vendaval, sentindo-se diminuta, menor e menos importante no mundo do que um grão de areia do mar, até que a cachorra se aquietava.

  Também a acarinhava de dia, à tarde, depois que acabava as tarefas da manhã e o almoço, e sentava-se em uma cadeira de plástico para assistir às novelas com ela no colo. Quando estava no casebre, Rogelio a via passando os dedos pelo dorso da cachorra, mas não fazia nem dizia nada".

(In. A cachorra. Pilar Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, pp.16-18).


Mais sobre o livro:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Autobiografia - Woody Allen

 


"Acabou que ter dois pais amorosos me deixou surpreendentemente neurótico. O porquê eu não sei.

Eu fui o sol das cinco irmãs de minha irmã, o único varão, o queridinho dessas doces fofoqueiras que babavam sobre mim. Nunca fiquei sem uma refeição, nem careci de roupas ou abrigo, nunca fui acometido por nenhuma doença séria, como a pólio, que assolava a cidade. Eu não tinha síndrome de Down como um moleque da minha sala, nem era corcunda como o pequeno Jenny ou sofria de alopecia como o Schartz. Eu era saudável, popular, bem atlético, sempre o primeiro a ser escolhido nas esquipes esportivos. Jogava bola, corria e, ainda assim, acabei me tornando nervoso, medroso, um caco emocional, mantendo a compostura por um fio, um misantropo, claustrofóbico, isolado, amargurado, um pessimista impecável. Algumas pessoas veem o copo meio vazio; outras veem meio cheio. Eu sempre vi o caixão meio cheio. Das milhares de reações naturais do corpo, eu consegui evitar quase todas, exceto a número 682: o mecanismo de negação. Minha mãe falava que não conseguia entender. Dizia que eu era um garotinho doce e animado até uns cinco anos, quando mudei para um moleque feio, azedo, chato e de ovo virado.

Mas não há trauma na minha vida, nada de terrível que tenha ocorrido e me transformado de um garotinho sardento sorridente vestindo calções e sempre com uma vara de pesca em uma das mãos num lorpa cronicamente insatisfeito. Especulo que, por volta dos cinco anos, eu tenha tomado consciência da moralidade e percebido que, afe, u não pedi isso. Nunca concordei em ser finito. Se você não se importar, quero meu dinheiro de volta. Conforme fiquei mais velho, não apenas a extinção, mas também a falta de sentido da existência se tornaram mais claras para mim. Eu me deparei com a mesma pergunta que incomodava o antigo príncipe da Dinamarca: por que sofrer com os tiros e flechadas quando posso apenas molhar meu nariz, enfiá-lo numa tomada e nunca mais ter que lidar com  a ansiedade, o sofrimento ou o frango cozido da minha mãe? Hamlet escolheu não fazer isso porque temia o que poderia acontecer no além. E então, dada minha profunda falta de apreço pela condição humana e seu doloroso absurdo, por que seguir com isso? No fim, eu não pude achar uma razão lógica e finalmente cheguei à conclusão de que, como humanos, simplesmente somos programados para resistir à morte. O sangue vence o cérebro. Não há razão lógica par se prender à vida, mas quem se importa com o que a cabeça diz quando o coração te pergunta: "Viu a Lola naquela minissaia?". Por mais que eu resmungue, reclame e insista firmemente que a vida é um pesadelo sem sentido de sofrimento e lágrimas, se um homem entrasse na sala com uma faca para nos matar, nós insistentemente reagiríamos. Nós o agarraríamos e lutaríamos com cada grama de nossa energia para desarmá-lo e sobreviver. (Pessoalmente, eu correria). Isso, eu insisto, é uma propriedade estrita de nossas moléculas. Agora, você já deve ter percebido que não apenas não sou um intelectual, como também não sou uma companhia divertida nas festas" (pp.15-16).


(In. Autobiografia. Rio de Janeiro: Globo Livros: 2020).

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cesare Pavese por Natalia Ginzburg


 "Pavese cometia erros mais graves que os nossos. Porque os nossos erros eram gerados por impulso, imprudência, estupidez e candura; e os erros de Pavese, ao contrário, nasciam da prudência, da astúcia, do raciocínio e da inteligência. Nada é tão perigoso quanto essa espécie de erro. Podem ser mortais, como foram para ele, porque é difícil voltar pelos caminhos em que se errou por astúcia. Os erros que se cometem por astúcia envolvem-nos estreitamente: a astúcia finca em nós raízes mais profundas do que a irreflexão ou a imprudência: como se desprender desses laços tão tenazes, tão apertados, tão profundos? A prudência, o raciocínio, a astúcia, têm o rosto da razão: o rosto, a voz amarga da razão, que argumenta com seus argumentos infalíveis, aos quais não há nada a responder, só a concordar.

Pavese matou-se num verão em que nenhum de nós estava em Turim. Preparara e maquinara as circunstâncias que diziam respeito à sua morte, como alguém que prepara e predispõe o curso de um passeio ou de uma noitada. Não gostava de que houvesse nos passeios e nas noitadas nada de imprevisto ou de casual. Quando ele, eu, os Balbo e o editor íamos passear na colina irritava-se muito se algo desviava o curso predisposto por ele, se alguém chegava tarde ao encontro, se mudávamos o programa de repente, se se juntava a nós uma pessoa imprevista, se uma circunstância fortuita nos levava a comer, em lugar do restaurante que ele escolhera previamente, na casa de algum conhecido encontrado inesperadamente pelo caminho. O imprevisto incomodava-o. Não gostava de ser pego de surpresa.

Falara em se matar durante anos. Nunca ninguém acreditou nele. Quando vinha à nossa casa, minha e de Leone, comendo cerejas, e os alemães tomavam a França, já então falava nisso. Não pela França, não pelos alemães, não pela guerra assaltando a Itália. Tinha medo da guerra, mas não o suficiente para se matar por causa dela. Porém, continuou tendo medo da guerra, mesmo depois que a guerra tinha acabado havia muito tempo: como de resto todos nós. Pois logo que a guerra terminou, aconteceu de voltarmos imediatamente a ter medo de uma nova guerra, e a pensar sempre nisso. E ele temia uma nova guerra mais do que nós todos. E nele o medo era maior do que em nós: nele, o medo era o turbilhão do imprevisto e do incognoscível, que parecia horrendo à lucidez de seu pensamento; águas escuras, turbulentas  venenosas nas margens despojadas de sua vida.

No fundo, não tinha nenhum motivo real para se matar. Mas juntou mais motivos e calculou a soma deles, com fulminante exatidão, e juntou-os novamente e novamente viu, assentindo com seu sorriso maligno, que o resultado era idêntico e portanto exato. Olhou até além de sua vida, nos nossos dias futuros, olhou como iriam se comportar as pessoas em relação aos seus livros e à sua memória. Olhou para além da morte, como os que amam a vida e não sabem apartar-se dela, e mesmo pensando na morte não vão imaginando a morte, mas a vida. Ele, no entanto, não amava a vida, e aquele seu olhar para além da própria morte não era amor pela vida, mas um cálculo cuidadoso de circunstâncias para que nada, nem mesmo depois de morto, pudesse pegá-lo de surpresa" - (pp.216-218).

(In. Natália Ginzburg. Léxico familiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2018).

A cinza das horas - Manuel Bandeira

 


Epígrafe

Sou bem nascido. Menino,

Fui, como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

*

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

*

Turbiu, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó -

Ah, que dor!

Magoado e só,

- Só! - meu coração ardeu:

*

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

*

- Esta pouca cinza fria... (1917, p.25).


Desencanto

Eu faço versos como quem chora

De desalento...de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.

*

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente,

Cai, gota a gota, do coração.

*

E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Deixando um acre sabor na boca.

*

- Eu faço versos como quem morre. (1912, p.27).


Desesperança

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo

Como dói um pesar em cada pensamento!

Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

*

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento

Que dá medo...O ar, parado, incomoda, angustia...

Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

*

Assim deverá ser a natureza um dia,

Quando a vida acabar e, astro acabado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

*

O demônio sutil das nevroses enterra

A sua agulha de aço em meu crânio doído.

Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

*

Minha respiração se faz como um gemido.

Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,

Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

*

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,

Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:

E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

*

Vejo nele a feição fria de um desafeto.

Temo a monotonia e apreendo a mudança.

Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

*

- Ah, como dói viver quando falta a esperança! - (1912, p. 126).


(In. A cinza das horas. São Paulo: Global, 2013).

Obs:  "Cinza das horas" é o primeiro livro publicado de Manuel Bandeira. Abaixo a capa da primeira edição de 1917:



domingo, 31 de janeiro de 2021

Paula - Isabel Allende


"Para que tantas palavras se você não pode me ouvir? Minha vida se faz ao ser contada e minha memória se fixa com a escrita; o que não ponho em palavras, no tempo se apaga (...) Jogo-me nestas páginas numa tentativa irracional de vencer meu terror, parece que, dando forma a esta devastação, poderei ajudar você a me ajudar, o meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação" - (pp. 16-17).

*

"Posso viver por você? Tê-la dentro de meu corpo para que viva os cinquenta ou sessenta anos que foram roubados? Não quero sua lembrança, quero viver sua vida, ser você, que ame, sinta e possa palpitar dentro de mim, que cada gesto meu seja um gesto seu, que minha voz seja sua voz. Vou me anular, desaparecer para que você tome posse de mim, que sua incansável e alegre bondade substitua completamente meus medos antigos, minhas pobres ambições, minha vaidade exausta" - (p.419).

(In. Paula. Isabel Allende. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010).

"Se é correto que a morte não existe e que somente morremos quando nos esquecem, minha filha viverá por muito tempo" - (Isabel Allende no Prólogo do livro Cartas à Paula. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997, p.22).


Sobre o livro:

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A trégua - Mário Benedetti

 

"Mas tudo sempre foi por demais obrigatório para que pudesse me sentir feliz" - (p.10).

"Porque já aprendi que meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões. Gosto, no entanto, de me convencer de que não devo me permitir explosões, de que devo freá-las radicalmente, sob pena de perder meu equilíbrio. Então saio como saí hoje, numa encarniçada busca do ar livre, do horizonte, de sei lá quantas coisas mais. Bom, às vezes não chego ao horizonte e me conformo com me acomodar à janela de um café e registrar a passagem de umas pernas bonitas" - (p.11).

"Francamente, não sei se creio em Deus. às vezes, imagino que, no caso de existir Deus, esta dúvida não o desgostaria. Na realidade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes para nos garantir nem sua existência nem sua não-existência. Graças a um impulso do coração, posso acreditar em Deus e acertar, ou não acreditar em Deus e também acertar. E então? Talvez Deus tenha uma face de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando dá preto, e vice-versa" - (p.34).

"A felicidade, a verdadeira felicidade, é um estado muito menos angelical e até bem menos agradável do que tudo o que a gente sempre tende a sonhar. Ela diz que, em geral, as pessoas acabam se sentindo desgraçadas só por terem acreditado que a felicidade era uma permanente sensação de indefinível bem-estar, de êxtase de gozoso, de festival perpétuo. Não, diz ela, a felicidade é bastante menos (ou talvez bastante mais, só que, de todo modo, é outra coisa), e o fato é que, na verdade, muitos desses supostos desgraçados são felizes, mas não se dão conta, não o admitem, porque acreditam estar muito longe do bem-estar máximo. É algo semelhante ao que acontece com os desiludidos da Gruta Azul. A que eles imaginaram é uma gruta de fadas, não sabiam muito bem como era, só que era uma gruta de fadas e, ao chegarem la´, constataram que todo o milagre consiste em meter as mãos na água e ver que elas ficaram levemente azuis e luminosas" - (pp. 93-94).

"Uma vez, faz muitos anos, ouvi o mais velho deles dizer: "O grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos". Nunca me esqueci dessa frasezinha, simplesmente porque não a posso perdoar. Não só em meu nome, como também em nome de todo o gênero humano. Agora sinto a forte tentação de inverter a frase e pensar: "O grande erro de alguns empregados é tratar seus patrões como se estes fossem pessoas". Mas resisto a essa tentação. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infame das piedades, porque a verdade é que formam para si uma casca de orgulho, uma embalagem repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem a mais horrível variante da solidão: a solidão daquele que nem sequer tem a si mesmo" - (p.137).

"É preciso gritar nos ouvidos das pessoas, já que sua aparente surdez é uma espécie de autodefesa, de covarde e malsã autodefesa. É preciso conseguir acordar nos outros a vergonha de si mesmos, substituir neles a autodefesa pela auto-repulsa" - (p.159).

 "Ela me dava a mão e eu não precisava de mais nada. Bastava isso para que eu me sentisse bem acolhido. Mais do que beijá-la, mais do que nos deitarmos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela me dava a mão, e isso era amor" - (p.171).


(In. A Trégua. Rio de Janeiro: Objetiva: 2007 - Selo Alfaguara).