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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O mapeador de ausências - Mia Couto

 


"Aprendi a ter vergonha desse passado que, sendo dele, também me pertence. É injusto herdar passados, é como se nos amarrassem o tempo aos nossos pés" - (p. 19).
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"Mas neste mundo de hoje, meu querido neto, ser cego para as raças pode ser uma maneira de não ver o racismo. E eu quero que estejas atento a este mundo cheio de coisas feias, mas também repleto de gente bonita.
Repara, por exemplo, neste nosso empregado, o Juliano, que está muito velhinho. Pedi ao teu pai que não o mandasse embora. E há boas razões para esse meu pedido. Primeiro porque ele próprio não quer ir. Segundo porque este velho preto - que todos dizem ser já de nenhum préstimo - todos os dias me traz uma história. Na verdade, acho que é o único serviço que ele faz aqui em casa. Não imaginas como preciso de escutar essas histórias. Noutro dia falou-me de um amigo seu que morrera fora de Moçambique.
Conto-te agora esse episódio, pensa nele como a prenda que me pediste ontem quando adormecias. A história fala de um velho mineiro que faleceu nas minas da África do Sul. Os seus companheiros optaram pelo mais fácil: enterrá-lo em território estrangeiro, para evitar a chatice de o transladar. Tiraram-lhe as medias, quotizaram-se entre eles e mandaram fabricar um caixão, o mais barato que houvesse. Quando quiseram colocá-lo dentro da urna, o corpo não cabia. Voltaram à funerária para encomendar um caixão de maiores dimensões. Mas voltou a acontecer o mesmo: o corpo sobrava da madeira. Já sem dinheiro, decidiram prescindir da urna. Embrulharam o cadáver num pano branco para o enterrar à pressa. Aconteceu então que o corpo não cabia na cova. Abriram uma cova maior e logo entenderam que de pouco valia aumentar o tamanho da sepultura. Alguém disse: este morto quer voltar para a sua terra. Colocaram o falecido numa carroça, atravessaram a fronteira e conduziram-no para o lugar onde ele nasceu. E ali o morto coube, enfim, na sua própria morte.
Entendes esta história, meu neto? Não é sobre um morto anônimo e distante. É sobre mim, a tua avó Laura Santiago, condenada a morrer numa terra que, depois destes anos todos, continua a ser estranha. Dizem que Moçambique também é Portugal. Li em algum lado que a eficiência da mentira diz mais da ingenuidade do enganado que da arte do mentiroso. Pois arranjem uma história mais bem engendrada. Desejo muito, meu neto, que te mantenhas ingênuo a vida inteira. Mas deves saber escolher as tuas ingenuidades" - (pp.133-134).


  (In. Mia Couto. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das Letras, 2021 - edição especial TAG).


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