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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O fascismo eterno - Umberto Eco

 

"1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo (...).

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade (...)

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão (...)

4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se ornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição (...)

6. O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos (...).

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do "nacionalismo". Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão da conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia. Mas a conspiração tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora (...)

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo (...)

9. Para o Ur-Fascismo, não há luta pela vida, mas antes "vida para a luta". Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente (p.44-52).

(In. Umberto Eco. O Fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2020).

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Seu paciente favorito - Violaine de Montclos

 

"Dois Homenzinhos de Papel Machê - Sylviane Giampino & Gretel".

"Gretel agendou uma consulta para uma menina de nove anos. Sylviane Giampino imaginou, portanto, ver chegar uma mãe com sua filha, mas é uma mulher de 63 anos que se apresenta, sozinha, à porta de seu consultório. O encontro delas começa com um mal-entendido.
Gretel explica com um forte sotaque que deseja falar de Violette, sua neta, que passa por um sofrimento incompreensível. Faz pouco tempo, a criança não consegue mais andar. Ela começou, há alguns meses, a sentir dores difusas, depois começou a mancar, a pular em uma perna só, e, desde então, Violette não consegue mais se manter de pé. É impossível, de tanta dor que sente, colocar um pé no chão. Evidentemente, foram feitos todos os exames de prache, pensou-se em uma doença degenerativa,  foi descartado o fantasma de uma questão neurológica. Violette, fisiologicamente, não tem nada. Acabou de dar entrada, para uma breve estadia, no serviço psiquiátrico de um grande hospital parisiense.
Gretel mantém uma relação difícil com a própria filha, mãe da criança. Sua filha e o esposo a mantêm violentamente afastada desse acontecimento. O casal insinua que ela é indesejável ao lado da neta, que, no fundo, sua presença é nociva, como se quisessem proteger a criança de algum misterioso perigo do qual ela seria a portadora. A velha senhora conseguiu, ainda assim, visitar Violette, e conversou com sua psiquiatra, que fala da situação da criança, que evoca os casos espetaculares de histeria outrora examinados por Charcot e que elucida que o caso, ao que tudo indica, é raríssimo. Gretel, muito angustiada, vem encontrar Sylviane Giampino na esperança de entender o que acontece com sua neta: ela é psicanalista, lida frequentemente com crianças, poderia ajudá-la a elucidar esta situação?
Eis a pergunta feita na ocasião desse encontro frente a frente, e que, portanto, não caracteriza uma demanda de análise. Sylviane Giampino tenta, no entanto, procurar saber mais sobre a tensão que existe com a mãe de Violette, e a velha senhora, então, descreve sua filha mais velha como uma mulher extremamente brilhante, uma quimica renomada, um pouco fria, muito organizada, a quem ama, mas ao mesmo tempo, teme. Ela usa, ao descrevê-la, esta expressão desconcertante: "Ela é de raça pura". Ela fala também, em um mesmo impulso, de sua mãe...Gretel nasceu durante a guerra, contaram-lhe que sua mãe havia fugido com ela, ainda bebê, e que ficaram escondidas, as duas, por alguns meses, no final do conflito. É isso. Desde o primeiro encontro, quatro gerações de mulheres são, então, convocadas para o consultório de Sylviane Giampino, entre as quais, a menina que não consegue mais andar. Diante de mim, muito tempo depois dessa visita inaugural, a psicanalista mergulha no pequeno dossiê que manteve durante o tratamento de Gretel e que contém nomes, datas, alguns detalhes significativos. Mas a consulta a esse dossiê é supérflua, já que Sylviane Giampino não esqueceu nada da surpreendente história que virá adiante.
(...) Gretel está frequentemente melancólica, oprimida pelo sofrimento de Violette e pela frieza demonstrada pela própria filha. Fala muito de seu pai, grande médico, figura muito admirada, que Gretel, assim como seus irmãos, amou muito. Prisioneiro em um campo russo, retornou ao lar apenas cinco anos após o fim da guerra; a velha senhora se recorda muito bem dos reencontros felizes. Ela fala de seu esposo, da maneira como educaram seus três filhos, uma menina e dois meninos, da profissão que exerceu, e, agora, de sua aposentadoria. Ela evoca também a mania que tem, desde sempre, de guardar papeis velhos. Todos os papéis. Calendários, boletins escolares, receitas médicas, faturas, desenhos, cartões-postais, cartas, documentos administrativos de todo tipo. Ela diz que faz camadas, pilhas que invadem o escritório, a sala, o sótão. Seu marido fica irritado com isso, não sabe mais onde colocá-los, seria necessário desfazer-se deles, que se pensava ser inútil, algum dia se revelasse indispensável? Ela se justifica, citando misteriosamente uma frase que atribui a Goethe: "O papel é paciente".
Semanas, meses, perto de dois anos se passaram e Gretel, desde então, adquiriu o hábito de ir falar com sua psicanalista toda semana. Ela se apresenta vestida de maneira muito simples, mas sua aparência e graça natural impressionam Sylviane Giampino (...). Gretel fala também de sua nova paixão. Desde que inicia as visitas a Sylviane Giampino, aprende a confeccionar, com um enorme prazer, esculturas em papel machê.
(...)
Então, uma cena surpreendente lhe retorna brutalmente. Teria sonhado, imaginado, assistido? Gretel vê seu pai vasculhar a casa da família, revirar cada um dos cômodos como um louco, esvaziar as gavetas, correr de um andar a outro; efetivamente, tinha perdido um papel de importância crucial...Ela quer saber mais sobre isso, vai e volta da Alemanha várias vezes, onde sua mãe muito idosa ainda reside, tenta entender de onde vem essa lembrança, mas não obtém resposta e mergulha então em profunda desolação. "Não tenho mais forças", ela diz à sua psicanalista. Apenas na quarta viagem é que a mãe reconhece, enfim, que houve, algum dia, um papel perdido.
Ao final dos anos 1940, em plena desnazificação, o documento atestava que o pai de Gretel não era um nazista, e ele o perdeu. Ele nunca mais achou esse papel de tão extrema importância? Não. E ela, sua mãe, nunca pôde ver o papel com os próprios olhos? Também não.
A partir de então, contra a opinião de sua mãe e de seus irmãos e irmãs, mas encorajada por seu esposo, Gretel dá início a pesquisas, percorre associações e as bibliotecas, consulta documentos históricos. E descobre, enfim, o verdadeiro objeto de sua vergonha. Seu pai, o homem que ela tanto amou, o médico tão admirado, essa figura tão importante de sua existência, era um nazista. Teria até mesmo participado de experimentos médicos, trabalhando como ginecologista, para a ascensão de uma suposta "raça pura". Nem a mãe de Gretel, nem seus primos, nem nenhum de seus irmãos, com exceção de um, querem saber disso. Eles a ridicularizam, a criticam por vasculhar inutilmente o passado, e Sylviane Giampino fala hoje da imensa admiração que tem pela tenacidade de sua paciente. Descobrir-se, em tal idade, herdeira de história tão vergonhosa e manter-se firme, apesar de tudo. Gretel lhe dirá um dia, em sessão: "Se é necessário que eu derrube a estátua de meu pai para que Violette ande, então como poderia desistir?".
Pois é exatamente disso que se trata. Violette, que, no entanto, nada sabe do trabalho que sua avó realizou sobre ela mesma e sobre seu passado, Violette, a quem Gretel evita revelar seu segredo, Violette iniciará o sétimo ano em pé, logo após essa terrível descoberta...E é isso que Gretel, feliz, anuncia, enfim, à sua psicanalista, certa de ter libertado sua neta. 
(...)
E Sylviane Giampino jamais se esquecerá o sorriso de Gretel em sua última sessão. No cafarnaum de objetos alegres que enfeitam sua sala de espera, existe, em cima de uma prateleira, o presente que sua paciente lhe ofereceu, ao dizer adeus: dois homenzinhos em papel machê" - (pp. 85-90).

(In. Seu paciente favorito - 17 histórias extraordinárias de psicanalistas. São Paulo: Perspectiva, 2020).

Mais sobre o livro:
 

O que ela sussurra - Noemi Jaffe (trecho)

"O passado é um cobertor rosa que não serve para cobrir nossos corpos. Sempre falta ou sobra uma parte e as memórias se contorcem, são como galhos semimortos presos a raízes parasitas, você e eu. O tempo ultrapassa nossos corpos, mas precisa se agarrar a eles, tomar seu tamanho e hoje meu tempo cabe exatamente em mim, o passado fui eu que inventei. Por que, na alvorada da nova era, no começo mesmo do século XX, eu recebi o nome de Nadejda? Foi esperança que eles quiseram me nomear, para que eu ficasse condenada ao futuro, projetando-me para a frente, quando meu corpo só me puxava para trás. Sou o passado lançado para um futuro, cujo único conteúdo conhecido é continuar a sussurrar teus poemas" - (p.16).
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"É preciso manter alguma irracionalidade, alguma infantilidade quando você está sendo perseguido sem explicação. Não é possível ficar pensando estrategicamente ou manter a seriedade ou o desespero o tempo todo. Tínhamos formas de acreditar que a normalidade era possível e, entre eles dois, espirituosos e sardônicos, o humor fazia o papel de sanidade e até de sobrevivência. Se não mantivessem o riso diante do absurdo, cederiam a ele e perderiam a pouca força que tinham. Óssip cardíaco e Anna viúva com o filho preso" - (p.42).




"Já compreendi que a realidade das coisas é que se molda conforme o desejo, o gosto e a conveniência do intérprete e não o inverso e, nesse caso, tudo é possível, até acreditar na poesia de Óssip, de Pasternak, de Akhmátova e no partido ao mesmo tempo" - (p. 51).

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"Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo" - (p.57).

"Passei mais de vinte anos sussurrando; uma dedicação comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e comparável à de quando ele ainda era vivo, talvez maior, e agora eu entendo que não foi só para proteger os poemas do esquecimento. Foi também para continuar perto dele e ele perto de mim, para que um amor que sempre foi físico e erótico - a noite todas as nossas discordâncias se dissolviam - tivesse uma continuidade também concreta, pela voz e pelo som. Todo poema que falo me faz sentir mais redonda, as sílabas se reunindo na boca, passando pela língua me fazem subitamente bonita, as palavras sendo sopradas pelos círculos de fumaça, que assopro a cada tragada, me transformam rápido numa coquete. É patético, mas ainda tenho uma intimidade, eu que me dediquei a apagá-la" - (p.80).

(In. O que ela sussurra. São Paulo: Companhia das Letras, 2020).

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Para saber mais sobre o livro: