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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

No tempo da minha memória somos pra sempre - Aline Bei

 


"Em são paulo

o Vento ganhou banho,

levou ponto,

tomou vacina.

e o veterinário disse que foi corajoso

meu ato

sorri sem jeito.


-ele ficou até com cara de menino - eu disse

passando a mão no pelo dele.

-não ficou? mas olha,

foi bom você ter falado nisso.

porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a

idade exata dele,

dá pra saber que ele já é bem idoso.


- claro. - respondi.

entendendo que o tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.


em casa eu disse pro Vento

- Chegamos.


ele me ouviu de lado

batendo o rabo

no vaso

que espatifou no chão.


-deixa pra lá, depois eu limpo.


ele subiu no sofá,

se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,

era a melhor cama que ele já teve, os olhos

derramando porto

mais que vinho.


- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o 

nosso encontro.

porque no tempo da minha

memória

somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como

uma canção.

as canções não morrem nunca porque elas moram

dentro das pessoas que gostam delas. você conhece

aquela da rua? se

essa rua

se essa rua fosse minha?

eu mandava eu mandava ladrilhar

com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

para o meu

para o meu

Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que

se chama que se chama solidão.

dentro dele dentro dele mora um

Vento

que roubou

que roubou meu

coração " - (pp. 111-113).

(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).

*

Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Antes que anoiteça - Reinaldo Arenas

 
Antes que, tal como naquele período negro da História, o divergente tenha suas palavras sufocadas por uma estratégia silenciadora do particular, estratégia desejante que haja uma massa sem qualquer saliência que seja mais fácil de afagar ou lançar pra longe. Antes que uma estratégia dolorosamente totalizante se aproprie do mais estranho em nós mesmos, daquilo que carrega o germen da subversão. Antes que esta estratégia violentamente persecutória, movida por ideais quaisquer, sejam eles religiosos, políticos ou sociais, suplante o "ir e vir" ou a conquista da eletricidade, obrigando o sujeito a se embrenhar nas matas selvagens, donde só pode contar com a condescendência da luz solar para escrever o que lhe resta, seja razão ou loucura, antes que o negro torne a visão inoperante.
"Antes que anoiteça", leia a autobiografia de Reinaldo Arenas, que não bastando se sentir exilado de si mesmo, teve que se exilar de sua ilha natal por conta de uma sexualidade chamada de estrangeira pelo outro.
Se você não é socialista....leia. Se é, leia mais ainda. E antes de aceitar a advertência de qualquer um que lhe diga: "Não leia este traidor!" reflita se não é uma traição não estar sensível a angústia de um sujeito por conta da sua escuta estar atravessada por ideologias, traição que não é maior para com o outro do que é para você. Não perca de vista aquele famoso trecho que virou adágio da carta de Rimbaud.
 
*
 
Trechos de "Antes que anoiteça", de Reinaldo Arenas:
 
"Acredito que o esplendor da minha infância tenha sido único, pois se desenvolveu na mais absoluta miséria, mas também na mais absoluta liberdade; em campo aberto, cercado de árvores, bichos, aparições e pessoas que eram indiferentes em relação a mim. Minha existência não era sequer justificada, e ninguém se importava. Isso facilitava enormemente minhas fugas, sem que ninguém se preocupasse com o local do meu esconderijo ou com a hora da minha volta" (p.22).
*
"Acho que a época mais fértil da minha criação foi a infância; foi um mundo de criatividade. Para preencher aquela solidão tão profunda que eu experimentava em meio a tanto ruído, povoei todo o campo, aliás bastante raquítico, com personagens e aparições quase míticas e sobrenaturais. Uma das personagens que eu via com enorme clareza todas as noites era um velho que rolava um aro, debaixo a imensa mata que crescia em frente à casa. Quem era aquele velho? Por que ficava rolando aquele aro que parecia uma roda de bicicleta? Era o horror que me aguardava? O horror que aguardava toda a vida humana? Era a morte? A morte sempre esteve muito próxima de mim; tem sido uma companheira tão fiel que às vezes lamento ter que morrer, pois então talvez a morte me abandone" (pp.23-4).
*
"Sempre achei que minha família, incluindo minha mãe, considerava-me um ser estranho, meio doido ou louco; completamente fora do contexto de suas vidas. Com certeza, tinham toda razão" (p.36).
*
"O mar é nossa selva e nossa esperança" (p.341).
 
(In. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2009).
 
Trecho do filme "Antes que anoiteça", estrelado por Javier Bardem, baseado na obra do escritor cubano:
 
*
 
 


quinta-feira, 28 de março de 2013

Conversas de botequim - (I)



Na fila de entrada para um evento marxista, encontrei uma senhora que comentava enfaticamente sobre o seu orgulho em não ter permitido que a sua filha adolescente assistisse ao fenômeno de bilheteria "Titanic".
Perguntei: - Mas por que não?...
- Porque o filme foi uma infâmia, lavagem cerebral. Pão e circo. Nada de bons valores sociais que pudessem sensibilizá-la.
-Não? E o drama da família burguesa que beirava a crise? E por que o romance entre Jack e Rose era mal visto? Mais, por que Rose se viu arrebatada por Jack? Mais: Por que haviam tantos imigrantes na terceira classe do navio? Mais ainda: E quanto as condições do navio, a luta dos ocupantes da terceira classe para se salvarem, dentre as classes sociais ocupantes, quem se salvou em maior número, e a custa de quem? Enfim, tem certeza de que sua filha não teria nada com o que ficar sensibilizada?
A inflamada senhora emudeceu.
Se Marx e Engels encontravam nos romances de Balzac, burguês autoproclamado, elementos de reflexão, quem somos nós para fazer por menos? Nada mais atual que o velho provérbio revisitado, a maldade da alienação está naquele que olha mas não vê, algo tanto ou mais assustador quanto as nosssas mazelas sociais, caros companheiros.

domingo, 11 de novembro de 2012

Sim Criolo, existe...

 
Hoje parei no cruzamento da Lins com a Vergueiro, em sampa, e fui capturada pelo nome entalhado na placa da padaria de esquina: “lagoa azul”.
Lagoa azul, tal como naquele filme dos anos 80 que ganhou sequência e diversas reprises na tv. Imediatamente me transportei para a ilha onde, longe da civilização, dois jovens cresceram, se apaixonaram e decidiram ali permanecerem. “Se na ficção houve quem colocasse em primeiro lugar o que realmente conta, haveria quem o fizesse nesta desvairada realidade?”, devaneei.
- Quer comprar flores? – é a pergunta com a qual o ambulante me retirou do mergulho em minhas profundezas.
- Hoje não. “Não tenho para quem levá-las”, pensei. “Existirá quem compre toda esta variedade de rosas que o vendedor cuidadosamente carrega nos braços enquanto circula entre os carros?”.
Como que em resposta a minha incredulidade, um braço no carro à frente se estendeu, comprando não uma, mas várias rosas, todas cuidadosamente escolhidas.
Segui o meu caminho, muito trânsito e calor.
Parei em uma cafeteria, pedi refrigerante diet. Enquanto observava o movimento, me detive em uma senhora que, numa mesa próxima à janela, esperava – ela batia os dedos ligeiramente na mesa, e vez por outra, tímida, levantava os olhos em direção à porta, para em seguida os voltar, desiludida, ao chão. Alguns minutos se passaram antes que um sujeito com aroma de almíscar entrasse. Ele se aproximou da dama, tomou as mãos dela entre as suas e as beijou com delicadeza. Ela, fracassando em se conter, abriu largo sorriso.
Há tanta coisa errada, violência, medo, assustadora indiferença. Mas se nos atentarmos para os cruzamentos, frestas de janela, cafeterias, atrás das árvores, dos vidros embaçados e nos recônditos, iremos esbarrar nele. Sim Criolo, existe. Existe amor em SP.



 

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Mim não conjuga verbo: sobre a distinção entre "eu ideal" e "ideal de eu"

"Se o eu ideal é o outro como imagem com valor cativante, o ideal do eu é  o outro como falante" - Coutinho Jorge, 2009, p.42.
A imersão na dimensão simbólica é um marco na "ex-istência" de todo ser vivente, pois lhe confere o estatuto de sujeito, "aquele que deseja". Deseja o quê? O que desde já, está perdido para sempre.
"Ser" sujeito é ser como um diamante bruto que foi lapidado pela linguagem, o qual a luz do existir, ao atravessá-lo, se desdobra em múltiplos desafios: que fazer da incompletude, desse gozo que nunca é pleno, mas antes uma vaga lembrança? Como lidar com o desencontro sexual, esse Real que comparece no Simbólico? Haverá modo de deixar uma marca neste mundo que "já está" há milênios, e que continuará a girar, indiferente ao cerrar de nossos olhos?
"Diferenciar-se" é um significante que marca a minha existência desde o princípio; sei que isso poderá soar retundante aos ouvidos de quem está familiarizado com o vocabulário da Psicanálise, mas para estes evoco, em defesa da minha narrativa, uma pontuação de André Gide: "Todas as coisas já estão ditas, mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre".
Dizia minha mãe que eu fui um bebê muito intrigante, posto que era difícil distinguir meus apelos de fome dos de dor. Aos poucos, porém, meus choros de dor se tornaram mais agudos - talvez aí o matema que me inscreve já estivesse dando seus indícios....
Ao entrar para a escola, tentando rabiscar as primeiras letras, frequentemente era advertida que deveria firmar melhor o meu traço, pois do contrário ninguém compreenderia o que eu quisesse dizer; era impossível para os outros distinguirem um "b" de um "l", um "v" de um "r". Quando me apropriei da técnica de caligrafia passei a escrever tão firme que frequentemente manchava de tinta minhas mãos e as bordas de caderno.
Mais adiante, outra dificuldade de linguagem se apresentou. A professora do primário, raivosa, entoava:
- Mim não conjuga verbo. Mariana. Mas será possível que você não consiga compreender?
- Não consigo, professora. Dizer "eu" e dizer "mim" não dá na mesma?
- É claro que não. Guarde de uma vez por todas a explicação que vou te dar: "mim" não faz nada sozinho, precisa que alguém lhe dê um sentido, só existe enquanto objeto de outro. "Eu posso", mas "mim" não pode nada; "mim não conjuga o verbo, mas é conjugado por ele". Compreendeste?
Passaram-se vinte anos até que, lançando-me ao estudo dos escritos psicanalíticos, dificuldade semelhante se apresentou: distinguir o "eu ideal" de "ideal de eu". Foi então que Lacan me forneceu a pista para decifrar o enigma, escrevendo, no que tange ao eu ideal,"Je", do francês "eu", e quanto ao ideal de eu, "moi", do francês "eu", mas "eu" enquanto objeto, "mim".
À pista dada por Lacan liguei as advertências da professora, então tudo ficou mais claro: no "eu ideal"- "Je"- a relação com o outro é dual, especular: toma-se o outro como imagem de si, faz-se uma projeção, o que confere ao eu uma unidade; no "ideal de eu"- "moi" -, a relação se dá entre um trio, onde a linguagem liga o outro a mim, ou seja, o outro é um ser que me fala, e a existência eu apreendo por introjeção dessa fala; ao mesmo tempo semelhante e diferente, o outro profere o verbo ao qual me assujeito, afinal, "mim não conjuga verbo".
Entre a  professora e  Lacan teci uma trama que  corrobora tanto as palavras do grande professor - "o inconsciente é atemporal" - quanto as de seu melhor aluno -" o inconsciente é estruturado como linguagem", onde um "significante só tem sentido em relação a outro significante", costurando uma teia em que a cada dia acrescentamos novos fios. O modo como tricotamos é o que nos diferencia....

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Lacan & as pantufas

"O inconsciente é um saber articulado em torno de uma falta de saber institual...um saber não-todo que, dessa falta, só faz reconstituir a dimensão de seu enigma".
*
"A passagem do instinto para a pulsão é tributária de uma perda sofrida por nossa espécie, a partir da qual se instalou uma falta em todos os indivíduos. Trata-se de uma falta que está na origem e, por isso, opera como causa do desejo".
Marco Antônio Coutinho Jorge, em: Fundamentos da Psicanálise de Freud à Lacan - a clínica da fantasia, 2010, p.65.
Era manhã de sábado; o sol ainda tímido se escondia atrás das nuvens e eu, um tanto sonolenta mas não o suficiente para me manter na cama, vesti um casaco e saí à varanda, para podar e regar as plantas.
O cortiço jazia silencioso; muito cedo para que sua efervescência natural eclodisse. Entre o estalar de uma e outra folha seca, meus ouvidos se deteram no som de passos que vagarosamente se arrastavam. Ergo os olhos para além da mureta: um ser de cinquenta centímetros de altura, e trajando pantufas de leão, me fitava com seus olhos de oceano:
- Que tá fazendo, Mari?
Era a Gabriela, filha da minha prima caçula.
- Estou regando as plantas, respondi.
- Posso ficar aqui com você?
- Pode, claro. Você já tomou café?
- Ainda não. Mas não tô com fome. Mas Mari...você quer que eu fique com você?
- É claro que quero. Fico muito feliz que você esteja aqui comigo.
Continuei a regar as plantas. Gabriela olhava atenta.
- E esses leões, estão esquentando seu pé?
- Sim, são muito quentinhos. Você devia comprar desses pra você, e não ficar andando com esses chinelos. Mas sabe de uma coisa, eles não são leões de verdade.
Fiz expressão de surpresa.
- Há....não???!!!! Me parecem ter uma juba tão grande....
- Sabe como eu sei que eles não são de verdade?
Me encurvei de modo a colocar os ouvidos à altura de seus lábios, e sussurrando respondi:
- Não, não sei.
- Eles não falam, tia. Não podem ser de verdade.
- Hum...entendi.
- Tia Mari, por que é que você tem que regar as plantinhas?
- Porque elas tem sede, e como não sabem falar, se a gente não der água pra elas, elas morrem.
- Que nem um bebê?
- Isso, que nem um bebê.
- E quando é que um bebê deixa de ser bebê e vira gente de verdade?
- Hum....essa é uma pergunta muito difícil de se responder. Sabia que um monte de gente já pensou sobre isso e não conseguiu responder direito?
- Verdade?
- Verdade, Gabi. Você tem alguma idéia sobre isso?
- Eu tenho, tia, eu tenho. Acho que um bebê vira gente de verdade quando ele aprende o que é falar. Mesmo que ele não fale direito ainda, mas compreende quando falam com ele, o que pode ou não fazer.
Eu disse então baixinho, quase que para comigo mesma:
- Quando ele entra no mundo da linguagem.
- Isso mesmo, tia.
Totalmente atônita, repliquei:
- Você entendeu o que eu disse?
- Completamente, tia. É exatamente isso que faz do bebê ser gente.
- Me diz uma coisa, Gabi: quantos aninhos você tem?
Ela levantou três dedinhos e disse:
- Tenho isso. Não sou mais um bebê, né tia? Eu já sei falar....
- Claro que não, você já é uma mocinha.
- Além do mais, tia, eu sei o que me faz falta. Posso te ajudar com as plantas?
Enchi a jarra pela metade e passei para as suas mãozinhas, que dellicadamente depositaram a água nos vasos.
- Olha, tia, olha que engraçado!!! Tem umas plantinhas que vazam a água logo que eu ponho, e tem outras que demoram mais. Como é que pode?
- E você por acaso faz xixi logo que bebe água?
- Eu não tia. Então é a mesma coisa?
- A mesma coisa não é, Gabi, mas é parecido.
- A mesma coisa nunca vai ser, né tia? As plantas não entendem o que a gente diz. Elas podem até nos dizer alguma coisa, mas elas não tem dentro delas aquilo que você disse...como é mesmo tia?
- Linguagem.
- Isso, exatamente.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fragmento I

"Quando converso sobre algo que li, é como se a idéia transfigurada em letras ganhasse um corpo em que corre sangue, e uma alma que padece o sofrer.
Humanizando o concreto com o verbo fica difícil esquecer, pois não há como ignorar o que é vivo, a menos que a mente tenha uma boa razão para tal.
O que é vivo cresce, transmuta, ganha novas configurações.
Eu existo no outro. O outro existe em mim. Existimos no desejo do que nos falta.
O desejo alimenta a busca do que não se nomeia, verdade do inconsciente - que se estrutura no entre-dois".


domingo, 27 de março de 2011

Aprile - Nanni Moretti


Um filme fascinante daquele que, junto a Vittorio de Sica e Bertolucci, está entre meus diretores italianos favoritos.
A história de um homem inteligente e sensível, comum, mas que ao contrário de outros, tem uma crítica da situação sócio-política de seu país, e não vive à sombra da grande maioria silenciosa (ops, acho que plagiei o título de um livro, foi sem querer).
Ele não sabe muito bem que rumo a História irá tomar, mas não permite que o cotidiano esmague a beleza de seus dias, e nem sente vergonha de sua angústia. Pelo contrário, muito pelo contrário.
"É inútil tentar não errar. Vão errar muitas vezes.
O importante é perceber".

sexta-feira, 18 de março de 2011

Cinema & Psicanálise - Enrolados (Disney)

Ao assistir "Enrolados", o mais recente longa de animação dos estúdios Disney (releitura do clássico conto Rapunzel). torna-se possível articular diversos conceitos chave da Psicanálise, o que ratifica a estreita proximidade deste saber com o cinema, tal como em outras modalidades de arte.
Freud já havia abordado sobre a verdade do sujeito que a Arte antevém - o que mantém a Psicanálise em seu encalço; Lacan reafirmou e ampliou tal abordagem.
Atenhamo-nos, entrementes, a um breve esboço da história: tendo sido enclausurada no alto de uma torre, Rapunzel está prestes a completar dezoito anos sem nunca ter tido contato com o ambiente externo; a razão do aprisionamento se encontra nos poderes mágicos do cabelo da garota, que quando despertados por específica canção, são capazes de curar qualquer doença, cicatrizar feridas e, o que mais interessa à bruxa má que se faz passar por mãe, retrocede o efeito do tempo sobre o corpo, preservando a juventude.
Argumentando que o mundo é repleto de perigos e que por conta de sua fragilidade Rapunzel jamais sobreviveria fora da torre, a "mãe" usufrui da prisão da filha para manter-se jovem, impedindo que a garota viva plenamente, e a esta só resta entregar-se à leitura, pintura, bordados... enfim, todo tipo de atividade pelas quais tenta em vão preencher o vazio.
A sorte de Rapunzel muda quando por acaso Eugene, para fugir de ladrões, escala a torre em que ela vive; passado o estranhamento do primeiro contato os dois estabelecerão um acordo: em troca de uma jóia preciosa que está no poder de Rapunzel Eugene a levará para explorar o mundo. Durante a travessia dá-se então um encontro simbólico, marcado pela diferença que reafirma a falta ao invés de tamponá-la; o rapaz, graças a Rapunzel, legitima-se como homem, e é claro, faz dela Mulher.
A constituição do sujeito, mãe devoradora, atravessamento do complexo de Édipo feminino, posição feminina e masculina, a significação do falo, o encontro amoroso (faltoso)....é um pouco do muito que se pode contextualizar da Psicanálise em Enrolados, que também evoca questões mitológicas que não caberiam em breves linhas. Um longa que, diga-se de passagem, está longe de entreter unicamente às crianças...

"- Não pude deixar de notar, você parece estar em guerra consigo mesma.
- Sério?
- É compreensível. Mãe protetora, uma viagem proibida, é algo complicado. Mas deixe-me acalmar sua consciência. Isto faz parte de crescer. Um pouco  de rebelião e aventura. É bom. Até saudável.
- Você acha?
- Eu sei. Está se estressando à toa. Será que a sua mãe merece isso? Não. Será que partirá e esmagará a alma dela? Claro. Mas você tem de fazê-lo.
- Partir o coração?´
- É possível.
- Esmagar a alma dela?
- Como uma uva.
- Ela ficaria de coração partido, você tem toda razão.
- Provavelmente. Tudo bem...ou não..."
(trecho do filme)

Trailer do filme (legendado):

Canção original do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=7_WMV1o9TkE

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Do que não tem nome


"Acaricia-me com esta nobre ternura que só em ti encontrei". 
Um homem caminha.
Não sei o que veste, nem o que lhe vai na cabeça.
Sei da cadência de seus passos - que o deixa ofegante - capaz de conduzí-lo ao infinito...
Estará o suor a atravessar o seu corpo, ou o vento a brincar com seus cabelos?
Do oceano de seus olhos, das cerejas de seus lábios, e da alva seda que reveste a sua alma, disso sei.
O homem esbarra em alguém ao acaso; polidamente pede desculpas. A rua que pretende seguir quase lhe escapa, mas em tempo ele ergue o olhar, e se localiza.
O que pretende fazer, onde quer chegar?
Fosse nos primórdios da História, estaria ele a caçar um gigante com seus instrumentos de pedra talhada.
Hoje ele luta com a monstruosa rotina, e munido de seu ouro, prêmio muito aquém de suas vitórias, vai ao supermercado.
Tanta angústia, melancolia, loucura...lidou com os controversos desejos do sujeito faltante, enfrentou até mesmo a ira dos deuses com suas impiedosas tempestades...

Há de se pensar que do supermercado o homem trará algo para celebrar o seu dia de descanso, entretanto, trata-se de um ingrediente caro, parte de um prato elaborado, do qual não tomará parte.
"- Então vais comer isso? Que chique!
- Não, eu não como. É para minha família. Na hora, como outra coisa.
- E o que faço para te alimentar?"
Angustia-me pensar na possibilidade do prazer desempenhando papel coadjuvante em tua vida...
Que faço para te alimentar, meu nobre cavaleiro errante?
Se pudesse roubar o Céu, e estendê-lo sobre a Terra para que pousasses teus pés, eu o faria. 
Que faço para alimentar tua alma, tal como alimentas a minha com teu sorriso?
Em meu coração, o desejo da tua felicidade reinará para sempre soberano.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Coletânia de referências de Lacan sobre linguagem e poesia

Foi Lacan quem propôs o "inconsciente estruturado como uma linguagem" no seu retorno à Freud, quando os fundamentos da Psicanálise estavam sendo desvirtuados por psicoterapias superficiais que não correspondiam ao complexo e intenso trabalho de um  processo de análise.
Lacan sabia que a verdade do sujeito era da ordem do inconsciente; este, que não pertencia  nem a um, nem ao outro, mas que se estruturava no "entre-dois" proporcionado pela linguagem; lá onde se fazia o furo, nos interstícios do discurso, mas metáforas e metonímias das formações do inconsciente, lá estaria o desejo do homem.
Para aprofundar seus estudos acerca da Psicanálise, Lacan recorreu a grandes expoentes da linguística e semiótica, tais como Saussurre e Levi-Strauss; mas também voltou o olhar para apogeu das criações humanas: as Artes.
Lacan apreciava a boa música, era colecionador de belíssimas pinturas e frequentava o teatro, mas sua predileção era pela Literatura, que por se utilizar tão habilmente das metáforas e metonímias da linguagem  antevia a postulação do inconsciente. Fiel ao que Freud afirmara, de que na matéria com a qual a Psicanálise lidava, o artista sempre a precedia, Lacan pontuou no texto Lituraterra que sem lançar mão de qualquer conhecimento pré-concebido, era pela verdade do que os textos literários veiculavam que esperava.  
Curiosamente, a paixão de Lacan por línguas e pela Literatura foi bem anterior ao seu envolvimento com as questões psicanalíticas, e mesmo à sua formação em Medicina; é no colégio que ele terá destaque nos seus estudos de latim e alemão, e que estreitará o contato com grandes escritores, entre os quais James Joyce, que era um dos seus favoritos.
O legado de Lacan é marcado por referências a clássicas histórias e poesias da Literatura; só para se ter uma idéia, um de seus primeiros seminários é articulado em torno de um conto de Allan-Poe, "A carta roubada".
Na tese de doutorado que Maritza Magalhães Garcia apresentou ao departamento de Psicologia da PUC do Rio de Janeiro em março de 2010, entitulada "Da metáfora ao literal: Jacques Lacan com Arnaldo Antunes", há um extenso anexo que demonstra as referências de Lacan à linguagem, literatura, poesia. Abaixo colocarei alguns trechos; o anexo completo, que vale a pena ser lido, está disponível no link:

"O significante é o material audivel, que nem por isso quer dizer o som".
"A palavra, desde que se instaura, se desloca na dimensão da verdade. Só que, a palavra não sabe que é ela que faz a verdade (...) é em relação a verdade que se situa tudo o que é emitido". (In: Os escritos técnicos de Freud).
*
"A análise, como alerta Lacan, "não é da ordem da inspiração poética. Cabe ao psicanalista buscar mais o sentido do que o inefável. O que quer dizer o sentido?", pergunta Lacan. "O sentido é que o ser humano não é o senhor desta linguagem primordial e primitiva. Ele está jogado aí, ele está preso em sua engrenagem"". (In: O eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise).
*
"(...) basta escutar a poesia, o que sem dúvida aconteceu com F. de Saussurre, para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo discurso revele alinhar-se nas diferentes pautas de uma partitura". (In: A instância da letra ou a razão desde Freud).
  *
""A metáfora não é uma injeção de sentido - como se isso fosse possível, como se os sentidos estivessem em algum lugar, fosse onde fosse, num reservatório". Se a palavra pode trazer um sentido novo, é mais na qualidade de significante que por portar uma significação". (In: As formações do inconsciente).

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Do visionismo de meu avô

Inda lembro...lá se vão vinte e um, talvez vinte e dois anos. Manhã ensolarada.
Era domingo, pois meu pai mergulhado na poltrona da sala e cercado de papéis por todos os lados, com uma calculadora no colo, refletia sobre complicadas operações de balanço da empresa onde trabalhava, que lhe pagava muito mal, razão de seu sorriso tão melancólico. Isso só vim a compreender anos mais tarde.
Minha mãe...bem, minha mãe não lembro ao certo onde estava.
Eu brincava com uma bola no quintal; chutava de um lado e depois corria, para pegá-la do outro; não me recordo o porquê de estar do lado de fora da casa, pois em geral eu me espalhava com meus lápis pelo chão da sala e coloria revistas infantis; do enorme esforço que fazia para brincar em silêncio, disso eu lembro.
Foi quando meu avô assomou no muro:
- Que fazes sozinha aí?
- Brincando, vô.
- Não parece, pois não estás com cara de feliz.
- Não?
- Quero que vá lá dentro, e avise tua mãe que vou te levar pra minha casa. Vamos passar um tempo lá.
Lembro de ter entrado e dito algo a minha mãe enquanto ela prendia o cabelo num coque (naquele tempo ela tinha cabelos); lembro da resposta ríspida, como quem não ouve ou não dá importância ao que está sendo dito.
Corri para os braços do meu avô;ele me colocou nas costas e me levou para a casa dele, a dois quarteirões dali (era o tempo em que morávamos separados).
Lá chegando, fomos riscar com giz de cera a parede da sala; eu adorava, e continuava, alheia aos protestos de minha avó, a riscar, riscar, riscar....meu avô me acompanhava.
- Deixe a menina ser livre...depois lavamos a parede, como sempre.
- Mas tu não vês que são apenas rabiscos?
- Não diga "apenas". Estamos nos comunicando.
Meu avô, que nunca havia lido Winnicott...
Minha avó, que odiava cozinhar, e cujo mal-humor era uma constante, serviu o almoço.
- Não será melhor avisar que a menina vai comer aqui? Não ficarão preocupados?
- Deixe a menina comer. Em tempo, virão atrás dela.
Enquanto comia, eu olhava intrigada para o meu avô misturando suco de laranja ao de manga. Naquela época, não havia Tangs nem Ades nem seja lá o que for de todos os sabores.
- Por que se contentar com um só, quando podemos experimentar todos? Era o que respondia meu avô a cara de nojo que fazia minha avó. Ele também costumava misturar coca-cola com suco de limão, décadas antes da multinacional comercializar tal produto. Devia ter patenteado a idéia, pois, para mim, aquilo era muito mais significativo que o escorredor de arroz do qual minha mãe falava tão maravilhada...
- Não costumam brincar contigo?
- Não, vovô. Acho que não gostam de mim.
- Bobagem. Eles são muito sérios, apenas isso. Eles tanto te amam que logo se darão conta da tua falta, e virão atrás de você. Aquilo que mais amamos é o que mais nos dá conta da falta...
Meu avô, que nunca havia lido Lacan...
Não sei como dar fim a esse texto...mas também, que mania esta do ser humano de colocar termo ao que não tem fim...talvez possa dizer, contudo, algo do muito que aprendi com meu avô: sentidos da alma, "sempre alertas"; do contrário, não se poderá chamar de vida seja lá o que for que estivermos experimentando...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A origem do mundo - Gustav Courbet (1866)

O quadro "A origem do mundo" foi pintado pelo francês Gustav Courbet em  1866; trata-se de um óleo sobre tela de 46x55 cm, realizado à pedido do diplomata turco otomano Khalil Bey, colecionador de imagens eróticas, que solicitou ao pintor que retratasse o nu feminino da forma mais crua que fosse possível.
Entre a origem do quadro e seus últimos proprietários, a família Lacan, há uma série de controvérsias sobre a trajetória que o quadro seguiu.
Na versão histórica mais corrente, o que se diz é que o diplomata Khalil, arruinado no jogo, tivera que vender toda a sua coleção, e que "A origem do mundo" fora junto, permanecendo escondida atrás de outro quadro de Courbet.
O dono seguinte do quadro teria sido Emile Vial, um cientista e colecionador de arte japonesa, no início do século XX.
Entre 1910 e 1913, um aristocrata e colecionador de arte húngaro, chamado François de Hatvany, adquiriu o quadro e levou para Budapeste; com a Segunda Guerra Mundial, parte de sua coleção foi roubada pelo Exército Vermelho, incluindo o polêmico quadro; quando o conflito se resolveu, o aristocrata conseguiu recuperá-lo.
A obra foi então adquirida em leilão por Sylvia Lacan, esposa do famoso psicanalista, e foi colocada na casa de campo do casal, onde era coberta por um suporte de madeira com uma pintura feita por André Masson, e somente era revelada a visitantes privilegiados; a maioria dos que se deparavam com ela ficavam horrorizados, e o procedimento foi feito para evitar maiores constrangimentos.
Esta era a pintura de Masson que encobria o quadro; parece querer retratar uma floresta no estilo oriental, mas os olhos mais atentos logo perceberão de que se trata apenas de uma releitura da obra de Courbet:
Os críticos de arte costumam dizer que o quadro de Courbet ultrapassa o realismo fotográfico; um fato curioso que reforça tal pontuação é que já se tentou reproduzir a pintura em imagem; solicitou-se que toda sorte de mulheres, de damas a prostitutas, se posicionassem da mesma forma e deixassem fotografar-se, mas o efeito conseguido nunca foi o mesmo, pois nas fotos, sempre insistia um certo ar vulgarizador, um convite ao deleite sexual, o que não acontece na pintura, que cada espectador percebe de uma forma diferente, ainda que quase sempre com horror.
Após a morte de Sylvia, no início dos anos 90, a tela foi doada ao Museu d´Orsay, em Paris, para por fim a uma querela pela disputa da herança entre os herdeiros da família Lacan; atualmente, é a segunda obra mais vista no museu, a julgar pelo tanto de repoduções e postais que são vendidos dela, ficando atrás apenas de um quadro de Renoir, "Le Moulin de la Gallette".
Resta o questionamento: por que o quadro invoca horror? Seria pela sensualidade? Creio que não, pois o sexo da mulher fora retratado de forma crua, como o primeiro dono do quadro desejava. Talvez o horror seja invocado pela pintura invocar o que no homem é vivido como ameaça, e na mulher como constatação: a castração, aquilo que está para sempre perdido, o gozo pleno, impossível. Não por acaso percebo que sempre são as ditas "mulheres fálicas" e os "homens que se dizem mais poderosos, completos e viris" os que mais se horrorizam ao contemplar o quadro; estaria este em verdade denunciando a falácia de quem se acredita um sujeito completo?
Para melhor compreender os questionamentos acerca da sexualidade que o quadro invoca, e a necessidade do feminino estar coberto por um véu, uma excelente leitura é o artigo de Maria Cristina Poli, disponível na Revista Ágora de Psicanálise:
Uma leitura do que a arte traz do Real, especialmente o quadro de Courbet, também pode ser conferida no livro no livro "As partes da maçã: visões prismáticas do real", de Maria Antonieta Jordão Borba, cujo capítulo esta disponível no Google livros:
O difícil confronto com o estatuto de sujeito castrado e com a vivência da feminilidade é um tema que merece um aprofundamento bem maior que ultrapassa em muito os limites deste breve ensaio.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Rol do cotidiano - by me

Fragmentos do dia-a-dia engrossam a minha angústia intrínseca ao estatuto de sujeito condenado pela linguagem...
Estava eu à fila para o almoço, segurando o que um dia fora um gélido bandejão de inox, e que fora substituído por uma bandeja preta com branco prato de louça, por ocasião das festividades de encerramento do ano.
Aguardava os outros se servirem da mistura arroz-feijão, cada qual com a sua idiossincrasia, como diria meu amigo Claiton. Uns erguiam uma pilha alta de arroz em meio ao mar de feijão, à moda de outros homens que um dia ergueram a famosa estátua da ilha de Manhatam; outros forravam seus pratoss com fartas colheradas de arroz e apenas finalizavam com uma quase "pitada" de feijão, bem ao centro, como se estivessem confeitando um bolo com cereja - e quisessem mais fazer do feijão alegoria do que sentir o seu gosto; outros ainda, dispunham arroz e feijão em porções meticulosamente iguais, para que se confrontassem mas não se ultrapassassem - como se quisessem brincar de Deus e pudessem recriar na floresta de seus pratos o encontro do rio Negro e do Solimões.
Depois viria a carne...
A carne, pode-se optar entre duas; em geral, a primeira é uma das grandes "pop stars" do refeitório (bife à parmegiana, frango assado, filé) e a segunda consiste em algo que poucos ousam gostar, tal como bossa-nova (tirinhas de fígado com pimentão, picadinho de carne com abóbora, dentre outras). Poder-se-ia dizer que se trata de uma atividade tão complexa quanto a de sintonizar uma rádio, salvo que aqui você não pode aumentar o volume, pois é a copeira que, com o olhar de uma alemã em Auschewitz, despeja a quantia que bem quer em nossos pratos.
Chegada a minha vez, escolhi fígado com pimentão, pois sou uma pessoa cult, e não saio por aí ouvindo, ou melhor dizendo, comendo..."qualquer-coisa".
Dali fui para a fila do suco, e é nela que se deu o grande evento...
O suco é armazenado em uma máquina, dessas em que encostamos o copo descartável e ela despeja o conteúdo, tal como as máquinas de fast-food...
Fulano cochicha para ciclano:
- Vou logo é encher dois copos, para não ter que levantar pra pegar mais quando o suco acabar!
Beltrano, que atrás deles, ouvia atento, replicou:
- Que boa idéia! Vou fazer isso também!
E o procedimento se espalhou pelo resto da fila, tal como os presentes fossem peças de dominó enfileiradas, e alguém tivesse lançado o dedo.
Diante de tal disparate, fui assaltada por diversas inquietações: mas e o meio ambiente, o plástico que demora não sei quanto tempo para degradar, e todas aquelas veias e artérias congestionadas dos corpos inertes?
Por fim minha consciência ordenou que a alma calasse, sob pena de entregá-la à loucura.
Aquilo era café pequeno, eu que ficasse feliz com as alegrias que o dia ainda me reservava...
Mas naquela tarde um jovem que ocupava o assento preferencial  fingiu dormir quando o metrô parou na estação Paraíso e uma senhora assomou à porta; e um homem não quis correr para alcançar a mulher que, exausta, deixara escorrer o troco da passagem entre os dedos - preferiu ele guardar o dinheiro no bolso, e não o fez sem que brotasse um sorriso no canto de seus lábios.
fotos de Lee Miller

Saramago - Biografia

Escrita pelo português João Marques Lopes, que atualmente desenvolve doutorado na área de Literatura brasileira da Universidade de Lisboa, esta é a mais recente biografia de Saramago que vem a público após a morte do escritor, e que teve grande destaque na Bienal do Livro ocorrida este ano em São Paulo.
Apesar da narrativa abusar de termos acadêmicos, o que não compromete a compreensão e fruição do texto, ela acrescenta poucas novidades ao que já fora amplarmente divulgado pelas mídias sobre a vida do prêmio Nobel de Literatura; foi dada demasiada ênfase ao envolvimento do escritor com questões políticas  em detrimento de suas outras facetas, como criador e mesmo como homem.
Creio que quem deseja ter um maior contato com a vida e a obra de Saramago fará melhor lendo aos "Cadernos de Lanzarote",  nos quais é o próprio escritor que narra as suas aventuras e desventuras,  acrescidas da sua aguda sensibilidade perceptória,  imensurável bagagem cultural e emotividade.
Entrementes, a biografia de João é válida para quem deseja tomar um primeiro contato com Saramago, por trazer à baila um apanhado geral sobre a vida e as obras do escritor.
A seguir, destaco alguns pontos interessantes do livro.
As origens de Saramago são humildes; seus avós maternos foram camponeses analfabetos, criadores de porcos (o avô fora injeitado quando pequeno e colocado na roda da Misericórdia). Nos vinte e um anos em que viveu com os pais, Saramago mudou-se dez vezes, pois vivia em casas de aluguel, e sempre que este aumentava, a famíla tinha que se deslocar para locais mais "acessíveis". Num desses locais, o sexto andar de um prédio velho na periferia de Lisboa,  a família tinha que roubar água; neste lugar havia apenas dois livros, que lá jaziam por terem sido abandonados por outros inquilinos:  tratava-se de um guia de conversação português-francês, e da "Toutinegra do Moinho," de Émile de Richebourg; durante muito tempo estes foram os únicos livros com os quais Saramago teve contato.
As origens humildes ficará marcada num episódio curioso envolvendo o nome do escritor. O pai, batizado como José de Sousa, fora registrar o menino em cartório, revelando ao escrevente que desejava que o filho tivesse o mesmo nome . Tudo feito, deixara o cartório e só alguns anos depois, ao acessar a certidão para matricular o menino na escola, descobriu que o escrevente adicionara arbitrariamente ao José de Sousa o sobrenome Saramago. O pai ficou arrasado, pois Saramago se tratava de um nome jocoso, que aludia a uma espécie de erva ruim, dessas que crescem espontanemente, o que denunciava como a família era denegrida entre os vizinhos da aldeia onde moravam.

Ainda que a mãe de Saramago fosse analfabeta, ela fez questão que o filho estudasse, sendo que a sua formação básica se deu numa escola de excelente qualidade, o Liceu Gil Vicente; nesta escola é que o menino terá o primeiro contato com as artes e literatura, pelas quais desenvolverá intenso interesse; certa feita, quando Saramago ficou doente e acamado, ainda menino, a mãe percorreu toda a vizinhança implorando que lhe emprestassem livros, para levá-los ao filho e assim agradá-lo, de forma a apressar seu restabelecimento.
Impossibilitado de prosseguir os estudos no Liceu por conta das dificuldades econômicas, Saramago seguiu os estudos secundários na Escola Industrial de Afonso Domingues, como serralheiro mecânico; ele jamais cursou o ensino superior.
Sua vida profissional evoluiu do ofício como serralheiro mecânico para empregos administrativos; apesar das adversidades, Saramago nunca se manteve longe dos livros, frequentando a bilbioteca assiduamente; por este hábito é que adquiriu uma incomensurável bagagem cultural e o gosto por escrever. No entanto, seu primeiro livro só seria publicado quando o escritor já contava com 53 anos. 

O encontro com Pilar del Rio

José Saramago já fora casado com Ilka Reis, com quem compartilhou trinta anos de convivência e tivera sua única filha, Violante; depois mantera um relacionamento de quase dez anos com Isabel de Nóbrega; mas foi com Pilar del Rio que, segundo ele, encontrou a verdadeira felicidade.
É Pilar que em entrevista a Juan Airas revelou como se deu o encontro. A jornalista espanhola por acaso entrou numa livraria com as amigas e encontrou um livro de Saramago, "Memorial do convento"; leu-o avidamente e lhe interessou especialmente a o destaque que Saramago conferia às mulheres na narrativa, pois Pilar sempre fora uma defensora ferrenha dos direitos femininos.
Pilar retornou à livraria e comprou outro romance, desta vez "O ano da morte de Ricardo Reis", que se tratava de uma história fictícia criada em torno de um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Segue trecho da biografia que narra o que se deu a partir de então. Diz Pilar:
"Acabei de ler o livro e chorar compulsivamente porque estava a terminar e perguntava-me: que vou fazer o resto da minha vida se o livro está a acabar? Então decidi ir percorrer os lugares de Lisboa que aparecem no romance e pareceu-me de justiça telefonar ao escritor para lhe agradecer o livro e a emoção que me tinha oferecido - assim Pilar define o início do contato com Saramago. Entretanto, mesmoantes de conhecê-lo pessoalmente, faria um programa de televisão sobre ele, e a visita a Lisboa aconteceria em junho de 1986. Consegue marcar um encontro com Saramago, que a leva ao túmulo de Pessoa no Cemitério dos Prazeres, a outros lugares do roteiro pessoano, e leem ambos fragmentos da obra. Daí nasceriam uma amizade e uma troca de correspondência baseadas em literatura, com ela e lhe enviar resenhas da imprensa espanhola a respeito dos livros dele e Saramago a lhe recomendar leituras de escritores portugueses. A relação epistolar começaria a evoluir para algo mais profundo quando, na quinta carta que enviava, o escritor lhe pergunta se haveria algum incoveniente em uma visita sua a Servilha. Após outras visitas, a relação sedimenta-se, e Pilar se mudará para Lisboa, onde se casará com o escritor em 29 de outubro de 1988. Ela tinha 37 anos e ele, 66" (Lopes, 2010, p114-5).
Os dois viveram juntos até a morte do escritor, ocorrida em junho deste ano. Todos os livros que Saramago escreveu depois de conhecer Pilar foram dedicados a ela.
A história de amor do casal é narrada em meio ao processo de concepção do livro "A viagem do elefante" no belíssimo filme "José e Pilar", em cartaz nos cinemas de SP.
Encerro este breve ensaio com uma citação de Saramago:
"Nada me causa mais desagrado do que ouvir um político dizer que não há que causar alarme social. A sociedade tem de estar alarmada, é a sua forma de estar viva".
Vale à pena conferir os blogs oficiais do escritor, que contêm documentos, fotos e resenhas originais: