Pesquisar este blog

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Lacan & as pantufas

"O inconsciente é um saber articulado em torno de uma falta de saber institual...um saber não-todo que, dessa falta, só faz reconstituir a dimensão de seu enigma".
*
"A passagem do instinto para a pulsão é tributária de uma perda sofrida por nossa espécie, a partir da qual se instalou uma falta em todos os indivíduos. Trata-se de uma falta que está na origem e, por isso, opera como causa do desejo".
Marco Antônio Coutinho Jorge, em: Fundamentos da Psicanálise de Freud à Lacan - a clínica da fantasia, 2010, p.65.
Era manhã de sábado; o sol ainda tímido se escondia atrás das nuvens e eu, um tanto sonolenta mas não o suficiente para me manter na cama, vesti um casaco e saí à varanda, para podar e regar as plantas.
O cortiço jazia silencioso; muito cedo para que sua efervescência natural eclodisse. Entre o estalar de uma e outra folha seca, meus ouvidos se deteram no som de passos que vagarosamente se arrastavam. Ergo os olhos para além da mureta: um ser de cinquenta centímetros de altura, e trajando pantufas de leão, me fitava com seus olhos de oceano:
- Que tá fazendo, Mari?
Era a Gabriela, filha da minha prima caçula.
- Estou regando as plantas, respondi.
- Posso ficar aqui com você?
- Pode, claro. Você já tomou café?
- Ainda não. Mas não tô com fome. Mas Mari...você quer que eu fique com você?
- É claro que quero. Fico muito feliz que você esteja aqui comigo.
Continuei a regar as plantas. Gabriela olhava atenta.
- E esses leões, estão esquentando seu pé?
- Sim, são muito quentinhos. Você devia comprar desses pra você, e não ficar andando com esses chinelos. Mas sabe de uma coisa, eles não são leões de verdade.
Fiz expressão de surpresa.
- Há....não???!!!! Me parecem ter uma juba tão grande....
- Sabe como eu sei que eles não são de verdade?
Me encurvei de modo a colocar os ouvidos à altura de seus lábios, e sussurrando respondi:
- Não, não sei.
- Eles não falam, tia. Não podem ser de verdade.
- Hum...entendi.
- Tia Mari, por que é que você tem que regar as plantinhas?
- Porque elas tem sede, e como não sabem falar, se a gente não der água pra elas, elas morrem.
- Que nem um bebê?
- Isso, que nem um bebê.
- E quando é que um bebê deixa de ser bebê e vira gente de verdade?
- Hum....essa é uma pergunta muito difícil de se responder. Sabia que um monte de gente já pensou sobre isso e não conseguiu responder direito?
- Verdade?
- Verdade, Gabi. Você tem alguma idéia sobre isso?
- Eu tenho, tia, eu tenho. Acho que um bebê vira gente de verdade quando ele aprende o que é falar. Mesmo que ele não fale direito ainda, mas compreende quando falam com ele, o que pode ou não fazer.
Eu disse então baixinho, quase que para comigo mesma:
- Quando ele entra no mundo da linguagem.
- Isso mesmo, tia.
Totalmente atônita, repliquei:
- Você entendeu o que eu disse?
- Completamente, tia. É exatamente isso que faz do bebê ser gente.
- Me diz uma coisa, Gabi: quantos aninhos você tem?
Ela levantou três dedinhos e disse:
- Tenho isso. Não sou mais um bebê, né tia? Eu já sei falar....
- Claro que não, você já é uma mocinha.
- Além do mais, tia, eu sei o que me faz falta. Posso te ajudar com as plantas?
Enchi a jarra pela metade e passei para as suas mãozinhas, que dellicadamente depositaram a água nos vasos.
- Olha, tia, olha que engraçado!!! Tem umas plantinhas que vazam a água logo que eu ponho, e tem outras que demoram mais. Como é que pode?
- E você por acaso faz xixi logo que bebe água?
- Eu não tia. Então é a mesma coisa?
- A mesma coisa não é, Gabi, mas é parecido.
- A mesma coisa nunca vai ser, né tia? As plantas não entendem o que a gente diz. Elas podem até nos dizer alguma coisa, mas elas não tem dentro delas aquilo que você disse...como é mesmo tia?
- Linguagem.
- Isso, exatamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário