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segunda-feira, 23 de agosto de 2021

No tempo da minha memória somos pra sempre - Aline Bei

 


"Em são paulo

o Vento ganhou banho,

levou ponto,

tomou vacina.

e o veterinário disse que foi corajoso

meu ato

sorri sem jeito.


-ele ficou até com cara de menino - eu disse

passando a mão no pelo dele.

-não ficou? mas olha,

foi bom você ter falado nisso.

porque mesmo que não dê pra gente saber qual é a

idade exata dele,

dá pra saber que ele já é bem idoso.


- claro. - respondi.

entendendo que o tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.


em casa eu disse pro Vento

- Chegamos.


ele me ouviu de lado

batendo o rabo

no vaso

que espatifou no chão.


-deixa pra lá, depois eu limpo.


ele subiu no sofá,

se ajeitou como pode naquilo que, com certeza,

era a melhor cama que ele já teve, os olhos

derramando porto

mais que vinho.


- não me importo - eu disse pra ele - que seja breve o 

nosso encontro.

porque no tempo da minha

memória

somos pra sempre. não existe morrer dentro, é como

uma canção.

as canções não morrem nunca porque elas moram

dentro das pessoas que gostam delas. você conhece

aquela da rua? se

essa rua

se essa rua fosse minha?

eu mandava eu mandava ladrilhar

com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

para o meu

para o meu

Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque. que

se chama que se chama solidão.

dentro dele dentro dele mora um

Vento

que roubou

que roubou meu

coração " - (pp. 111-113).

(In. O peso do pássaro morto. Aline Bei. São Paulo: Editora Nós, 2017).

*

Comentário: Pelo grito nascemos. E na dor vivemos. Mas se tivermos sorte vamos morrendo um pouquinho por vez até chegar o dia em que para definitivamente de doer. Existem situações entretanto que abrem um buraco no eu por onde escorremos até não sobrar nada além de um autômato que espera o fim que venha formalizar a morte. Esta espera é pior que qualquer dor. "O peso do pássaro morto" faz Arte da dor....o tipo de Arte que nos ajuda a não morrer em vida. Que beleza.....


O mapeador de ausências - Mia Couto

 


"Aprendi a ter vergonha desse passado que, sendo dele, também me pertence. É injusto herdar passados, é como se nos amarrassem o tempo aos nossos pés" - (p. 19).
*
"Mas neste mundo de hoje, meu querido neto, ser cego para as raças pode ser uma maneira de não ver o racismo. E eu quero que estejas atento a este mundo cheio de coisas feias, mas também repleto de gente bonita.
Repara, por exemplo, neste nosso empregado, o Juliano, que está muito velhinho. Pedi ao teu pai que não o mandasse embora. E há boas razões para esse meu pedido. Primeiro porque ele próprio não quer ir. Segundo porque este velho preto - que todos dizem ser já de nenhum préstimo - todos os dias me traz uma história. Na verdade, acho que é o único serviço que ele faz aqui em casa. Não imaginas como preciso de escutar essas histórias. Noutro dia falou-me de um amigo seu que morrera fora de Moçambique.
Conto-te agora esse episódio, pensa nele como a prenda que me pediste ontem quando adormecias. A história fala de um velho mineiro que faleceu nas minas da África do Sul. Os seus companheiros optaram pelo mais fácil: enterrá-lo em território estrangeiro, para evitar a chatice de o transladar. Tiraram-lhe as medias, quotizaram-se entre eles e mandaram fabricar um caixão, o mais barato que houvesse. Quando quiseram colocá-lo dentro da urna, o corpo não cabia. Voltaram à funerária para encomendar um caixão de maiores dimensões. Mas voltou a acontecer o mesmo: o corpo sobrava da madeira. Já sem dinheiro, decidiram prescindir da urna. Embrulharam o cadáver num pano branco para o enterrar à pressa. Aconteceu então que o corpo não cabia na cova. Abriram uma cova maior e logo entenderam que de pouco valia aumentar o tamanho da sepultura. Alguém disse: este morto quer voltar para a sua terra. Colocaram o falecido numa carroça, atravessaram a fronteira e conduziram-no para o lugar onde ele nasceu. E ali o morto coube, enfim, na sua própria morte.
Entendes esta história, meu neto? Não é sobre um morto anônimo e distante. É sobre mim, a tua avó Laura Santiago, condenada a morrer numa terra que, depois destes anos todos, continua a ser estranha. Dizem que Moçambique também é Portugal. Li em algum lado que a eficiência da mentira diz mais da ingenuidade do enganado que da arte do mentiroso. Pois arranjem uma história mais bem engendrada. Desejo muito, meu neto, que te mantenhas ingênuo a vida inteira. Mas deves saber escolher as tuas ingenuidades" - (pp.133-134).


  (In. Mia Couto. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das Letras, 2021 - edição especial TAG).