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quarta-feira, 3 de julho de 2013

Eu não possuo o meu corpo - Fernando Pessoa

Eu não possuo o meu corpo - como posso eu possuir
com ele? Eu não possuo a minha alma - como posso
possuir com ela? Não compreendo o meu espírito -
como através dele compreender?
Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras,
sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por
dentro.
Conhece alquém as fronteiras à sua alma, para que
possa dizer - eu sou eu?
Mas eu sei que o que sinto, sinto-o eu.
Quando outrem possui esse corpo, possui nele o
mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que
somos, como sabemos nós o que possuímos?
Se do que comes, dissesses, "eu possuo isto", eu
compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o
inclues em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o
sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes
não falas tu de "posse". A que chamas tu possuir?

(In. Fernando Pessoa. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva: 2011, p.51).


Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida,
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

(In. Quando fui outro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 50).

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O Banqueiro anarquista - Fernando Pessoa

"Aceito - não tenho mesmo outro remédio" - que o homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu - o talento, a força, a energia; não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas qu...
e lhe aconteceram por babúrrio logo que ele apareceu cá fora - a riqueza, a posição social, a vida facilitada etc." - (p.31).
*
"Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais diferentes, igualmente más porque igualmente ficções. Aqui é que era preciso cuidado" - ( p.42).
*
"Se um homem nasceu para escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania" - (p.75).
(Fernando Pessoa. O banqueiro anarquista. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006).
Conto na íntegra no link:

terça-feira, 5 de junho de 2012

Intervalo doloroso - Fernando Pessoa

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, como um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela.
(Fernando Pessoa. O livro do desassossego (trecho n*80). São Paulo: Companhia de Bolso, 2010, p.109-10).

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O livro do Desassossego - Trecho 429

Em todos os lugares da vida, em todas as situações e vivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma vez só sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por ser hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, de atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegaram. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objeto de afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm que se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensase em que se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nmada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo que as vezes eu gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de chefe, nem de sequaz. Nem seuqer as tenho de satisfeito, que são as qyue valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.
(Bernardo Soares (Fernando Pessoa). O livro do desassossego.São Paulo: Schwarcz, 2010 [1914], p.391-2).

Trecho do "Filme do Desassossego" (2010):

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Esta velha angústia - Álvaro de Campos

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!
 

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Se estou só, quero não estar - Fernando Pessoa

"Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada".

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Dize-me: tu és mais alguma coisa - Alberto Caeiro

Dize-me: tu és mais alguma coisa
Que uma pedra ou uma planta.
Dize-me: sente, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?

Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teoria sobre as coisas:
só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei qque é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é real, sei que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.

Sim, escrevo versos, e a pedra não escre versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
(5-6-1922 - Poemas Inconjuntos - In: Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946).

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora - Alberto Caeiro

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.

Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.
Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo -
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?
O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?
Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?
Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta, impessoal, sem forma,
Já não sente o eu que eu tenho,
Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,
Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.
Cessarei assim? Não sei.
Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,
Não me tomará imortal.
Escrito em 05/06/1922

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Vive, Dizes - Alberto Caeiro

Vive, dizes, só no presente:
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente,quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar,
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, sem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Poema do menino jesus - Fernando Pessoa (trecho)

Ele dorme dentro da minha alma. Ás vezes ele acorda de noite , brinca com meus sonhos. Vira uns de perna pro ar, põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sorrindo, sorrindo para os meus sonhos.
(....)
Pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua casa.
Deita-me a Tua cama. Despe o meu ser, cansado e humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu tornar a adormecer, e dá-me sonhos teus para eu brincar.

Alberto Caiero
Imagens: Desejo & Reparação - filme