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segunda-feira, 31 de julho de 2017

A Odisséia de Penélope - Margaret Atwood (trechos)

"Agora que morri, sei de tudo. Era isso que eu esperava que acontecesse, mas, como muitos dos meus desejos, deixou de se realizar. Sei apenas alguns fatos dispersos que antes ignorava. Desnecessário dizer, trata-se de um preço alto demais a pagar pela satisfação da curiosidade.
Já que estou morta - já que atingi o estado desossado, deslabiado, despeitado -, aprendi coisas que preferia desconhecer, como ocorre quando alguém escuta debaixo da janela ou abre cartas alheias. Você gostaria mesmo de ler a mente? Pense bem.
Aqui todos chegam com um saco igual para guardar os ventos, mas todos os sacos estão cheios de palavras - palavras que a pessoa disse, palavras que ouviu, palavras que foram ditas a seu respeito. Alguns sacos são muito pequenos; outros, grandes; o meu tem tamanho razoável, mas boa parte das palavras se refere a meu distinto marido. Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos. Ele se safava de todas, outra de suas especialidades: safar-se.
Ele sempre foi muito convincente. Muita gente acreditava que sua versão dos acontecimentos era verdadeira, com, talvez mais, talvez menos, alguns assassinatos, algumas lindas mulheres seduzidas e vagos monstros de um olho só. Até eu acreditava nele, de vez em quando. Sabia que era ardiloso e mentia, mas não imaginava que fosse capaz de me enganar e de me contar mentiras. Não fui fiel? Não esperei, e esperei, e esperei, apesar da tentação - quase compulsão - de desistir? E o que me restou, quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras mulheres. Por que não podem todas ser tão circunspectas, confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os cantores, os rapsodos. Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês - sim, nos de vocês! Mas, quando tento gritar, pareço uma coruja.
Claro, eu desconfiava da ligeireza dele, da esperteza, da astúcia, da - como dizer? - da sua falta de escrúpulos, mas fingia não ver nada. Ficava de boca fechada; ou, se a abrisse, só elogiava. Não refutava, não fazia perguntas inconvenientes, não me aprofundava. Queria finais felizes naquela época, e os finais felizes são alcançados quando mantemos certas portas trancadas e dormimos na hora da confusão.
Contudo, quando os principais eventos passaram e o caso se tornou menos legendário, me dei conta de quantas pessoas riam de mim pelas costas - elas zombavam, contavam anedotas a meu respeito, piadas sujas e limpas; me transformaram numa história, ou em várias histórias, embora não fossem do tipo que eu gostaria de ouvir sobre minha pessoa. O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso esperei mais um pouco.
Agora que todos os outros perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma .
(...)
Antigamente, as pessoas ririam se eu bancasse o menestrel - não há nada mais ridículo do que uma aristocrata que se mete a artista -, mas a esta altura não me importo mais com a opinião pública. A opinião de quem está aqui: das sombras, dos ecos. Portanto, vou tecer minha própria narrativa.
A dificuldade é não ter boca pela qual falar. Não consigo que me compreendam, não as pessoas do mundo de vocês, do mundo dos corpos, das línguas e dos dedos; na maior parte do tempo não tenho ouvintes, não do seu lado do rio. Entre vocês, quem consegue captar um murmúrio perdido, um grito solto, facilmente confunde minhas palavras com o som da brisa dos juncos, morcegos ao crepúsculo, pesadelos.
Mas sempre fui determinada. Paciente, diziam.
Gosto de ver o final da história".
"Os deuses nunca desprezavam a chance de arranjar encrenca. Na verdade, adoravam. A visão dos olhos de um ou uma mortal a fritar nas órbitas graças a uma overdose de sexo com os deuses provocava gargalhadas terríveis. Havia certa maldade infantil nos deuses. Posso dizer isso porque não possuo mais um corpo, superei esse tipo de sofrimento, e além disso os deuses não estão escutando. No mundo de hoje as pessoas não recebem mais visitas dos deuses como antigamente, a não ser que tomem drogas".
"Esse era um dos seus grandes segredos para convencer os outros - ele conseguia fazer uma pessoa acreditar que os dois enfrentavam um obstáculo comum e que precisavam unir forças para superá-lo. Conseguia fazer qualquer um colaborar em sua pequena conspiração inventada. Ninguém era capaz de fazer isso melhor do que ele: aí, as histórias não mentem. E ele tinha mesmo uma voz maravilhosa, profunda e sonora".
*