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terça-feira, 25 de agosto de 2020

Seu paciente favorito - Violaine de Montclos

 

"Dois Homenzinhos de Papel Machê - Sylviane Giampino & Gretel".

"Gretel agendou uma consulta para uma menina de nove anos. Sylviane Giampino imaginou, portanto, ver chegar uma mãe com sua filha, mas é uma mulher de 63 anos que se apresenta, sozinha, à porta de seu consultório. O encontro delas começa com um mal-entendido.
Gretel explica com um forte sotaque que deseja falar de Violette, sua neta, que passa por um sofrimento incompreensível. Faz pouco tempo, a criança não consegue mais andar. Ela começou, há alguns meses, a sentir dores difusas, depois começou a mancar, a pular em uma perna só, e, desde então, Violette não consegue mais se manter de pé. É impossível, de tanta dor que sente, colocar um pé no chão. Evidentemente, foram feitos todos os exames de prache, pensou-se em uma doença degenerativa,  foi descartado o fantasma de uma questão neurológica. Violette, fisiologicamente, não tem nada. Acabou de dar entrada, para uma breve estadia, no serviço psiquiátrico de um grande hospital parisiense.
Gretel mantém uma relação difícil com a própria filha, mãe da criança. Sua filha e o esposo a mantêm violentamente afastada desse acontecimento. O casal insinua que ela é indesejável ao lado da neta, que, no fundo, sua presença é nociva, como se quisessem proteger a criança de algum misterioso perigo do qual ela seria a portadora. A velha senhora conseguiu, ainda assim, visitar Violette, e conversou com sua psiquiatra, que fala da situação da criança, que evoca os casos espetaculares de histeria outrora examinados por Charcot e que elucida que o caso, ao que tudo indica, é raríssimo. Gretel, muito angustiada, vem encontrar Sylviane Giampino na esperança de entender o que acontece com sua neta: ela é psicanalista, lida frequentemente com crianças, poderia ajudá-la a elucidar esta situação?
Eis a pergunta feita na ocasião desse encontro frente a frente, e que, portanto, não caracteriza uma demanda de análise. Sylviane Giampino tenta, no entanto, procurar saber mais sobre a tensão que existe com a mãe de Violette, e a velha senhora, então, descreve sua filha mais velha como uma mulher extremamente brilhante, uma quimica renomada, um pouco fria, muito organizada, a quem ama, mas ao mesmo tempo, teme. Ela usa, ao descrevê-la, esta expressão desconcertante: "Ela é de raça pura". Ela fala também, em um mesmo impulso, de sua mãe...Gretel nasceu durante a guerra, contaram-lhe que sua mãe havia fugido com ela, ainda bebê, e que ficaram escondidas, as duas, por alguns meses, no final do conflito. É isso. Desde o primeiro encontro, quatro gerações de mulheres são, então, convocadas para o consultório de Sylviane Giampino, entre as quais, a menina que não consegue mais andar. Diante de mim, muito tempo depois dessa visita inaugural, a psicanalista mergulha no pequeno dossiê que manteve durante o tratamento de Gretel e que contém nomes, datas, alguns detalhes significativos. Mas a consulta a esse dossiê é supérflua, já que Sylviane Giampino não esqueceu nada da surpreendente história que virá adiante.
(...) Gretel está frequentemente melancólica, oprimida pelo sofrimento de Violette e pela frieza demonstrada pela própria filha. Fala muito de seu pai, grande médico, figura muito admirada, que Gretel, assim como seus irmãos, amou muito. Prisioneiro em um campo russo, retornou ao lar apenas cinco anos após o fim da guerra; a velha senhora se recorda muito bem dos reencontros felizes. Ela fala de seu esposo, da maneira como educaram seus três filhos, uma menina e dois meninos, da profissão que exerceu, e, agora, de sua aposentadoria. Ela evoca também a mania que tem, desde sempre, de guardar papeis velhos. Todos os papéis. Calendários, boletins escolares, receitas médicas, faturas, desenhos, cartões-postais, cartas, documentos administrativos de todo tipo. Ela diz que faz camadas, pilhas que invadem o escritório, a sala, o sótão. Seu marido fica irritado com isso, não sabe mais onde colocá-los, seria necessário desfazer-se deles, que se pensava ser inútil, algum dia se revelasse indispensável? Ela se justifica, citando misteriosamente uma frase que atribui a Goethe: "O papel é paciente".
Semanas, meses, perto de dois anos se passaram e Gretel, desde então, adquiriu o hábito de ir falar com sua psicanalista toda semana. Ela se apresenta vestida de maneira muito simples, mas sua aparência e graça natural impressionam Sylviane Giampino (...). Gretel fala também de sua nova paixão. Desde que inicia as visitas a Sylviane Giampino, aprende a confeccionar, com um enorme prazer, esculturas em papel machê.
(...)
Então, uma cena surpreendente lhe retorna brutalmente. Teria sonhado, imaginado, assistido? Gretel vê seu pai vasculhar a casa da família, revirar cada um dos cômodos como um louco, esvaziar as gavetas, correr de um andar a outro; efetivamente, tinha perdido um papel de importância crucial...Ela quer saber mais sobre isso, vai e volta da Alemanha várias vezes, onde sua mãe muito idosa ainda reside, tenta entender de onde vem essa lembrança, mas não obtém resposta e mergulha então em profunda desolação. "Não tenho mais forças", ela diz à sua psicanalista. Apenas na quarta viagem é que a mãe reconhece, enfim, que houve, algum dia, um papel perdido.
Ao final dos anos 1940, em plena desnazificação, o documento atestava que o pai de Gretel não era um nazista, e ele o perdeu. Ele nunca mais achou esse papel de tão extrema importância? Não. E ela, sua mãe, nunca pôde ver o papel com os próprios olhos? Também não.
A partir de então, contra a opinião de sua mãe e de seus irmãos e irmãs, mas encorajada por seu esposo, Gretel dá início a pesquisas, percorre associações e as bibliotecas, consulta documentos históricos. E descobre, enfim, o verdadeiro objeto de sua vergonha. Seu pai, o homem que ela tanto amou, o médico tão admirado, essa figura tão importante de sua existência, era um nazista. Teria até mesmo participado de experimentos médicos, trabalhando como ginecologista, para a ascensão de uma suposta "raça pura". Nem a mãe de Gretel, nem seus primos, nem nenhum de seus irmãos, com exceção de um, querem saber disso. Eles a ridicularizam, a criticam por vasculhar inutilmente o passado, e Sylviane Giampino fala hoje da imensa admiração que tem pela tenacidade de sua paciente. Descobrir-se, em tal idade, herdeira de história tão vergonhosa e manter-se firme, apesar de tudo. Gretel lhe dirá um dia, em sessão: "Se é necessário que eu derrube a estátua de meu pai para que Violette ande, então como poderia desistir?".
Pois é exatamente disso que se trata. Violette, que, no entanto, nada sabe do trabalho que sua avó realizou sobre ela mesma e sobre seu passado, Violette, a quem Gretel evita revelar seu segredo, Violette iniciará o sétimo ano em pé, logo após essa terrível descoberta...E é isso que Gretel, feliz, anuncia, enfim, à sua psicanalista, certa de ter libertado sua neta. 
(...)
E Sylviane Giampino jamais se esquecerá o sorriso de Gretel em sua última sessão. No cafarnaum de objetos alegres que enfeitam sua sala de espera, existe, em cima de uma prateleira, o presente que sua paciente lhe ofereceu, ao dizer adeus: dois homenzinhos em papel machê" - (pp. 85-90).

(In. Seu paciente favorito - 17 histórias extraordinárias de psicanalistas. São Paulo: Perspectiva, 2020).

Mais sobre o livro:
 

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Em 1920 Freud se posicionou a respeito do aborto:



Em 25 de Janeiro de 1920 Sophie Freud, de 26 anos, morreu em um hospital de Hamburgo, onde se suspeita que ela ingressou por conta de um aborto mal praticado.
Em 15 de fevereiro do mesmo ano Sigmund Freud enviou uma carta a Arthur Lippman, médico que atendera a Sophie:
*
"Estimado colega.
Le agradezco enormemente su detallado informe de la enfermedad. Por certo, jamás dudé de que usted y el resto de los médicos omitieram nada que hubiese podido contribuir a la recuperación o a mejória de mi hija. Los detalles que me brinda satisfacenenteramente el imperativo médico de lo forzoso e inevitable,es evidente que el caso estaba perdido desde el comienzo.
Lo que me resultó novedoso fue el dato de que el embarazohubiera modificadoa tal punto su estado físico y mental em um sentido desfavorable. Es probable que ya no se pueda evaluar em que medida su falta de resistência a la infección pudo deberse al desmejoramiento de su estado.
Pero el infeliz destino corrido por mi hija me parece albergar em outro aspecto uma advertência que nuestro grêmio no suele tomar muy em serio. En vista de uma ley necia e inhumana que obliga a continuar com el embarazo aun a mujeres que no lo desean, se torna evidente que el médico tiene el deber de indicar los médios adecuados e inócuos para prevenir embarazos (matrimoniales) no deseados.
Mi hija habló conmigo de este tema la última vez que estuve com ella el 19 de sept, ya que ambos jóvenes sufrían intensamente las limitaciones que se habían impuesto. No pude más que indicarle que acudiera al ginecólogo para obtener um pesario oclusivo intrauterino. Pero es evidente que algo salió mal. Espero que estas experiências sirvanpara que los ginecólogos reconozcan cada vez com mayor claridade la imporancia de la tarea que les compete.
Le agradezco sinceramente, estimado colega, las moléstias y sus condolências.
Su fiel
Freud".
(In. Freud. Cartas a sus hijos. Buenos Aires: Paidós, 2012, pp.605-606).


Saiba mais:




sexta-feira, 25 de maio de 2018

Lacan, o libertador da Psicanálise - por Foucault


Lacan. il `libertatore’ della psicanalisi" ["Lacan, o `libertador da psicanálise"; entrevista com J.Nobécourt; trad. A. Ghizzardi), Correre della sera vol. 106. n°212, 11 de setembro de 1981, p. 1.

     - Tem-se o hábito de dizer que Lacan foi o protagonista de uma "revolução da psicanálise". O senhor acha que esta definição de "revolucionário" é exata e aceitável?
     -Acho que Lacan teria recusado este termo de "revolucionário" e a própria idéia de uma "revolução em psicanálise". Ele queria apenas ser "psicanalista". Isso supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado da psicologia. Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito. Por isso é que, apesar de uma aparéncia de discurso extremamente especulativo, seu pensamento não é estranho a todos os esforços que foram feitos para recolocar em questão as práticas da medicina mental.

- Se Lacan, como o senhor disse, não foi um "revolucionário", é certo, contudo, que suas obras tiveram uma grande influência sobre a cultura dos últimos decênios. O que mudou depois de Lacan, também, no modo de "fazer" cultura? 
     - O que mudou? Se remonto aos anos 50, na época em que o estudante que eu era lia as obras de Lévi-Strauss e os primeiros textos de Lacan, parece-me que a novidade era a seguinte: nós descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam sobre uma concepção muito tradicional do sujeito humano, e que não bastava dizer, ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre e, ora com outros, que o sujeito era determinado por condições sociais. Nós descobríamos que era preciso procurar libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente simples do pronome "eu" (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que é tão difícil falar, e sem a qual não podemos falar.
     - Lacan teve muitos adversários. Ele foi acusado de hermetismo e de "terrorismo intelectual.". O que o senhor pensa sobre essas acusações? 
     - Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus textos não fosse simplesmente uma "tomada de consciência" de suas idéias. Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo. Quanto ao "terrorismo", observarei apenas uma coisa: Lacan não exercia nenhum poder institucional. Os que o escutavam queriam exatamente escutá-lo. Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos.

(In. Foucault. Ditos e escritos - vol.1 - Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.Rio de Janeiro: Forense Universitária,2006, 329-330p.).



segunda-feira, 23 de abril de 2018

Lacan & Foucault - Liberdade de expressão

"Além das conjunções de ordens estritamente teórica e institucional, na passagem dos anos 60 para os anos 70, Lacan e Foucault se aproximaram também no plano político. A questão que os reuniu foi a primeira mobilização de jornalistas franceses na defesa da liberdade de expressão.
Assim, o que estaria em pauta foi o que ficou conhecido como o "affaire Jaubert". Jaubert era o nome do jornalista da revista semanal Le Nouvel Observateur que foi agredido pela polícia parisiense no contexto de uma manifestação dos Atilheses, em Paris, na primavera de 1971. Com efeito, Jaubert foi violentamente agredido por policiais quando prestava os primeiros socorros a uma pessoa ferida na manifestação. O Ministério do Interior, além disso, indiciou então Jaubert, por ter supostamente agredido e insultado policiais, na tentativa de justificar o injustificável, qual seja, a agressão realizada pelos policiais contra o jornalista.
Em reação a isso foi então organizada uma comissão para investigar o que tinha de fato tinha acontecido, pois se desconfiava fortemente da versão da polícia. Esta comissão era formada por advogados, intelectuais e jornalistas e diferentes órgãos da imprensa, com colaborações políticas e editoriais diferentes, como Le Fígaro, Le Monde e Le Nouvel Observateur. O que estava em pauta efetivamente era a defesa ostensiva da liberdade de expressão pela comissão que se organizou para avaliar os acontecimentos, que o preocupante episódio em questão evidenciava.
Uma grande conferência de imprensa foi então realizada em 21 de junho de 1971, com a presença de Claude Mauriac, Denis Langlois, o advogado da Liga dos Direitos do Homem, assim como de Gilles Deleuze e de Michel Foucault. A primeira reunião deste grupo se realizara há poucas semanas, no consultório de Lacan, contando assim com a participação deste.
A consequência disso foi a constituição de outra comissão de inquérito que comprovou que a polícia mentira sobre o que se passara efetivamente, para tentar justificar de fato o injustificável, qual seja, a agressão ao jornalista como vingança da polícia para quem ajudasse os manifestantes a se defenderem da violência policial. Enfim, a liberdade de expressão e de manifestação foi então mantida, não obstante as posições não-republicanas da polícia e do Ministério do Interior em relação ao acontecimento.


(In. Lacan e Foucault -conjunções, disjunções e impasses. Joel Birman e Christian Hoffmann. São Paulo: Instituto Langage, 2017, pp. 130-131).

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Correspondência entre Lou Andreas-Salomé e Rainer Maria Rilke para download


"Esta coisa mais real, a qual você escreveu que gostaria de se agarrar quando suas angústias interiores o esvaziam de qualquer sensação e parecem entregá-lo ao desconhecido - essa única coisa real, você já a tem em si, escondida como uma semente, e é por isso que você não se deu conta ainda. Você a possui porque se tornou um arpento de terra onde tudo o que cai, mesmo os menores fragmentos, os pores fracassos, torpeza e detritos, deve sofrer uma elaboração unificadora que constituirá o elemento dessa semente. Portanto, pouco importa que isso se apresente primeiro como um monte de sujeira derramado sobre sua alma: tudo se transformará em terra, em você. Você nunca esteve tão perto da saúde quanto hoje" ( Lou Andreas Salomé para Rilke em 1/8/1903).


Link para download da correspondência entre Lou & Rilke:

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Fotos de Lou com Rilke:


1897

1900

1897

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domingo, 28 de janeiro de 2018

Lou Andreas Salomé fala de Nietzsche

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

"Sem dúvida, um primeiro encontro com Nietzsche nada oferecia de revelador ao observador superficial. Esse homem de estatura mediana, de traços calmos e cabelos castanhos penteados para trás, vestido de maneira modesta apesar de extremamente bem cuidada, podia facilmente passar despercebido. Os traços finos e maravilhosamente expressivos de sua boca eram quase cobertos por completo pelo emaranhado de um espesso bigode pendente. Ele tinha um riso suave, uma maneira de falar sem barulho, um andar prudente e circunspecto que o fazia curvar ligeiramente os ombros. Era difícil imaginar essa silhueta no meio de uma multidão: ela tinha a marca que distingue aqueles que vivem sós e em movimento. O olhar, em contrapartida, era irresistivelmente atraído pelas mãos de Nietzsche, incomparavelmente belas e finas, que ele mesmo acreditava traírem seu gênio. (...) Seus olhos também o revelavam. Apesar de quase cegos, não tinham o olhar vacilante e involuntariamente perscrutador que caracteriza vários míopes. Antes pareciam guardiões protegendo seus próprios tesouros, defendendo segredos mudos sobre os quais nenhum olhar indesejável poderia chegar. Sua visão defeituosa conferia a seus traços um charme mágico sem igual; pois, ao invés de refletir as sensações fugidias provocadas elo turbilhão dos acontecimentos externos, eles reproduziam apenas o que vinha do interior dele mesmo. Seu olhar estava voltado para dentro, mas ao mesmo tempo - para além dos objetos familiares - ele parecia explorar o longínquo - ou, mais exatamente, explorar o que estava dentro dele como se estivesse longe".

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

(In. Dorian Astor. Lou Andreas Salomé. Porto Alegre: LPM, 2015, p. 65).

A diferença invisível - Mademoiselle Caroline & Julie Dachez


"Você que é um dedo do meio à imposição da "normalidade".
Não há nada a curar em vocês, nada a mudar. Seu papel não é se encaixar em um molde, mas sim ajudar os outros - todos os outros - a sair dos moldes em que estão presos. Você não está aqui para seguir um caminho predefinido, mas, ao contrário, para seguir o seu próprio caminho e convidar aqueles ao seu redor a pensar fora da caixa.
Ao abraçar sua verdadeira identidade, aceitando sua singularidade, você se torna um exemplo a ser seguido. Você tem o poder de romper essa camisa de força normativa que sufoca a todos nós e nos impede de viver juntos com respeito e tolerância.
Sua diferença não é parte do problema, mas da solução.
É um remédio para a nossa sociedade, doente de normalidade".

(HQ - trecho da dedicatória - São Paulo: Nemo, 2017).


Vídeo sobre a HQ: 



domingo, 29 de outubro de 2017

A vida com Lacan - Catherine Millot

"Houve um tempo em que eu tinha a sensação de ter aprendido o ser de Lacan em sua essência. De ter uma espécie de intuição de sua relação com o mundo, um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas, e também com ele próprio. Era como se eu houvesse deslizado para dentro dele.
Essa sensação de apreender sua essência ia de par com a impressão de estar compreendida, no sentido de estar integralmente incluída nessa sua compreensão, cuja extensão me ultrapassava. Seu espírito - sua amplitude, sua profundidade -, seu espírito mental, englobava o meu como uma esfera que contivesse outra menor (...). Não ter nada a dissimular, nenhum mistério a preservar, dava-me uma total liberdade com ele, mas não só. Uma parte essencial de meu ser lhe era entregue, ele tinha sua guarda, eu me sentia aliviada. Vivi a seu lado anos a fio nessa leveza.
Um dia, contudo, ele manipulando as rodelas de barbante que ele tanto gostava de modelar e, de repente, me disse: "está vendo, isso é você". Eu era - como qualquer um, não importa quem - aquele real que escapava ao seu controle, que tanto mal lhe fazia. Vi-me bruscamente compelida a levar em conta o que em mim lhe resistia como só o real resiste.
Quando digo "seu ser", o que entendo por isso? Sua particularidade, sua singularidade, o que nele era irredutível, seu peso de real. Quando hoje tento apreender novamente esse ser, é seu poder de concentração que retorna, sua concentração quase permanente em um objeto de pensamento que ele nunca abandonava. Com o tempo, ele se simplificara ao extremo. De certa maneira, não era nada além disso, essa concentração no estado puro. Ela se confundia com seu desejo, o qual se tornava tangível.
Eu a encontrava em sua maneira de andar, projetado para a rente, a cabeça primeiro, como se carregado por seu peso, recuperando o equilíbrio no passo seguinte. Nessa própria instabilidade, contudo, via-se determinação, ele não se afastava uma polegada de seu caminho, ia até o fim, sempre em linha reta, indiferente aos obstáculos, que ele parecia ignorar e que, de todo modo, não lhe inspiravam qualquer consideração. Gostava de lembrar que era do signo de Capricórnio" (p.5-7).
*
"O real é aquilo contra o qual nada podemos, com o que nos chocamos, é o intransponível, o impossível de contornar, de negociar. Para ele, tanto na vida como numa análise, tratava-se de alcança-lo, esse indestrutível núcleo d realidade, e tudo o que o isola, o mantém à distância ou máscara pertence à esfera da frivolidade" - (p.12).
*
"Lacan tinha grande apreço pela Roma católica. A tal ponto que fomos visitar um cardeal amigo seu, com quem deixara um exemplar dos Escritos para que entregasse ao papa" - (p.17).
*
"Nos primeiros tempos, Lacan, implicante, me dizia que as mulheres assemelhavam-se sempre a algum flagelo. Eu e meu gênero éramos uma inundação. In petto, eu ruminava que ele não erguia nenhum dique contra o pacífico dessa invasão" - (p.26).
*
"O real é quando "os pinos não entram nos buraquinhos", ele gostava de dizer. Lacam exprimia frequentemente essa cólera no cotidiano, que fornecia diversos ensejos para al. Então ele nada tinha de teatral e geralmente não se dirigia a ninguém a não ser, digamos, à má vontade do real. Esperar fazia-o quicar de impaciência, fosse num sinal vermelho ou numa passagem de nível. Se demorassem a servi-lo num restaurante, ele reagia imediatamente soltando um grito estridente ou um suspiro semelhante a um grito. E se voltasse ao local, a presteza estava garantida" - (p.35-36).
*
"Quando não fazia um monte de perguntas a respeito de um assunto que o intrigava, preferia ficar calado. Saindo de seu silêncio, intervinha com uma tirada brusca, não raro desconcertante: "Quando um homem não é mais um homem, sua mulher o esmaga", lançara subitamente. "Esmaga mesmo?", eu repeti, pasma. Sollers, por sua vez, entendera uma coisa completamente diferente: "Quando uma mulher não é mas uma mulher, ela esmaga seu homem" - (p.42).
*
"Um dia, quando eu lhe falava do que vivenciava com o desconforto de ser mulher, ele me disse: "Você não é a única, isso não a torna menos sozinha". Ele não deixava sua plateia se iludir com uma esperança sobre o futuro terapêutico de seus doentes. Na discussão que se seguia à apresentação, depois que o doente saía, não hesitava em afirmar a respeito de um ou outro que ele estava "fodido". Às vezes, aliás, dizia-o ao próprio paciente, o que espantosamente tinha o efeito de aliviá-lo" - (p. 52).

(A vida com Lacan  - Rio de Janeiro: Zahar, 2017).

Sobre o livro:

Catherine Millot no Brasil:

quinta-feira, 9 de março de 2017

Em busca do real perdido - Alain Badiou

"E então lamento ter de dizer aqui que o semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a palavra "democracia" é uma palavra admirável, e será preciso retomá-la e redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora da morte de Molière - que o capitalismo é esse mundo que está sempre representando uma peça cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem representada, é a melhor peça de que o capitalismo é capaz. Os espectadores e os participantes em geral aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é que é um rito para o qual são convocados e ao qual se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a democracia imaginária que é representada e, por baixo, o processo mundializado do capitalismo e da pilhagem imperial que prossegue, com seu real impalpável, cuja descrição não serve para nada. Enquanto essa peça durar e um vasto público continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou seja, a capacidade de dividi-lo, de obriga-lo a uma cisão de si mês que seja ativa e que prometa sua dissipação, sua destruição, permanecerá politicamente inacessível. Porque se essa peça é a peça do semblante democrático, se ela é a máscara que fornece ao capitalismo imperial a cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, nenhuma possibilidade de arrancar essa máscara, de interromper essa peça de teatro, está na ordem do dia, então alguma coisa  permanece politicamente inacessível para qualquer empreendimento político de acesso ao real nu".
 
(In. Alain Badiou. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica: 2017, pp. 25-26). 


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ferrante com Freud - A amiga genial

 
"Em 31 de dezembro de 1959 Lila teve seu primeiro episódio desmarginação. O termo não é meu, ela sempre o utilizou forçando o sentido comum da palavra. Dizia que, naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas. Quando naquela noite, em cima do terraço onde estávamos festejando a chegada de 1960, ela foi tomada bruscamente por uma sensação daquele tipo, assustou-se e manteve a coisa para si, ainda incapaz de nomeá-la. Somente anos depois, numa tarde de novembro de 1980 - ambas já estávamos com trinta e cinco anos, casadas, com filhos -, ela me contou minunciosamente o que lhe acontecera naquela circunstância, e o que ainda lhe acontecia, recorrendo pela primeira vez a essa palavra.
Estávamos ao ar livre, no topo de um dos prédios do bairro. Embora fizesse muito frio, usávamos roupas leves e soltas para parecermos bonitas. Observávamos os homens, que estavam alegres, agressivos, figuras negras arrebatadas pela festa, pela comida, pelo espumante. Acendíamos o pavio dos fogos de artifício para festejar o Ano Novo, ritual para cuja realização Lila, como contarei adiante, tinha colaborado muitíssimo, tanto que agora se sentia contente e olhava os rastros de fogo no céu. Mas subitamente - me disse -, apesar do frio, começara a cobrir-se de suor. Tivera a impressão de que todos gritavam demais e se moviam em grande velocidade. Essa sensação fora acompanhada de uma náusea, e ela teve a sensação deque algo absolutamente material, presente em torno de todos e de tudo desde sempre, mas sem que conseguisse percebê-lo, estivesse destruindo o contorno das pessoas e das coisas, revelando-se.
O coração se pusera a bater descontroladamente. Começara a sentir horror pelos gritos que saíam das gargantas de todos os que se moviam pelo terraço entre a fumaça e as explosões, como se sua sonoridade obedecesse a leis novas e desconhecidas. A náusea aumentara, o dialeto perdera toda familiaridade, tornara-se insuportável o modo como nossas gargantas úmidas molhavam as palavras no líquido da saliva. Um sentido de repulsa atingira todos os corpos em movimento, sua estrutura óssea, o frenesi que os sacudia. Como somos malformados, pensara, como somos insuficientes. Os ombros largos, os braços, as pernas, as orelhas, os narizes, os olhos lhe pareceram atributos de seres monstruosos, descidos de algum recesso do céu negro. E a repulsa, quem sabe por que, se concentrara sobretudo no corpo de seu irmão Rino, a pessoa que lhe era a mais familiar, a pessoa que mais amava.
(...).
Na ocasião em que me fez esse relato, Lila também disse que o que chamava de desmarginação, mesmo tendo ocorrido de modo claro apenas naquela oportunidade, não era inteiramente novo para ela. Por exemplo, já tinha experimentado muitas vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de Ano Novo lhe ocorrera pela primeira vez de perceber entidades desconhecidas, que destruíam o perfil costumeiro do mundo e mostravam sua natureza assustadora. Aquilo a transtornara".
(In. A amiga genial - série napolitana, v. 1 - Elena Ferrante. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2015,  p. 61).
 
 
Unheimilich = “relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror. Também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante (...); a condição essencial para que surja o sentimento do inquietante é a incerteza intelectual (...), seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer (...); o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e a do que é estranho, mantido oculto (...) Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” .
(Freud. O inquietante. In. Obras completas, v. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 329-338). 
*
Unheimlich é o que aparece quando algo toma o lugar da inscrição da castração: “quando aparece algo ali, portanto, é porque, se assim posso me expressar, a falta vem a faltar”.
 (Lacan. O Seminário, livro X - A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 52).


quinta-feira, 30 de junho de 2016

A outra cena.... por Amos Oz

 
Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: "O Levante é cheio de micróbios".
(...) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer.
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho.
De fato, teve um infarto.
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, "O Levante é cheio de micróbios", aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios.
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (...). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou - nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios"
 
(De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 45-48).


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Um elogio ao desamparo - fragmento do livro "Circuito dos afetos" de Safatle

 
"Poderíamos recuperar a beatitude, como um dia falou Spinoza, poderíamos falar do contentamento, tal como um dia falou Kant, ou mesmo tentar recuperar a felicidade, como atualmente faz Badiou, mas essas seriam formas de ignorar que, para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual. Há uma compreensão da inevitabilidade do impossível, do colapso do nosso sistema de possíveis que faz de um indivíduo um sujeito.
Nesse sentido, há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. Talvez fosse mais correto chamar tal demanda de cuidado pelo Outro de "frustração". Mas há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício da liberdade. Uma liberdade que consiste na não sujeição ao Outro, em uma, como bem disse uma vez Derrida, "heteronomia sem sujeição". Uma não sujeição que não é criação de ilusões autárquicas de autonomia, mas capacidade de se relacionar àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar do Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa da minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. O que talvez seja o sentido mas profundo de uma heteronomia sem servidão. O que também não poderia ser diferente, já que amar alguém é amar suas linhas de fuga".
 
(In. Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 39-40).

domingo, 20 de setembro de 2015

Freud - da Arte à Neurose



 
"As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranoico, de um sistema filosófico. A diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo.
Na análise instintual das neuroses percebemos que nelas a influência determinante é a das forças instintuais de origem sexual, enquanto as formações culturais correspondentes baseiam-se em instintos sociais, aqueles oriundos da junção de elementos egoístas e eróticos. Pois a necessidade sexual não é capaz de unir os homens da mesma forma que as exigências da autopreservação; a satisfação sexual é, antes de tudo, assunto particular do indivíduo.
Do ponto de vista genético (de gênese), a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo da fantasia. O mundo real, evitado pelo neurótico, é governado pela sociedade dos homens e pelas instituições que eles criaram conjuntamente; dar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade humana".
 
(Sigmund Freud. Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp.119-120).
 
 


sábado, 15 de agosto de 2015

Sobre a visita de Lacan a Jung

 
 
...enquanto Freud identificava-se com Aníbal para associar sua descoberta a um princípio de resistência, Lacan ia bem mais longe: queria fazer dessa descoberta o paradigma de todas as formas possíveis de rebelião humana. Sob esse aspecto, inscrevia sua trajetória na tradição da exceção francesa. A França, sabemos, é o único país do mundo onde foi afi...rmada com força a ideia de que Freud realizara uma revolução no sentido pleno da palavra: teórica, política e ideológica. A origem dessa exceção remonta, em primeiro lugar, à revolução de 1789, que deu uma legitimidade científica e jurídica ao olhar da razão sobre a loucura, fazendo nascer a instituição do hospício, e, depois, ao caso Dreyfus, que tornou possível a instauração de uma consciência de si da classe intelectual. Ao designar-se como vanguarda, esta pôde apoderar-se das ideias mais inovadoras e fazê-las frutificar.
(...) Para firmar essa hipótese de uma natureza subversiva do freudismo, de que ele era o herdeiro por seu convívio com os surrealistas, com Bataille e a obra nietzschiana, Lacan havia buscado fazer remontar a origem dela ao próprio Freud. Mas, como dar a prova de tal afirmação quando ela não se encontrava em nenhum lugar? Lacan resolvera esse delicado problema ao visitar Carl Gustav Jung por volta de 1954.
O mais célebre dissidente da saga freudiana estava então com 79 anos. Em sua esplêndida casa de Kusnacht, às margens do lago de Zurique, distribuía atenções, conselhos e erudição, qual um sábio velho oriental, aos numerosos visitantes vindos dos quatro cantos do mundo para encontrá-lo. Consciente da dificuldade de chegar até ele, Lacan havia pedido a seu colega Roland Cohen que interviesse a seu favor. Psiquiatra e germanista, este conhecera Jung em 1936, tornara-se seu discípulo e depois realizara a primeira tradução francesa de suas obras. Frequentando Nacht, Lacan, Ey e Lagache no hospital Saint-Anne depois da guerra, ele havia tentado em vão convencê-los a levar em conta o ensinamento junguiano em seus trabalhos. Quando Lacan pediu-lhe uma carta de recomendação para Jung, Cahen acreditou numa confrontação possível entre duas doutrinas: "Escuta, meu velho, entre teus significados e nossos arquétipos, somos primos-irmãos". Lacan opôs uma recusa categórica: "Jamais", respondeu, "mas desejo ver Jung porque estou certo de que ele tem lembranças a contar sobre Freud e quero publicá-las".
Nessa data, Jung ainda não havia empreendido a redação de suas Memórias, sua correspondência com Freud não fora publicada e nenhum trabalho biográfico a respeito dele estava em andamento. Para compreender a história das origens e dos começos da Psicanálise, dispunha-se apenas da hagiografia freudiana. Ora, Jung sempre aparecia aí como uma personagem negativa e infiel ante a sacrossanta figura do mestre vienense, apresentado como um herói sem temor e sem pecha. A ideia de Lacan de fazer Jung testemunhar sobre suas relações com Freud era portanto excelente. O encontro realizou-se, mas Roland Cahen lamentou o que se passara, e Jung guardou da conversa apenas uma lembrança fugaz.
Se Lacan não quis dizer nada a seu colega, é que reservava sua informação a outros ouvintes. Em 7 de novembro de 1955, em sua conferência sobre a "coisa" freudiana pronunciada em alemão em Viena, mencionou pela primeira vez a visita a Kusnacht: "É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o universo: ´Eles não sabem que lhe trazemos a peste´, lhe é devolvido como uma sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho".
Ao comentar esse dito, Lacan sublinhava que Freud havia se enganado: acreditara que a Psicanálise seria uma revolução para a América, e foi a América que devorou sua doutrina ao retirar-lhe seu espírito de subversão. Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas para Lacan esse preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão a peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregaram a palavra. Quanto a historiadores do freudismo, de Ernest Jones a Max Schur passando por Henri Ellenberger, Vincent Brome, Clarence Oberdorf, Paul Roazen, Nathan G. Hale e Peter Gay, eles observam que Freud disse apenas: "Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer".
Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão da "peste freudiana" chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e renovador.

 (In. Elisabeth Roudinesco. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 359-362).


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A carta de Joyce & a resposta de Nora


29 de agosto de 1904.
"Minha querida Nora Acabei de fazer a refeição da noite mas não tinha o menor apetite. Quando estava no meio descobri que comia com os dedos. Me senti mal ontem à noite. Estou muito angustiado. Perdoa esta pena horrível e este papel medonho.
Devo ter-lhe atormentado esta noite com o que disse mas certamente é bom que você conheça a minha opinião sobre a maioria das coisas. Minha consciência rejeita toda a ordem social atual e o cristianismo - lar, as virtudes reconhecidas, classes sociais e doutrinas religiosas. Como posso gostar da ideia de lar? Meu lar foi simplesmente um de classe média arruinado por hábitos pródigos os quais herdei. Minha mãe foi morta lentamente, penso, pelo péssimo tratamento do meu pai, por anos de dificuldades e pela cínica franqueza da minha conduta. Quando olhei para o seu rosto no caixão - um rosto cinza e consumido pelo câncer - percebi que olhava para o rosto de uma vítima e amaldiçoei o sistema que fizera dela uma vítima. Nós éramos uma família de dezessete. Meus irmãos e minhas irmãs não são nada para mim. Só um irmão é capaz de me entender.
Abandonei a igreja católica há seis anos, odiando-a profundamente. Descobri que me era impossível permanecer em seu seio devido aos impulsos da minha natureza. Quando era estudante travei uma guerra secreta contra ela e recusei aceitar as posições que me oferecia. Ao fazer isso eu me tornei um mendigo, mas mantive o meu orgulho. Agora travo uma guerra aberta contra ela por meio do que escrevo, digo e faço. Não posso fazer parte da ordem social senão como um vagabundo. Comecei a estudar medicina três vezes, direito uma vez. Há uma semana planejava ir embora como ator ambulante. Não consegui por nenhuma energia nesse projeto porque você não parava de me puxar pelo braço. As dificuldades atuais da minha vida são inacreditáveis mas eu as desprezo.
Assim que você se recolheu esta noite eu caminhei até a rua Grafton onde fiquei fumando por muito tempo, recostado a um poste. A rua estava cheia de animação na qual verti um jorro da minha juventude. Enquanto permanecia ali recordei certas frases que escrevi há alguns anos quando morava em Paris - essas frases são - "Passam em dois ou três em meio à animação do boulevard, caminhando como pessoas desocupadas num lugar iluminado para elas. Estão numa confeitaria, tagarelando, triturando os edificiozinhos de massa folhada ou sentadas silenciosamente às mesas perto da porta do café, ou descendo de carruagens com a viva agitação de trajes suaves como a voz do adúltero. Passam num ar perfumado. Sob os perfumes seus corpos têm um cheiro quente e úmido".
Enquanto repetia isso para mim mesmo me dei conta de que essa vida ainda me esperava caso eu decidisse entrar nela. Talvez ela não me embriagasse como fez um dia mas ainda estava lá e agora que sou mais sábio e mais disciplinado ela era segura. Não faria perguntas, não esperaria nada de mim exceto alguns momentos da minha vida, deixando o resto livre, e me prometeria em troca o prazer. Pensei nisso tudo e o rejeitei sem arrependimento. Era inútil para mim; não poderia dar-lhe o que eu queria.
Acho que você não entendeu bem algumas passagens de uma carta que te escrevi e notei certa reserva no teu comportamento como se a lembrança daquela noite te perturbasse. No entanto, eu a considero um tipo de sacramento e sua lembrança me enche de assombrosa alegria. Você talvez não compreenda imediatamente por que é que eu te venero tanto por isso, pois não conhece bem as minhas opiniões. Mas ao mesmo tempo foi um sacramento que me deixou uma sensação final de tristeza porque vi em você uma extraordinária ternura melancólica que havia escolhido esse sacramento como um compromisso, e aviltamento porque compreendi que a seus olhos eu era inferior a uma convenção da nossa sociedade atual.
Falei sarcasticamente esta noite mas falava do mundo e não de você. Sou inimigo da baixeza e da escravização de pessoas mas não de você. Você não consegue ver a simplicidade que está por trás de todos os meus disfarces? Todos nós usamos máscaras. Certas pessoas que sabem que estamos unidos frequentemente me insultam falando de você. Eu os escuto calmamente, desdenhando lhes responder mas a menor palavra deles faz meu coração soçobrar como um pássaro na tempestade.
Não me é agradável ter que ir agora para a cama com a lembrança da última expressão do teu olhar - um olhar de indiferença cansada - a lembrança da tortura na sua voz na outra noite. Penso que nunca um ser humano esteve tão próximo da minha alma como você, e contudo você pode tratar minhas palavras com uma rudeza penosa ("Agora sei o que é falação", você diz). Quando eu era mais novo tive um amigo com quem ficava à vontade - às vezes mais, às vezes menos do que fico com você. Ele era irlandês, quer dizer, ele me traiu.
Não disse nem a metade do que queria dizer mas é muito trabalhoso escrever com esta maldita pena. Não sei o que você vai achar desta carta. Por favor me escreva, está bem? Minha querida Nora, eu te respeito muito, creia-me, mas quero mais do que as tuas carícias. Você me deixou com uma dúvida angustiante".
JAJ - (p. 37-9).


12 de setembro de 1904
"Espero que não tenha ficado molhado se você estava hoje na cidade ficarei aguardando para te ver às 8:15 a manhã à noite esperando que vá ser ótimo eu me sinto muito melhor desde a noite passada mas sente (sic) um pouco solitária hoje à noite pois está tão úmido eu fiquei lendo as tuas cartas o dia inteiro pois não tinha mais o que fazer eu li aquela carta longa várias vezes mas não pude entender vou te levar amnhã à noite - e talvez você poderia me fazer entender
nada mais no momento da tua garota carinhosa
Nora
desculpe escrever com pressa
Suponho que soltará fogos quando receber isso" -  (p. 137).
(*os erros de grafia foram preservados tais como nas cartas)
(In. Cartas a Nora. James Joyce. São Paulo: Iluminuras, 2013).