O quadro "A origem do mundo" foi pintado pelo francês Gustav Courbet em 1866; trata-se de um óleo sobre tela de 46x55 cm, realizado à pedido do diplomata turco otomano Khalil Bey, colecionador de imagens eróticas, que solicitou ao pintor que retratasse o nu feminino da forma mais crua que fosse possível.
Entre a origem do quadro e seus últimos proprietários, a família Lacan, há uma série de controvérsias sobre a trajetória que o quadro seguiu.
Na versão histórica mais corrente, o que se diz é que o diplomata Khalil, arruinado no jogo, tivera que vender toda a sua coleção, e que "A origem do mundo" fora junto, permanecendo escondida atrás de outro quadro de Courbet.
O dono seguinte do quadro teria sido Emile Vial, um cientista e colecionador de arte japonesa, no início do século XX.
Entre 1910 e 1913, um aristocrata e colecionador de arte húngaro, chamado François de Hatvany, adquiriu o quadro e levou para Budapeste; com a Segunda Guerra Mundial, parte de sua coleção foi roubada pelo Exército Vermelho, incluindo o polêmico quadro; quando o conflito se resolveu, o aristocrata conseguiu recuperá-lo.
A obra foi então adquirida em leilão por Sylvia Lacan, esposa do famoso psicanalista, e foi colocada na casa de campo do casal, onde era coberta por um suporte de madeira com uma pintura feita por André Masson, e somente era revelada a visitantes privilegiados; a maioria dos que se deparavam com ela ficavam horrorizados, e o procedimento foi feito para evitar maiores constrangimentos.
Esta era a pintura de Masson que encobria o quadro; parece querer retratar uma floresta no estilo oriental, mas os olhos mais atentos logo perceberão de que se trata apenas de uma releitura da obra de Courbet:
Os críticos de arte costumam dizer que o quadro de Courbet ultrapassa o realismo fotográfico; um fato curioso que reforça tal pontuação é que já se tentou reproduzir a pintura em imagem; solicitou-se que toda sorte de mulheres, de damas a prostitutas, se posicionassem da mesma forma e deixassem fotografar-se, mas o efeito conseguido nunca foi o mesmo, pois nas fotos, sempre insistia um certo ar vulgarizador, um convite ao deleite sexual, o que não acontece na pintura, que cada espectador percebe de uma forma diferente, ainda que quase sempre com horror.
Após a morte de Sylvia, no início dos anos 90, a tela foi doada ao Museu d´Orsay, em Paris, para por fim a uma querela pela disputa da herança entre os herdeiros da família Lacan; atualmente, é a segunda obra mais vista no museu, a julgar pelo tanto de repoduções e postais que são vendidos dela, ficando atrás apenas de um quadro de Renoir, "Le Moulin de la Gallette".
Resta o questionamento: por que o quadro invoca horror? Seria pela sensualidade? Creio que não, pois o sexo da mulher fora retratado de forma crua, como o primeiro dono do quadro desejava. Talvez o horror seja invocado pela pintura invocar o que no homem é vivido como ameaça, e na mulher como constatação: a castração, aquilo que está para sempre perdido, o gozo pleno, impossível. Não por acaso percebo que sempre são as ditas "mulheres fálicas" e os "homens que se dizem mais poderosos, completos e viris" os que mais se horrorizam ao contemplar o quadro; estaria este em verdade denunciando a falácia de quem se acredita um sujeito completo?
Para melhor compreender os questionamentos acerca da sexualidade que o quadro invoca, e a necessidade do feminino estar coberto por um véu, uma excelente leitura é o artigo de Maria Cristina Poli, disponível na Revista Ágora de Psicanálise:
Uma leitura do que a arte traz do Real, especialmente o quadro de Courbet, também pode ser conferida no livro no livro "As partes da maçã: visões prismáticas do real", de Maria Antonieta Jordão Borba, cujo capítulo esta disponível no Google livros:
O difícil confronto com o estatuto de sujeito castrado e com a vivência da feminilidade é um tema que merece um aprofundamento bem maior que ultrapassa em muito os limites deste breve ensaio.