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domingo, 16 de abril de 2017

Bukowski - Morte & vida de um velho safado

"As 11:55 da manhã de quarta-feira, 9 de março de 1994, Bukowski morreu. Estava com setenta e três anos.
(...)
A ligação entre \mariana e o pai havia sido extremamente íntima. "Eu sempre soube que, se alguma coisa desse errado, tudo que eu tinha a fazer era pedir ajuda e ele dava um jeito", diz ela. "Mesmo sendo uma pessoa adulta, que tinha se virado por muitos anos, e me virado bem, notei que, além de sentir a falta dele depois que morreu, também sentia falta da segurança que tinha lá no fundo, sabendo que tudo estava sempre BEM, mas que, se não estivesse, podia chama-lo e, de algum modo, ele fatia com que tudo ficasse bem".
Embora Bukowski garantisse ser um solitário, alguém que não precisava ou não queria amigos íntimos, havia uma quantidade de homens e mulheres para quem sua morte foi uma grande perda.
(...)
Os obituários do jornal destacaram a imagem da vida desregrada de Bukowski. Ele era o "bardo do mar", um escritor simples que inexplicavelmente tinha um culto de seguidores. Com exceção de ocasionais boas críticas de seus romances e da atenção dispensadas a Barfly, a mídia de massa sempre o tratara com desprezo.
Contudo, Bukowski é único na literatura americana moderna, inclassificável e muito imitado. Seu estilo simples de prosa e poesia teve origem nas ideias comuns: ele foi influenciado, inicialmente, pela leitura de Hemingway e Fante, mas, como ele mesmo dizia, não se ria muito com Hemingway, então acrescentou humor. O dia a dia foi o tema escolhido por Bukowski, e não aventuras heroicas ou pessoas glamourosas, mas a experiência dos americanos não tão bem-sucedidos, vivendo em apartamentos baratos e tendo trabalhos degradantes. Escreveu de modo convincente sobre esse mundo, embora exagerasse e editasse sua ´própria história de vida. Também falou de relações humanas com sinceridade: a relação entre uma criança e seus pais, entre homens e mulheres.
Em função do seu gosto por escrever e pela bebida, seu desejo de sensacionalizar sua vida e de ser gratuitamente vulgar, Bukowski pôs-se em posição de ser criticado. Também publicou demais, com certeza muita poesia. Mas quando se lê seu trabalho cuidadosamente - os seis romances, as dúzias de contos, o roteiro e os inúmeros livros de poesia - vê-se uma filosofia pessoal descompromissada que é convincente, senão desafiadora: uma rejeição a regras impostas e degradantes, à autoridade e pretensão; uma aceitação do fato de que a vida humana é quase sempre desprezível e que as pessoas são frequentemente cruéis umas com as outras, mas que essa vida também pode ser bonita, sensual e engraçada".


(In. Howard Sounes. Vida e loucuras de um velho safado. São Paulo: Veneta, 2016, p. 325-328).


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Misto-quente - Bukowski (trechos)


"Meu pai não gostava de gente. Não gostava de mim.
- As crianças foram feitas para serem olhadas e não ouvidas - ele me falou" - (p. 18).
*
"- Este é o Henry Jr.?
- Sim.
- Ele só fica olhando. É tão quietinho.
- É assim que queremos que ele seja.
- As águas paradas são as que têm maior profundidade.
- Não nesse caso. A única profundidade que ele tem são os buracos nos ouvidos" - (p.24).
*
"- Você vai comer cada cenoura e cada ervilha em seu prato! - disse meu pai.
(...) Comecei a comer. Era terrível. Sentia como se os estivesse comendo, comendo as coisas em que acreditavam, aquilo que eles eram. Não mastiguei os alimentos, engoli-os apenas, como que para me livrar da obrigação (...). Quando voltei ao meu quarto, pensei: essas pessoas não são meus pais, devem ter me adotado e agora não estão satisfeitas com o que me tornei" - (.45-6).
*
"Não sabia se estava infeliz. Sentia-me miserável demais para ser infeliz" - (.73).
"Levei algumas surras do meu pai por sair com Frank, mas percebi que iria apanhar de qualquer jeito. Assim, pelo menos, eu me divertia" - (p.93).
*
"Um dia eu estava ali parado, esperando como de costume, de mal com o pessoal, mas a fim de fazer as pazes com eles, quando Gene se aproximou de mim correndo:
- Ei, Henry, venha cá!
- O que é?
- Venha de uma vez!
Gene começou a correr e fui atrás dele. Seguimos até o quintal dos Gibson. Os Gibson tinham um muro alto de tijolo ao redor de todo o pátio dos fundos.
- Veja! Ele está com o gato encurralado! Ele vai matá-lo!
Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos enm fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldoque fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.
- Cara, vocês armaram essa - eu disse.
- Não - rebateu Chuck -, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados - eu disse.
- Barney vai matar o gato - disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do bichano - disse Eddie. - Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerrado.
Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pelos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.
O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?
Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas não tinnha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.
- Chuck - eu disse -, deixe o gato ir, por favor. Chame seu cachorro.
- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato!
Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.
- Pegue ele, Barney - disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito! - gritei para ele.
- Não fale comigo desse jeito - retrucou.
- Cara, vocês armaram tudo isso aqui - eu disse.
Ouvi um leve ruído atrás de n´s e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por quê?
(...)
O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse sscapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidadeinteira. 
Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chagando à calçada. Caminhei emdireção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.
- Onde você estava? - ele eprguntou.
Não respondi.
- Já pra dentro - ele disse. - E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei para que você realmente sinta o que é infelicidade! " - (p.97-9).
*
"Precisávamos de compaixão. Nossas vidas já eram suficientemente idiotas. Alguma coisa tinha que nos salvar " - (p. 110).
*
"Que tempos penoso foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade" - (p.238).
(In. Misto-quente. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2013).

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A mulher mais linda da cidade - Charles Bukowski


Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio termo. Segundo alguns, era louca. Opinião de apáticos. Que jamais poderiam compreendê-la. Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e pouco estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções, na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão.
As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria: pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria, na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorados ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveitá-los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos — “uns frouxos”, dizia, “sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado… Tudo por fora e nada por dentro…” Quando perdia a paciência, chegava às raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental.
O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná-las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza, só servia para realçá-la.
Conheci Cass uma noite no West End Bar, Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs, fora a última a sair. Simplesmente entrou e sentou do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade — o que bem pode ter contribuído.
— Quer um drinque? — perguntei.
— Claro, por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação. Gostou da bebida e tomou varias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi-la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa, sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mais linda mulher da cidade como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei-lhe o braço pela cintura e dei-lhe um beijo.
— Me acha bonita? — perguntou.
— Lógico que acho, mas não é só isso… é mais que uma simples questão de beleza…
— As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que eu sou?
— Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror.
Ela me olhou e riu.
— E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinham assistido a cena. Ele veio até a mesa:
— Olha — disse para Cass, — se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
— Ah, vai te foder, cara!
— É melhor não dar mais bebida pra ela — aconselhou o sujeito.
— Não tem perigo — prometi.
— O nariz é meu — protestou Cass, — faço dele o que bem entendo.
— Não faz, não — retruquei, — porque isso me dói.
— Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
— Sinto, sim. Palavra.
— Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou, ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traia sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma jóia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.
Deitamos na cama e, depois que apaguei a luz, Cass perguntou:
— Quando é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
— Amanhã de manhã — respondi, — virando de costas pra ela.
No dia seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama.
Deu uma risada.                                     
— Você é o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
— Deixa pra lá — retruquei, — a gente nem precisa disso.
— Não, pára aí, agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional — os longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando… Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu-se em baixo do lençol.
— Vem de uma vez, gostosão.
Deitei na cama.
Beijava com entrega, mas sem se afobar. Passei-lhe as mãos pelo corpo todo, por entre os cabelos. Fui por cima. Era quente e apertada. Comecei a meter devagar, compassadamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos, os meus.
— Qual é o teu nome? — perguntei.
— Porra, que diferença faz? — replicou.
Ri e continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar. Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até às 2 da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava na banheira quando ela entrou com uma folhagem grande na mão — uma folha de inhame.
— Sabia que ia te encontrar no banho — disse, — por isso trouxe isto aqui pra cobrir esse teu troço aí, seu nudista.
E atirou a folha de inhame dentro da banheira.
— Como adivinhou que eu estava aqui?
— Adivinhando, ora.
Chegava quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente trepava.
Houve uma ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá-la da detenção por embriaguez ou desordem.
— Esses filhos da puta — disse ela, — só porque pagam umas biritas pensam que são donos da gente.
— Quem topa o convite já está comprando barulho.
— Imaginei que estivessem interessados em mim e não apenas no meu corpo.
— Eu estou interessado em você e também no seu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me ausentei seis meses da cidade, vagabundeei um pouco e acabei voltando. Não esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar do meu lado.
— Como é, seu sacana, pelo que vejo já voltou.
Pedi bebida para ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass jamais tinha andado com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira, espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas, mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
— Porra, ainda não desistiu de estragar sua beleza?
— Que nada, seu bobo, agora é moda.
— Pirou de vez.
— Sabe que sinto saudade — comentou.
— Não tem mais ninguém no pedaço?
— Não, só você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você, porém, é de graça.
— Tira esses grampos daí.
— Negativo. É moda.
— Estão me deixando chateado.
— Tem certeza?
— Claro que tenho, pô.
Cass tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
— Por que é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? — perguntei. — Quando vai se conformar com a idéia de ser bonita?
— Quando as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale nada e depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim, quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
— Então tá. Sorte minha, né?
— Não que você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
— Muito obrigado.
Tomamos outro drinque.
— O que anda fazendo? — perguntou.
— Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de ânimo.
— Eu também. Se fosse mulher, podia ser puta.
— Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos caras desconhecidos. Acaba enchendo.
— Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda se espantavam com Cass. Continuava linda, talvez mais do que antes.
Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era sempre assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada — da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama, Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço — grande e saliente.
— Puta que pariu, criatura — exclamei, já deitado. — Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
— Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei-a para a cama e dei-lhe um beijo na boca. Me empurrou para trás e riu.
— Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem
de transar. E eu guardo o dinheiro pra mim. É engraçadíssimo.
— Se é — retruquei, — estou quase morrendo de tanto rir… Cass, sua cretina, eu amo você… mas pára com esse negócio de querer se destruir. Você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei.
Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia-lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem.
Na manhã seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
— Levanta, cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e vem participar da festa!
Naquele dia convidei-a para ir à praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não tinha chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebida tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Por causa de tudo isso, respirava-se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduíches, batata frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante quase uma hora. Não sei por quê, mas foi melhor do que se tivessemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ao respondeu, pensativa:
— Não.
Levei-a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim-me embora. No dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fábrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair à noite, mas naquela sexta-feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram-se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
— Uma pena o que houve com sua amiga.
— Pena por quê? — estranhei.
— Desculpe. Pensei que soubesse.
— Não.
— Se suicidou. Foi enterrada ontem.
— Enterrada? — repeti.
Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua. Como poderia estar morta?
— Sim, pelas irmãs.
— Se suicidou? Pode-se saber de que modo?
— Cortou a garganta.
— Ah. Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele “não”. Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos.
Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
— Merda! Pára com isso, seu filho da puta!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.

(In. A mulher mais linda da cidade e outras histórias. Porto Alegre: LP&M, 2012, p.5-12).