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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Em 1920 Freud se posicionou a respeito do aborto:



Em 25 de Janeiro de 1920 Sophie Freud, de 26 anos, morreu em um hospital de Hamburgo, onde se suspeita que ela ingressou por conta de um aborto mal praticado.
Em 15 de fevereiro do mesmo ano Sigmund Freud enviou uma carta a Arthur Lippman, médico que atendera a Sophie:
*
"Estimado colega.
Le agradezco enormemente su detallado informe de la enfermedad. Por certo, jamás dudé de que usted y el resto de los médicos omitieram nada que hubiese podido contribuir a la recuperación o a mejória de mi hija. Los detalles que me brinda satisfacenenteramente el imperativo médico de lo forzoso e inevitable,es evidente que el caso estaba perdido desde el comienzo.
Lo que me resultó novedoso fue el dato de que el embarazohubiera modificadoa tal punto su estado físico y mental em um sentido desfavorable. Es probable que ya no se pueda evaluar em que medida su falta de resistência a la infección pudo deberse al desmejoramiento de su estado.
Pero el infeliz destino corrido por mi hija me parece albergar em outro aspecto uma advertência que nuestro grêmio no suele tomar muy em serio. En vista de uma ley necia e inhumana que obliga a continuar com el embarazo aun a mujeres que no lo desean, se torna evidente que el médico tiene el deber de indicar los médios adecuados e inócuos para prevenir embarazos (matrimoniales) no deseados.
Mi hija habló conmigo de este tema la última vez que estuve com ella el 19 de sept, ya que ambos jóvenes sufrían intensamente las limitaciones que se habían impuesto. No pude más que indicarle que acudiera al ginecólogo para obtener um pesario oclusivo intrauterino. Pero es evidente que algo salió mal. Espero que estas experiências sirvanpara que los ginecólogos reconozcan cada vez com mayor claridade la imporancia de la tarea que les compete.
Le agradezco sinceramente, estimado colega, las moléstias y sus condolências.
Su fiel
Freud".
(In. Freud. Cartas a sus hijos. Buenos Aires: Paidós, 2012, pp.605-606).


Saiba mais:




domingo, 20 de setembro de 2015

Freud - da Arte à Neurose



 
"As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranoico, de um sistema filosófico. A diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo.
Na análise instintual das neuroses percebemos que nelas a influência determinante é a das forças instintuais de origem sexual, enquanto as formações culturais correspondentes baseiam-se em instintos sociais, aqueles oriundos da junção de elementos egoístas e eróticos. Pois a necessidade sexual não é capaz de unir os homens da mesma forma que as exigências da autopreservação; a satisfação sexual é, antes de tudo, assunto particular do indivíduo.
Do ponto de vista genético (de gênese), a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo da fantasia. O mundo real, evitado pelo neurótico, é governado pela sociedade dos homens e pelas instituições que eles criaram conjuntamente; dar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade humana".
 
(Sigmund Freud. Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp.119-120).
 
 


sábado, 15 de agosto de 2015

Sobre a visita de Lacan a Jung

 
 
...enquanto Freud identificava-se com Aníbal para associar sua descoberta a um princípio de resistência, Lacan ia bem mais longe: queria fazer dessa descoberta o paradigma de todas as formas possíveis de rebelião humana. Sob esse aspecto, inscrevia sua trajetória na tradição da exceção francesa. A França, sabemos, é o único país do mundo onde foi afi...rmada com força a ideia de que Freud realizara uma revolução no sentido pleno da palavra: teórica, política e ideológica. A origem dessa exceção remonta, em primeiro lugar, à revolução de 1789, que deu uma legitimidade científica e jurídica ao olhar da razão sobre a loucura, fazendo nascer a instituição do hospício, e, depois, ao caso Dreyfus, que tornou possível a instauração de uma consciência de si da classe intelectual. Ao designar-se como vanguarda, esta pôde apoderar-se das ideias mais inovadoras e fazê-las frutificar.
(...) Para firmar essa hipótese de uma natureza subversiva do freudismo, de que ele era o herdeiro por seu convívio com os surrealistas, com Bataille e a obra nietzschiana, Lacan havia buscado fazer remontar a origem dela ao próprio Freud. Mas, como dar a prova de tal afirmação quando ela não se encontrava em nenhum lugar? Lacan resolvera esse delicado problema ao visitar Carl Gustav Jung por volta de 1954.
O mais célebre dissidente da saga freudiana estava então com 79 anos. Em sua esplêndida casa de Kusnacht, às margens do lago de Zurique, distribuía atenções, conselhos e erudição, qual um sábio velho oriental, aos numerosos visitantes vindos dos quatro cantos do mundo para encontrá-lo. Consciente da dificuldade de chegar até ele, Lacan havia pedido a seu colega Roland Cohen que interviesse a seu favor. Psiquiatra e germanista, este conhecera Jung em 1936, tornara-se seu discípulo e depois realizara a primeira tradução francesa de suas obras. Frequentando Nacht, Lacan, Ey e Lagache no hospital Saint-Anne depois da guerra, ele havia tentado em vão convencê-los a levar em conta o ensinamento junguiano em seus trabalhos. Quando Lacan pediu-lhe uma carta de recomendação para Jung, Cahen acreditou numa confrontação possível entre duas doutrinas: "Escuta, meu velho, entre teus significados e nossos arquétipos, somos primos-irmãos". Lacan opôs uma recusa categórica: "Jamais", respondeu, "mas desejo ver Jung porque estou certo de que ele tem lembranças a contar sobre Freud e quero publicá-las".
Nessa data, Jung ainda não havia empreendido a redação de suas Memórias, sua correspondência com Freud não fora publicada e nenhum trabalho biográfico a respeito dele estava em andamento. Para compreender a história das origens e dos começos da Psicanálise, dispunha-se apenas da hagiografia freudiana. Ora, Jung sempre aparecia aí como uma personagem negativa e infiel ante a sacrossanta figura do mestre vienense, apresentado como um herói sem temor e sem pecha. A ideia de Lacan de fazer Jung testemunhar sobre suas relações com Freud era portanto excelente. O encontro realizou-se, mas Roland Cahen lamentou o que se passara, e Jung guardou da conversa apenas uma lembrança fugaz.
Se Lacan não quis dizer nada a seu colega, é que reservava sua informação a outros ouvintes. Em 7 de novembro de 1955, em sua conferência sobre a "coisa" freudiana pronunciada em alemão em Viena, mencionou pela primeira vez a visita a Kusnacht: "É assim que o dito de Freud a Jung, da boca de quem eu o devo, quando, convidados ambos pela Clark University, chegaram diante do porto de Nova York e sua célebre estátua que ilumina o universo: ´Eles não sabem que lhe trazemos a peste´, lhe é devolvido como uma sanção de uma hybris cuja antífrase e sua perfídia não extinguem o confuso brilho".
Ao comentar esse dito, Lacan sublinhava que Freud havia se enganado: acreditara que a Psicanálise seria uma revolução para a América, e foi a América que devorou sua doutrina ao retirar-lhe seu espírito de subversão. Esse suposto dito de Freud foi ouvido como algo que ia muito além de qualquer esperança. Na França, com efeito, ninguém duvida da realidade subversiva do freudismo; sobretudo, ninguém ousa imaginar que Freud certamente jamais pronunciou essa frase durante sua viagem aos Estados Unidos, em 1909, acompanhado de Jung e de Ferenczi. Entretanto, o estudo dos textos, das correspondências e dos arquivos mostra que Jung reservou apenas para Lacan esse preciosa confidência. Em suas Memórias, fala da viagem mas não faz nenhuma alusão a peste. Por seu lado, Freud e Ferenczi jamais empregaram a palavra. Quanto a historiadores do freudismo, de Ernest Jones a Max Schur passando por Henri Ellenberger, Vincent Brome, Clarence Oberdorf, Paul Roazen, Nathan G. Hale e Peter Gay, eles observam que Freud disse apenas: "Eles ficarão surpresos quando souberem o que temos a lhes dizer".
Imbuído dessa confidência de que era o único depositário, Lacan inventou portanto uma ficção mais verdadeira que o real, destinada a impor, contra a psicanálise dita americana, sua própria retomada da doutrina vienense, doravante marcada pelo selo da subversão. E se essa visão da "peste freudiana" chegou a se estabelecer tão bem na França, a ponto de os próprios não lacanianos acreditarem hoje que ela pertence a Freud, é que se inscrevia na continuação direta dessa exceção francesa da qual Lacan, após ter sido o difamador, era ao mesmo tempo o herdeiro e renovador.

 (In. Elisabeth Roudinesco. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 359-362).


quinta-feira, 23 de maio de 2013

O mal-estar na civilização - Sigmund Freud (trecho)


"...falta-me o ânimo de apresentar-me aos semelhantes como um profeta, e me curvo à sua recriminação de que não sou capaz de lhes oferecer consolo, pois no fundo é isso o que exigem todos, tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes, de forma igualmente apaixonada.
A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas "potências celestiais", o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?"

(O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.121-2).


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Belle Vue - Onde Freud teve o sonho da "Injeção de Irma".



 

Em 1895, Freud foi passar o verão no Schloss Belle Vue na Kobenzl, com a família Ritter von Schlag. Aqui, durante a noite de 23-24 julho, ele teve um sonho onde conseguiu decifrar pela primeira vez a realização do desejo, o qual aparece em ...sua "Interpretação dos Sonhos", como o "sonho da injeção de Irma". A Schloss foi demolida, mas hoje o local é marcado por um monumento com uma inscrição tirada de uma carta que Freud escreveu mais tarde, em 12 de junho de 1900, a Wilhelm Fliess: "Você realmente acha que algum dia será capaz de ler uma placa de mármore a inscrição:" Aqui na 24 de julho de 1895 o mistério dos sonhos foi revelado ao Dr. Sigmund Freud". Freud finalizava esta hipótese, na carta, com o comentário: "Até agora tenho poucas esperanças".

(Fonte: Museu Freud (Viena): http://www.freud-museum.at/freud/topogr/bllvue-e.htm).

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Os chistes e a sua relação com o inconsciente - Sigmund Freud (trecho)

"De bom grado renunciaria a todos os métodos de satisfação proscritos pela sociedade, mas como saber que a sociedade recompensará tal renúncia oferecendo-me um dos métodos permitidos – mesmo ao preço de um certo adiamento? O que os chistes ...sussurram pode ser dito em voz alta: que as vontades e desejos dos homens têm o direito de se tornarem aceitáveis ao lado de uma moralidade severa e cruel (...). Na medida em que a arte de curar não tem prosseguido em assegurar (a eternidade de) nossa vida e na medida em que os arranjos sociais não a têm tornado mais agradável, será impossível sufocar dentro de nós a voz que se rebela contra as exigências da moralidade (...). Deve-se jungir a própria vida à vida dos outros tão intimamente e poder identificar-se com eles de tal maneira que a brevidade da própria vida seja vencida; não se deve, pois, satisfazer às exigências das próprias necessidades ilegitimamente, mas antes deixá-las insatisfeitas porque só a continuidade de tantas exigências há de desenvolver o poder de mudança da ordem social”.
(Os chistes e a sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago: 2006 [1905],pgs.108-9).

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Uma carta de Freud a Marie Bonaparte (13/08/1937)

 Minha cara Marie*:
Posso responder-lhe sem demora, pois tenho pouco a fazer. O "Moisés" II foi concluído anteontem, e as pequenas dores esquecemos melhor numa troca de idéias com amigos.
Para o escritor, a imortalidade significa que ele será amado por muitas pessoas desconhecidas. Mas eu sei que não chorarei sua morte. Pois você sobreviverá a mim por muitos anos e, espero, se consolará rapidamente, e me deixará seguir vivendo em sua memória amiga, a única espécie de imortalidade limitada que reconheço.
No momento em que nos perguntamos sobre o valor e o sentido de uma vida, estamos doentes, pois objetivamente tais coisas não existem. Ao fazê-lo, apenas admitimos possuir um quê de libido insatisfeita, a que algo mais deve ter acontecido, uma espécie de fermentação que conduz à tristeza e à depressão. Essa minha explicação não é grande coisa, certamente. Talvez porque eu mesmo seja muito pessimista. Anda em minha cabeça um advertisement que considero o mais ousado e bem-sucedido exemplo de propaganda americana:
"Why live, if you can be buried for ten dollars?"
["Por que viver, se você pode ser enterrado por dez dólares?"].
Lun** refugiou-se junto a mim depois de um banho. Se a compreendo bem, manda que lhe agradeça a lembrança. Topsy já sabe que está sendo traduzida?
Escreva breve!
Afetuosamente,
Freud.
Notas:
 *Marie Bonaparte (1882-1962), princesa da Grécia, foi paciente, depois discípula e amiga de Freud.
** Lun era uma cadela de Freud, da raça chow. Topsy, também uma cadela chow, pertencia a Marie Bonaparte; a referência da última frase é ao trabalho que Marie Bonaparte escreveu sobre ela, que estava sendo traduzido por Freud e por sua filha Anna.
(In:Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 129).

segunda-feira, 19 de março de 2012

A interpretação dos sonhos - Freud (trecho)

"Não se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma força externa, e não tocado pela mão de um instrumentista; eles não são destituídos de sentido, não são absurdos; não... implicam que uma parcela de nossa reserva de representações esteja adormecida enquanto outra começa a despertar. Pelo contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade - realizações de desejos; podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligíveis da vigília; são produzidos por uma atividade mental altamente complexa".
(Sigmund Freud. In: A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001 [1900], p.136).

quinta-feira, 15 de março de 2012

Caso V - Srta. Elisabeth von R. - Sigmund Freud (trecho)

"Sou da opinião, contudo, que quando um histérico cria uma expressão somática para uma idéia emocionalmente dolorida, através da simbolização, isso depende menos do que se poderia imaginar de fatores pessoais ou voluntários. Ao tomar uma expressão verbal ao pé da letra e sentir uma "punhalada no coração" ou uma "bofetada no rosto" após um comentário depreciativo vivido como fato real, o histérico não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo mais uma vez as sensações que a expressão verbal deve sua justificativa (....). O que poderia ser mais provável do que a idéia de que a figura de linguagem "engolir alguma coisa", que empregamos ao falar de um insulto ao qual não foi apresentada nenhuma  réplica, origin ou-se na verdade das sensações inervatórias que surgem na faringe quando deixamos de falar e nos impedimos de reagir ao insulto? Todas essas sensações e inervações pertencem ao campo da "Expressão das Emoções", que, como nos ensinou Darwin [1872], consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade.
Em sua maior parte, estas podem ter-se enfraquecido tanto que sua expressão em palavras nos parece ser apenas um quadro figurativo delas, ao passo que, com toda probabilidade, essa decrição um dia foi tomada em seu sentido literal; e a histeria tem razão em restaurar o significado original das palavras ao retratar suas inervações inusitadamente fortes. Com efeito, talvez seja errado dizer que a histeria cria essas sensações através da simbolização. É possível que ela não tome em absoluto o uso da língua como seu modelo, mas que tanto a histeria quanto o uso da língua extraiam seu material de uma fonte comum".


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A transitoriedade - Sigmund Freud (trecho)

"Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. É incompreensível (...) que a idéia da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona.
(...) Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a Terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta".
(Sigmund Freud. A transitoriedade. In: Obras completas. Companhia das Letras, São Paulo: 2010 [1914-16], v.12, p.249).

Considerações atuais sobre a guerra e a morte - Sigmund Freud (trechos)

 
"A civilização foi adquirida pela renúncia à satisfação instintual, e exige de cada "recém-chegado" essa mesma renúncia. Durante a vida individual há uma contínua transformação de coação externa em coação interna. As influências culturais levam a que tendências egoístas cada vez mais se convertam em altruístas, sociais, pela adjunção de elementos eróticos. Enfim, é lícito supor que toda coação interna que se faz notar no desenvolvimento do ser humano era originalmente, ou seja, na história da humanidade, apenas coação externa" - (p.220-1). 
*
"O ser individual se encontra não apenas sob o influxo do seu meio cultural presente, mas está sujeito também à influência da história cultural de seus antepassados" - ( p.221).
*
"Quem é obrigado a reagir continuamente segundo preceitos que não são expressão de seus pendores instintuais vive acima de seus meios, psicologicamente falando, e pode objetivamente ser designado como um hipócrita, esteja ele consciente ou não dessadiscrepância. É inegável que nossa atual civilização favorece de maneira extraordinária a produção de tal espécie de hipocrisia. Podemos ousar afirmar que ela está edificada sobre essa hipocrisia, e que teria que admitir profundas mudanças, caso as pessoas se propusessem viver conforme a verdade psicológica. Portanto, existem muito mais hipócritas culturais do que homens realmente civilizados, podendo-se mesmo considerar o ponto de vista de que um certo grau de hipocrisia cultural seja indispensável para a manutenção da cultura, porque a aptidão cultural já estabelecida nos homens de hoje talvez não bastasse para essa realização. Por outro lado, a manutenção da cultura, ainda que sobre uma base tão duvidosa, oferece a perspectiva de preparar o caminho, em cada nova geração, para uma transformação instintual mais ampla, portadora de uma cultura melhor" - (p.223-4).
"Argumentos lógicos são impotentes em face de interesses afetivos" - (p.228).
* 
"Uma proibição tão forte pode se dirigir apenas a um impulso igualmente forte. O que nenhuma alma humana cobiça não é necessário proibir, exclui-se por si mesmo" - ( p.241).
*
"Não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos ´pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente? Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e nos tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso.
Recordemo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra.
No momento atual caberia mudá-lo: Si vis vitam, para mortem. Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte" - (p. 246).

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Trecho do livro Paranóia - Renata Udler Cromberg

Nau dos insensatos, Bosch
"Quando jogamos no chão um cristal, ele se quebra, mas não caprichosamente; rompe-se conforme as suas linhas de fratura, em pedaços cuja delimitação, ainda que invisível, estava predeterminada pela estrutura do cristal. Também os doentes mentais são como estruturas rompidas. Não podemos negar-lhes algo daquele horror respeitoso que os povos antigos testemunham aos loucos. Afastaram-se da realidade exterior mas, precisamente por isso, sabem mais da realidade psíquica interior e podem descobrir-nos coisas que de outro modo seriam inacessíveis a nós" .
(Sigmund Freud sendo citado por Renata Udler Cromberg no livro: Paranóia. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 36-7).

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sobre Lou Andreas Salomé

Lou Andreas Salomé chegou a Viena para estudar psicanálise no dia 25 de outubro de 1912. Tinha 51 anos, era uma mulher marcante, esplendidamente feminina, de cabelos grossos e ondulados e olhos claros, azuis. Fotografias da época mostram-na envolta em vastas peles: parece audaciosa, orgulhosa, confiante, mas tmbém estranhamente inocente, crédula. A fama de ser uma das maiores femmes fatales da Europa Central cai sobre Lou com leveza: não há nela nada previamente ensaiado. Tampouco há qualquer coisa que possa sugerir a seriedade de uma intelectual firme e independeente ou rastros de uma formação filosófica rigorosa. Lou é simplesmente, totalmente, Lou. As fofocas contemporâneas e a história pintam-na como uma mulher de vários homens - Nietzsche, Rilke, Freud, às vezes até o próprio marido -, mas a única certeza a respeito de Lou é de que ela foi, primeiro e principalmente, fiel a si mesma.
(...) Frau Lou, prolífica, muito viajada e vastamente versada, também era conhecida pelo seu estudo As heroínas de Ibsen e pela primeira monografia sobre Friedrich Nietzsche, o filósofo "que significava uma nobreza que eu não podia atingir" para o jovem Freud, e cujo pensamento era tão rico - e, imagina-se, tão próximo ao de Freud - que ele renunciou à tentativa de ler em detalhes um pensador que "tinha um conhecimento mais penetrante sobre si mesmo do que qualquer homem que já tenha vivido".
(...) Freud viu o interesse de Lou pela psicanálise como um "bom presságio". No necrológio que lhe dedicou, declarou com firmeza: "Não estarei dizendo demais se reconhecer que todos nós sentimos como uma honra quando ela se juntou às fileiras de nossos colaboradores e companheiros de armas, e, ao mesmo tempo, como uma nova garantia da verdadedas teorias da análise".
(...) Karl Abraham é o primeiro a anunciar, em carta de 28 de abril de 1912, recomendando Lou a Freud: "Nunca conheci ninguém com um entendimento tão profundo e tão sutil da psicanálise".
(...) Lou foi, decididamente, uma pessoa "soberana" numa época em que isso não era fácil. Uma "mulher notável", como disse Freud em seu necrológio, e destituída de "todas as fraquezas femininas e talvez da maioria das fraquezas humanas". Ela era feliz por ser mulher e, no meio de todos os seus homens preeminentes, via as mulheres como o sexo superior e mais alegre. Tanto homens quanto mulheres eram atraídos por ela, admiravam-na, viam suas próprias idéias refletidas no espelho sutil e sensível que era a mente dela, amavam-na e permaneciam seus amigos. Ainda que Lou nunca tenha se entregado, tinha o dom de identificar--se com aquilo que seus amantes e amigos possuíam de mais caro e de servir de apoio quando era necessário. Neste sentido, era uma excelente psicóloga. Nietzsche dizia que ela era "astuta como uma águia e corajosa como um leão, mas, ainda sim, uma garotinha muito feminina". Anna Freud observou que "o que havia de incomum nela era, na verdade, o que deveria ser comum em um ser humano - honestidade, retidão, ausência de qualquer fraqueza, autoafirmação sem egoísmo".
Lou com Rilke
O retrato pintado por Rilke é talvez o mais evocativo:
Essa mulher possui a habilidade de penetrar nas coisas mais maravilhosas, mais esplêndidas; ela transforma, no momentocerto, tudo aquilo que os livros e as pessoas lhe trazem, na mais abençoada compreensão; ela entende, ama e se move, sem medo, entre os mistérios mais ardentes. Estes não lhe causam nada, apenas brilham para ela com a mais pura chama. Eu não conheço ninguém - e desde os longínquos anos em que ela me conheceu e trouxe um significado infinito para minha vida, nunca soube de nenhuma outra pessoa - que tenha a vida de tal forma do seu lado (...).
A vida de Lou - uma vida que tem todas as inflexões de um grande romance - começou em 12 de fevereiro de 1861 em São Petersburgo, capital da Rússia imperial, onde seu pai, um alemão báltico descendente de huguenotes, era um general que frequentava elevados círculos aristocráticos. Sua mãe, Louise, já tinha dado à luz cinco filhos, e a chegada da pequena Louise von Salomé, ou Lyolya - apenas três semanas antes da emancipação dos servos - no suntuoso apartamento da família, no edifício do Estado-Maior geral, em frente ao Palácio de Inverno, foi motivo para numerosas felicitações, inclusive uma mensagem do czar.
(...) Em todos os seus dias, Lou nunca deixou de sentir que a vida, com todos os seus horrores, era generosa e benéfica; que algum poder benigno emanado do paraíso da primeira infância velava por ela. E foi sempre grata.
É esse conjunto de intuições e atitudes que molda, mais tarde, sua compreensão da feminilidade e no narcisismo feminino como força positiva. Para Lou, o feminino, em sua essência, faz parte de uma "fusão primordial com o Todo em que repousamos".
(...) A infância em São Petersburgo incutiu em Lou o sentimento de ser especial. Ela era distinta pela riqueza, classe e nacionalidade. Em sua casa, falava-se mais alemão e francês do que russo; a religião da família era um protestantismo pietista, não a ortodoxia russa comum, que sua mãe considerava incivilizada. Ao contrário de Kafka, por exemplo, cujo sentimento de diferença resultava em um profundo senso de alienação, para Lou, ser diferente envolvia a boa sorte de ser especial e fazia com que ela valorizasse tudo o que se distinguisse pela intensidade ou pela excelência de sentir e de pensar. A noção de "lar" era tão enraizada nela, que mesmo que não fosse aqui, era em outro lugar, ao qual ela pertencia. Essa sensação de pertinência ao mundo era o que lhe permitia desprezar as convenções e embarcar no que foi uma trajetória singular para a sua época - na verdade, para qualquer época.
(...) A despeito de seus amados irmãos e pais, Lou era uma criança solitária, introvertida, para quem a fantasia e o devaneio adquiriram um caráter muito particular de realidade, que com frequência sobrepujou acontecimentos compartilhados com os outros. Ela criava histórias complexas a respeito dos transeuntes nas ruas de São Petersburgo. Quando, com o passar dos anos, esses intricados enredos ficaram longos demais para a sua memória, começou a escrever as inuciosas histórias dos habitantes de seu mundo inventado. No início, essa esfera onírica era tingida pelo "fino brilho" de sua inquestionável fé em Deus, um Deus que era sua mais antiga lembrança e que existia secretamente apenas para ela. Lou lhe contava tudo, e ele ouvia tão bem que ela supôs a existência de um diálogo, sem jamaisquestionar sua inaudibilidade ou invisibilidade. Mas um dia ela pediu uma resposta, que não veio. Deus e a sua crença sumiram ao mesmo tempo. Essa perda de fé foi tão crucial que Lou faz do episódio a experiência originária de suas memórias.
Em um frio dia de inverno, um criado da casa de campo da família disse a Lou que vira um casal parado em frente à sua casinha de brinquedo, desejando entrar. Lou ficou preocupada com eles, com medo de que passassem frio e fome. Na visita seguinte do criado a São Petersburgo, ela perguntou aonde tinha ido o casal. Ele disse que não tinham ido embora, mas simplesmente ficaram mais e mais magros, até que desapareceram, e uma manhã, quando ele estava varrendo o chão, encontrou apenas vestígios deles, botões, um chapéu e lágrimas congeladas.
Lou ficou arrasada com o que um adulto chamaria de sensação de insubstancialidade das coisas, de efemeridade da vida. Ela exigiu uma explicação de Deus, uma simples afirmação. Dizer que era um casal de bonecos de neve bastaria. Mas nada aconteceu. A descrença a invadiu. O Deus que a abrigava, que fundia pai e mãe e guardava nos bolsos todos os dons do mundo, derreteu-se. E junto com esse desaparecimento veio uma tristeza árida, um desanimador peso de responsabilidade pela sua própria imaginação.
Mais tarde, Lou afirmou que a perda da fé em idade tão tenra - antes que a dúvida racional fosse possível - fez com que ela fosse capaz de manter, para sempre, um sentimento infantil de fé sem a necessidade de ter um objeto de fé equivalente. Decerto a autosuficiência incomumente generosa que ela demonstrou ao longo de toda a vida, uma postura que expressou em suas idéias sobre o narcisismo, é uma prova de sua própria interpretação.
A história que conta sobre os primeiros contatos travados com o espelho ajuda a entender esse aspecto de sua personalidade. Ela era criança quando viu o próprio reflexo e ficou espantada ao descobrir que era apenas aquilo que estava vendo: um ser confinado a limites estreitos e impedido de existir em outros objetos. Longe do espelho, recusava essa falta de extensão. A sensação de que o físico não era uma fronteira intransponível, de que o vísivel e material não definiam os limites do eu ou da imaginação, de que não havia brechas invioláveis entre o eu e o outro persistiu por toda a sua vida. Lou tinha uma "solidariedade com o destino de tudo" que existe, grande ou pequeno. Tempos depois, identificou esse sentimento com o feminino que havia nela, uma ênfase que transcendia o ímpeto masculino à razão, que separava e dividia.

(In: As mulheres de Freud. Lisa Appignanesi & John Forrester. Rio de Janeiro: Record, 2010.p.369-374).

sábado, 7 de maio de 2011

Oportunidade - Freud

"Nunca se deve desprezar uma oportunidade mas sempre tomar o que se pode, mesmo quando isso implica em praticar um pequeno delito. Nunca se deve desprezar uma oportunidade, já que a vida é curta, e a morte, inevitável".
(In: A Interpretação dos sonhos).

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O jovem Freud escreve para sua amada...Martha

"Você crê em presságios? Como aprendi que ver pela primeira vez uma menina sentada a uma longa mesa bem conhecida e falando de modo tão inteligente enquanto descascava uma maçã com seus dedos delicados podia desconcertar-me de forma tão duradoura, realmente me tornei muito supersticioso" (26/06/1885).
*
"A solução para o quebra-cabeças é a seguinte: apenas dentro da lógica as contradições são incapazes de coexistir; nos sentimentos, elas prosseguem contentes lado a lado. Argumentar como Fritz é negar metade da vida" (08/07/1882).
*
"Haveria um prejuízo horrível para nós ambos se eu osse forçado a decidir amar você como uma namorada querida, porém não como uma igual, alguém de quem eu tivesse que ocultar meus pensamentos e opiniões - em resumo, a verdade"(25/09/1882).
*
"Você (...) escreve de modo tão inteligente e certeiro que eu tenho um pouco de medo de você. Acho que tudo leva a mostrar, mais uma vez, como as mulheres rapidamente passam à frente dos homens. Bom, não vou perder nada com isso" (06/10/1883).
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"Vamos servir de modelo para as gerações futuras de amantes, e apenas porque tivemos a coragem de gostarmos um do outro sem pedir permissão a ninguém. (...) Somos como as pessoas que andam na corda bamba ou sobem em mastros e que recebem aplausos de qualquer público, ainda que o mesmo público ficasse muito triste caso visse seus filhos ou filhas fazendo a mesma coisa em vez de usar uma escada ou permanecer confortavelmente embaixo" (06/01/1886).
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"Não se deve ser mesquinho com o afeto; o que se gasta das reservas é renovado pelo próprio ato de gastar" (18/08/1882).
(In: As mulheres de Freud. Lisa Appignanesi & John Forrester. São Paulo: Record, 2010. p.67-84).

domingo, 3 de abril de 2011

Freud e a perversão - Elisabeth Roudinesco

Freud nunca foi um grande leitor de Sade, mas partilhava com ele, sem o saber, a idéia segundo a qual a existência humana caracteriza-se menos por uma aspiração ao bem e à virtude que pela busca de um permanente gozo do mal: pulsão de morte, desejo de crueldade, amor ao ódio, aspiração ao infortúnio e ao sofrimento. Pensador do iluminismo sombrio, e não do anti-Iluminismo, Freud reabilitou a idéia segundo a qual a perversão é necessária à civilização enquanto parte maldita das sociedades e parte obscura de nós mesmos. Porém, em vez de enraizar o mal na ordem natural do mundo e de fazer da animalidade do homem sinal de uma inferioridade insuperável, preferiu sustentar que apenas o acesso à cultura permite arrancar a humanidade de sua própria pulsão de destruição. "Os pensadores sombrios", escreverá Theodor Adorno:

que não desistem da idéia da inafiançavel malignidade da natureza humana e que proclamam com pessimismo a necessidade da autoridade - Freud nesse aspecto situa-se ao lado de Hobbes, Mandeville e Sade - não podem ser escorraçados com uma bofetada. Em seu próprio meio, nunca foram bem-vindos.

A pulsão destruidora, dizia Freud, é a condição primordial de toda sublimação, uma vez que a característica do homem - se é que esta existe - não é senão a aliança, no próprio homem, da mais poderosa barbárie e do grau mais elevado de civilização, uma espécie de passagem da natureza à cultura. "Podemos considerar", escreve Marie Bonaparte em 1937, "a pulsão de exploração, a curiosidade intelectural, como uma sublimação completa do instinto agressivo ou destruidor".
Nunca é o bastante insistir de que Freud foi o único cientista de sua época - depois de muitas divagações - a deixar de ver no trio infernal do homossexual, da histérica e da criança masturbadora a encarnação da noção de perversão reduzida à inépcia. E assim como deixou de querer domesticar a perversão ao atribuir seus pretensos estigmas a personagens excluídos da procriação, da mesma forma abandonou as classificações oriundas da sexologia, rompendo, por conseguinte, com o princípio de uma descrição voyeurista - isto é, perversa - das perversões sexuais. Substituiu esse dispositivo por uma conceitualização do mecanismo psíquico da perversão, assumindo todavia o risco de desprezar a longa ladainha das confissões oferecidas à medicina mental pelo povo dos perversos.

Da mesma forma, conferiu uma dimensão essencialmente humana à estrutura perversa - gozo do mal, erotização do ódio, e não tara, degenerescência ou anomalia-, para fazer dela, no plano clínico, o produto de uma dimensão polimorfa herdade seja de um culto sexual primitivo, seja do desenvolvimento de uma sexualidade infantil sem rédeas, seja de uma renegação radical da diferença anatômica dos sexos. "As perversões, cujo negativo é a histeria, devem ser consideradas vestígios de um culto sexual primitivo, que foi inclusive, no Oriente semítico, uma religião". Escreve ainda: "Estamos agora em condições de concluir que há com efeito algo de inato na base das perversões, mas algo que todos os homens partilham e que, enquanto predisposição, é suscetível de variar em sua intensidade".
Foi dessa forma que Freud introduziu no psiquismo o que poderíamos chamar de um universal da diferença perversa: todo homem é habitado pelo crime, o sexo, a transgressão, a loucura, a negatividade, a paixão, o desvario, a inversão etc. Mas nenhum hhomem pode estar determinado, em vida e previamente, por um destino que o torne inapto a qualquer superação de si.
(...) Em resumo, diremos que, até Freud, as perversões sexuais eram vistas, no dicurso da medicina positivista, como desvios sem retorno em relação a uma norma. (...). Com Freud, ao contrário, a dimensão perversa foi concebida como uma passagem obrigatória para a normalidade: uma normalidade de contornos difusos, cada sujeito podendo então definir-se como um ex-perverso que se tornou normal, após ter integrado, como interditos importantes, os princípios da Lei. (...) Ao mostrar que a disposição perversa é a característica do homem, que todo sujeito a carrega em si potencialmente - e que assim a patologia esclarece a norma-, Freud afirmava também que o único limite ao desenvolvimento abjeto da perversão só pode advir de uma sublimação encarnada pelos valores do amor, da educação, da Lei e da civilização.
(...) ao contrário da medicina mental que buscava, mediante a dessacralização, circunscrever, controlar ou erradicar as perversões, Freud reportava a perversão a uma categoria antropológica da própria humanidade.

(In: A parte obscura de nós mesmos - Uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.99-104).

sexta-feira, 11 de março de 2011

O homem dos ratos - Sigmund Freud

"A verdadeira técnica da psicanálise requer que o médico suprima sua curiosidade, deixe ao paciente liberdade total para escolher a ordem na qual os tópicos sucederão um ao outro durante o tratamento".
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"Não estamos acostumados a sentir fortes afetos, sem que eles tenham algum conteúdo ideativo; e, portanto, se falta o conteúdo, apoderamo-nos, como um substituto, de algum outroconteúdo que seja, de uma ou de outra forma, apropriado, com a mesma intensidade com que a nossa polícia, não podendo agarrar o assassino certo, prende, em seu lugar, uma pessoa errada. Além disso, o fato de existir uma falsa conexão é o único meio de se responder pela impotência dos processos lógicos para combater a idéia atormentadora" (p.157).
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"Fiz então algumas pequenas observações sobre as diferenças psicológicas entre o consciente e o inconsciente, e sobre o fato de que toda coisa consciente estava sujeita a um processo de desgaste, ao passo que aquilo que era inconsciente era realmente imutável; e ilustrei meus comentários indicando as antiguidades que se encontravam ao redor, na minha sala. Era, com efeito, disse eu, apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento deles tinha sido o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava começando agora que ela fora desenterrada" (p.157).

"O homem que simplesmente rompe com uma lei externa muitas vezes se vê como um herói" (p.158).
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"As idéias obecessivas mais rudimentares e mais excêntricas podem ser esclarecidas, se investigadas com suficiente profundidade. A solução se dá ao se elevar as idéias obcessivas a uma relação temporal com as experiências do paciente, quer dizer, ao se indagar quando foi que uma idéia obcessiva particular fez sua primeira aparição e em que circunstâncias externas ela está apta a voltar a ocorrer" (p.165).
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"A relação entre a idéia compulsiva e a vida do paciente está contida nas palavras iniciais da sua história" (p.166)
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"As precondições infantis da neurosepodem ser colhidas pela amnésia, embora estas, muitas vezes, seja parcial; mas, pelo contrário, os motivos imediatos da doença são retidos na memória. A repressão utiliza-se de outro mecanismo, que, na realidade, é mais simples. O trauma, em lugar de ser esquecido, é destituído de sua catexia afetiva, de modo que, na consciência, nada mais resta senão o seu conteúdo ideativo, o qual é inteiramente desinteressante e considerado sem importância" (p.172).
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"Por esse motivo, ocorre, com alguma regularidade, que os neuróticos obcessivos, perturbados com autocensuras, mas havendo ligado seus afetos com causas errôneas, contam também ao médico as causas verdadeiras, sem qualquer desconfiança de que as suas autocensuras ficaram simplesmente separadas delas" (p.173).
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"Os resultados científicos da psicanálise são, presentemente, apenas um co-produto de seus objetivos terapêuticos, e por esse motivo é, com frequência, exatamente nos casos em que o tratamento falha que muitas descobertas são feitas" (p.181).
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"Durante o processo de uma psicanálise, não é apenas o paciente que ganha coragem, mas também sua doença; esta se atreve o suficiente para falar com maior clareza do que antes" (p.194).
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"Os pensamentos obcessivos sofrem uma deformação semelhante àquela pela qual os pensamentos oníricos passam antes de se tornarem o conteúdo manifesto de um sonho" (p.196)
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"A criação da incerteza é um dos métodos utilizados pela neurose a fim de atrair o paciente para fora da realidade e isolá-lo do mundo - o que é uma das tendências de qualquer distúrbio psiconeurótico" (p.201).
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"A predileção dos neuróticos obcessivos pela incerteza e pela dúvida leva-os a orientar seus pensamentos de preferência para aqueles temas perante os quais toda a humanidade está incerta e nossos conhecimentos e julgamentos necessariamente expostos a dúvida. Os principais temas dessa natureza são paternidade, duração da vida, vida após a morte e memória - na qual todos nós costumamos acreditar, sem possuirmos a menor garantia de sua fidedignidade" (p.202).
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"A sua característica essencial reside no fato de eles serem incapazes de chegar a uma decisão, especialmente em matéria de amor; esforçam-se por protelar qualquer decisão e, na dúvida de saberem por qual pessoa vão se decidir ou que medidas adotarão contra alguma pessoa, obrigam-se a eleger como modelo o velho tribunal de justiça alemão, no qual os processos se encerravam, de praxe, antes de serem julgados, com a morte das partes em litígio" (p.205).
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"Um homem que duvida de seu próprio amor permite-se, ou, antes, tem de duvidar de alguma coisa de menor valor" (p.209).

sexta-feira, 4 de março de 2011

O valor da vida (Entrevista rara de Sigmund Freud)

Socidedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - IDE - 1988 - nº15
Entre as preciosidades encontradas na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud está essa entrevista. Foi concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. Deve ter sido publicada na imprensa americana da época. Acreditava-se que estivesse perdida, quando o Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada, em 1976. Na verdade, o texto integral havia sido publicado no volume Psychoanalysis and the Future, número especial do "Journal of Psychology", de Nova Iorque, em 1957. É esse texto que aqui reproduzimos, provavelmente pela primeira vez em português.

TRADUÇÃO DE PAULO CÉSAR SOUZA
Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade”.


Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.
Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.
Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.

- Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.
Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.
- Por quê - disse calmamente- deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu.. Que mais posso querer?
- O senhor teve a fama. Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo - com exceção da sua própria Universidade.
- Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e, francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não é virtude.
- Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
- Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liqüidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.
Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.
- Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.
- Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?
- Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.
- O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?
- Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção?
- Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?
- Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar à vida; movendo-se num círculo, seria ainda a mesma. Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.
- Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.
Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro Além do Princípio do Prazer. No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.
- Isto, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio.. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.
- A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós. Neste sentido, acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
Estava ficando frio no jardim.
Prosseguimos a conversa no gabinete.
Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.
- Em que o senhor está trabalhando?
- Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopolizá-la.
- O senhor teve muito apoio dos leigos?
- Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
- O senhor está praticando muito a psicanálise?
- Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.
- Minha filha também é psicanalista, como você vê...
Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud, acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxônicas.
- O senhor já analisou a si mesmo?
- Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
- Minha impressão é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristã. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprec'est tout pardonner".
- Pelo contrário! - bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo.. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância para com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento.
Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.
- Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desdeentão prefiro me considerar judeu.
Fiquei algo desapontado com esta observação. Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raça, que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava-o mais atraente como ser humano.Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!
- Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!
- Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa força.
- Imagino, observei, quais seriam os meus complexos!
- Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à "caça aos leões". Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Brandes , Gerhart Hauptamann e George Bernard Shaw...
- É parte do meu trabalho.
- Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo.. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu "complexo do pai".
Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele.
- Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através do seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções.
- A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.
Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio.
- Ás vezes imagino, questionei, se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.
- Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
- Por que?
- Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão, acrescentou Freud pensativamente, lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
- Meu cachorro, disse eu, é um Doberman Pinscher chamado Ajax.
Freud sorriu.
- Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!
- Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise fez da vida um quebra-cabeças complicado.
- De maneira alguma, respondeu Freud. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.
- Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.
- A psicanálise, pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.
- Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, apegam-se a cada pronunciamento que sai da sua boca.
- A vida muda. A psicanálise também muda, observou Freud. Estava apenas no começo de uma nova ciência.
- A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos - a teoria do "deslocamento", da "sexualidade infantil", do "simbolismo dos sonhos", etc. - parecem permanentes.
- Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.
- O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?
- Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: "Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sex were lacking"). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está "além" do prazer - a morte, a negociação da vida.
- Este desejo explica por que alguns homens amam a dor - como um passo para o aniquilamento! Explica por que todos buscam o descanso, porque os poetas agradecem a
                                                              Whatever gods there be,
That no life lives forever
That dead men rise up never
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
("Quaisquer deuses que existam/ Que a vida nenhuma viva para sempre/ Que os mortos jamais se levantem/ E também o rio mais cansado/ Deságüe tranqüilo no mar"..)
- Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.
- Shaw, respondeu Freud sorrindo, não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César - talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a uma insignificante garota.A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.
- O senhor, sem dúvida, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.
- Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O de Zaratustra diz:
"A dor
Grita: Vai!
Mas o prazer quer eternidade
Pura, profundamente eternidade".
- A psicanálise pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém. Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.
- O senhor, repliquei, não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes, Harvrey O'Higgins e outros fazem-se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O'Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. The Silver Cord, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.
- Eu sei, replicou Freud, e aprecio o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus.
A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são divulgadores inteligentes, raramente são pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos, e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista. É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro do estudioso.
Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador.Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade!
Havia escurecido.
Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos.Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus.
- Não me faça parecer um pessimista, ele disse após o aperto de mão. Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais infeliz que os outros.
O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância.