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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Conheço a resistência da dor - Cecília Meireles

Melancolia, de Edward Munch

Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.
A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.
O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.
Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.
Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.

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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Arte e ciência na psicanálise

Lacan conjuga em seu ensino duas vertentes aparentemente opostas, mas que se complementam: a arte e a ciência, ou - poderíamos dizer com ele - a poesia e o matema.
Seus textos e seminários são escritos e falas que sabem lidar com as palavras, explorando todos os seus elementos constitutivos: os fonemas (materialidade sonora), a letra (recurso da escrita) e a multiplicidade de sentidos (semântica). Ele adora recorrer à referência etimológica: andava sempre com um exemplar do clássico dicionário etimológico da língua francesa Bloch et von Wartburg embaixo do braço, vivia exortando os analistas a fazerem o mesmo e ainda os aconselhava a fazer palavras cruzadas. Seu discurso esgarça os limites da sintaxe, explorando os registros linguísticos da escrita e da fala para produzir equívocos. Como Freud, aliás, ele insiste em que o analista deve ser letrado e deve saber usar os recursos de estilo. Dentre eles destacam-se, tanto em sua escrita quanto em sua fala, a ironia, a antítese, o jogo de palavras, a criação de homofonias e o rebuscamento. Enfim, seu estilo é barroco, assim como o de Freud é clássico. Curiosamente, os charutos de ambos são emblemas desses estilos: o de Freud tão grande e alinhado e o de Lacan todo entortado! De fato, Lacan considera que seus escritos não se destinam a uma simples leitura, mas, como as formações do inconsciente, devem ser decifrados.
Em 1930, Freud recebe da cidade de Frankfurd o cobiçado Prêmio Goethe de Literatura pelo conjunto de sua obra. Seu bevíssimo artigo de 1916, intitulado "Sobre a transitoriedade", é unanimemente considerado um ensaio poético. E os textos de Lacan são atualmente cada vez mais estudados nos departamentos de literatura das universidades.
É preciso chamar atenção para o fato de que a literatura exerce um papel preponderante na constituição da psicanálise, na medida em que atravessa toda a obra de Freud: de Sófocles a Shakespeare, que ele denomina de "o grande psicólogo". Freud aprende com os romancistas e os poetas, retirando deles continuamente ensinamentos. Ele dizia inclusive que não havia nada que conseguisse formular cientificamente que já não houvesse sido abordado pelos escritores. Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, ele abre um espaço significativo para a literatura, propondo uma ligação mais estreita, "no sentido de uma universitas literarum", entre a ciência e as artes.
Lacan toma a proposta freudiana ao pé da letra. Ele não só sublinha frequentemente a percepção de um saber na criação literária, mas também afirma que os poetas sempre dizem as coisas na frente dos outros. Com Lacan, os psicanalistas passam a ser exigidos a se reincluir no mundo do saber, do qual haviam se afastado a partir do momento em que os pós-freudianos reduziram a psicanálise a uma técnica de adaptação ligada à medicina.
A erudição de Lacan, assim como a de Freud, é impressionante. Sem dúvida, essa erudição é efeito de um desejo de saber sobre as questões cruciais do homem. A contribuição de Lacan é efetiva na medida em que articula o saber psicanalítico com as disciplinas contemporâneas a que Freud não tivera acesso, como a linguística e a antropologia. Além disso, sua paixão pela filosofia e seu interesse pela matemática e pela lógica o levam a produzir constantemente uma articulação desses campos do saber com a psicanálise.
Seguindo os passos de freud, Lacan também almeja conquistar o status de ciência para a psicanálise. Mas essa busca de cientificidade não é incompatível com a arte do bem dizer. A frase de Buffon "O estilo é o homem" inicia o texto de abertura dos Escritos, onde duas questões são privilegiadas: "o estilo que seu endereçamento impõe" e a convocação do leitor para dar "algo de si".
Em relação à cientificidade da psicanálise, a contribuição mais importante de Lacan é a construção gradual de matemas. Para isso, ele recorre às fórmulas matemáticas, já que estas são a via pela qual as ciências operam sobre o real. Como é possível mandar um homem para a Lua? Através de fórmulas matemáticas que conseguem arrancar dele as leis que ali vigoram. Nesse sentido, toda ciência é uma tentativa de simbolizar o real, ou melhor, como dizia Lacan, uma pontinha dele.
Lacan chega aos matemas aos poucos. Inicialmente estabelece algumas letras, denominadas por ele de álgebra lacaniana: S1, S2, S, a. Depois, vai articulando essas letras entre si e compondo pequenas fórmulas, como a da fantasia, a do sintoma, dos quatro discursos etc. Em 1976, quando vai ministrar conferências nos EUA, os psicanalistas norte-americanos perguntam se quer matematizar tudo e ele responde que não, que apenas pretende "começar a isolar na psicanálise um mínimo passível de ser matematizado", isto é, quer introduzir algumas fórmulas que funcionem como balizas minimamente seguras para o trabalho dos psicanalistas e para a troca teórica entre eles. Além disso, os matemas são fórmulas que asseguram a transmissão de conceitos centrais da psicanálise, ainda que permitam uma pluralidade de leituras.
(In: Lacan, o grande freudiano. Marco Antônio Coutinho Jorge. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar,2009. p.10-3.) 


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém - Antônio Gedeão

"Desespero", de Edward Munch

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Figura - Orlando Morais

Escultura "A eterna Primavera", de Rodin

A mim não importa ser a sombra
quando você é a figura
ser a situação quando você é o assunto
...

Eu nasci pra estar ao seu lado
mesmo se não estamos juntos
e é por isto que quando gritas
permaneço calado
como o sol determina
retrato falado, meu pé de laranja lima
nós somos assim como um desenho
talvez reflexo e refletor
...
Você, as imagens que tenho
as que quero
as que tenho amor


Música disponível para download no link:
http://www.4shared.com/audio/Lf9jQ_04/Orlando_morais_Figura.html

As metamorfoses - Ovídio (trecho)

"Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio...O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia susceder a escuridão da noite...Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida?
Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova...a planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor: Tudo floresce. O fértil campo resplandesce com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas emranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso...E também a natureza não descansa e, renovadora, encontra outras foras nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados...todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou de ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre os perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos...Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste".
(In: Convite à Filosofia - Marilena Chauí.  12 ed. São Paulo: Ática, 2000. p.24-5).
Para saber mais sobre Metamorfoses, de Ovídio, acesse:


O amor em Leningrado


"- Conte-me sobre o seu Sr. Parker.
- Oh, o Sr. Parker?... Ele parece saber como é. Como tocar você e fazer eletricidade percorrer seu corpo. Como abraçar e acarinhar você. E como despir você...
- E depois?
- E depois? Você pára de pensar. Percebe que não há vergonha. Que pode fazer tudo com ele. Sesus corpos pertencem a vocês dois ao mesmo tempo. Ninguém precisa dizer nada..."

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Histeria & Obsessão - Vladimir Safatle

No caso da histeria, a questão norteadora seria: "O que é uma mulher?". Já na obsessão, teríamos:"Estou vivo ou estou morto?".


Vem do psicanalista Jacques Lacan a idéia de que a neurose é, no fundo, uma questão. Neste momento em que os diagnósticos clínicos psiquiátricos simplesmente abandonaram o conceito de neurose, como se se tratasse de algo muito vago e amplo, a idéia lacaniana mereceria ser levada mais a sério.
Por trás dela, há a importante compreensão de que certos sujeitos podem organizar suas vidas de maneira tal que, em vários momentos, uma mesma questão aparecerá mostrando como as respostas anteriores eram provisórias.
Essa pergunta vai polarizar os conflitos, indicando um ponto estruturalmente frágil sem resposta definitiva.
Note-se que a natureza neurótica da pergunta não está na sua enunciação, pois não há nada em sua enunciação que seja particularmente extraordinário. Na verdade, ela se encontra na impossibilidade de suportar a ausência de uma resposta decisiva que nos colocaria, de uma vez por todas, em uma posição existencial assegurada.
Por isso, para o neurótico, tais questões são insuportáveis e insuperáveis, fonte constante de sofrimento psíquico. Elas se transformaram no dispositivo de confrontação constante com o desamparo.
No quadro clínico psicanalítico, encontramos, principalmente, duas formas estruturais de neurose: a histeria e a obsessão. Como tais, elas desapareceram dos manuais de psiquiatria contemporâneos (como o DSM-IV e o CID-10).
No entanto, seus sintomas foram dissociados, produzindo várias nosografias, como o transtorno de personalidade histriônica, o transtorno obsessivo-compulsivo, os transtornos somatoformes, entre outros.
Uma boa pergunta é: "O que se perdeu com a dissecação da histeria e da obsessão em vários subsistemas de sintomas?". Uma das boas respostas que Jacques Lacan nos propiciaria seria: "Perdeu-se a capacidade de compreender as questões que animam a vida dessas pessoas e que as levam a situações constantes de sofrimento".
No caso da histeria, a questão norteadora seria: "O que é uma mulher?". Já na obsessão, teríamos: "Estou vivo ou estou morto?".
A dissemetria dessas duas questões é apenas aparente. Embora a primeira veicule, de maneira mais evidente, posição existencial e identidade de gênero (o que não poderia ser diferente na medida em que a psicanálise se serve das neuroses para pensar o processo conflitual de produção de tais identidades), as duas são modos de expor a insegurança a respeito dos vínculos produzidos pelo desejo.
No decorrer de nossas vidas, assumimos papéis, modelos de comportamento e posições que parecem desvelar, em ocasiões particularmente difíceis, uma grande carga de alienação.
Uma mulher que transforma a feminilidade em uma questão existencial demonstra claramente o estranhamento de quem se pergunta: "O que h´em mim que me faz suportar o lugar ("mulher") no qual estou e para o qual o olhar desejante do outro se volta?".
Como uma clássica filósofa nominalista, ela vê o nome como uma estranha etiqueta que se cola sobre as coisas. Como ela é essa coisa, tudo sepassa como se o desejo daquele que cola etiquetas fosse, de longe, um mistério e, de perto, uma fonte repugnante de angústia e desgosto.
Desse impasse, ela não saberia escapar, já que os dois pólos são, à sua maneira, verdadeiros.
Já aquele que se pergunta se está realmente vivo, aquele que sente em si mesmo algo em processo inexorável de mortificação, age como se a presençado desejo que vivifica não fosse algo evidente. Fácil seria dizer que tais pessoas se colocaram em posições nasquais os papéis emodelos assumidos funcionam como uma defesa mortificante contra o próprio desejo.
No entanto, elas parecem dizer que não sabem onde está esse desejo capaz de nos livrar de um desamparo mortificante. Elas não têm certeza se tal desejo está fora ou dentro dos papéis e modelos assumidos. Desse impasse, elas também não sabem como escapar.
Talvez porque nos dois casos, como dizia Wittgenstein, a resolução do problema não acontece com uma boa resposta, mas apenas quando desenvolvemos a força de esquecer o problema.
(Coluna extraída da revista CULT nº 161 - Ano 14 - set/2011)