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sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Sobre poesia e Filosofia - um depoimento - Orides Fontela

 


 “Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto meu, escrito aos 23 anos — um soneto muito importante para mim, pois é uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e nem jamais conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil prova, sim, impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E, claro, todas as ferramentas servem, principalmente, à religião (sobre o aspecto místico), à poesia — intuições básicas e... musicais, que tive de nascença — e, a bem mais recente, à filosofia. Deixando a religião de lado (mas fica lá, por baixo), falemos só de poesia e filosofia. 

 Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia, como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar — é um logos — mas não se restringe a isso. Não importa: poesia não é loucura nem ficção, mas sim um instrumento altamente válido para apreender o real — ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surgem o esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética. Pois ninguém chegou a ser cem por cento lúcido e objetivo, nunca. Seria inumano, seria loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença básica entre poesia e filosofia — a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos tentar para realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer, inicialmente, sobre a filosofia e poesia. 

 Bem, fazer poesia fiz sempre, e curiosa sempre fui. “Que bicho é esse?” era minha pergunta de aluninha. “Ti esti”, “que é”, pergunta o filósofo. É pergunta igual... Aos dezesseis anos fiz os seguintes versos: 

Pensar dói 

e não adianta nada.  

Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas, pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” — autodescoberta e descoberta de tudo, problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que este “estar aqui” é, também, estar “a um passo” — de meu espírito, do pássaro, de Deus — e este um passo é o “impossível” com que luto. É o paradoxo que exprimo num poemeto. 

Próxima: mas ainda 

estrela 

muito mais estrela 

que próxima.

 Ora, esta posição existencial básica de meus poemas já é filosófica, isto é, seria possível desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu interesse pela filosofia propriamente dita. Eu vivia a intuição quase inefável de estar só “a um passo”, que bastava erguer um só véu. Mocidade! E aí entra na minha vida a filosofia explícita. Entrou em aulas da Escola Normal, entrou pelos livros que procurei conseguir (Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística — Huxley, Sta. Tereza, São João da Cruz. Salada de que resultou meu livro “Transposição”, muito “abstrato” e “pensado” — no sentido poético de tais termos. Girava em torno do problema do ser e da lucidez, e abusava do termo “luz”. Um livro estranho, que só recentemente percebi como estava na contramão da poesia brasileira, sensual e sentimental. Parecia até meio cabralino devido a um vezo analítico, mas nunca foi, claro. Era um livro escrito no interior, tramado pelas tendências já levantadas, e onde já poesia e filosofia tentavam se irmanar, como possível. 

 Não preciso explicar, agora, porque meu interesse por filosofia era quase inato, como a poesia. Assim, agarrei a oportunidade de fazer realmente filosofia. Talvez desse em algo prático (não deu), mas o que me interessava era, acreditem ou não, a Verdade. Ingenuidade? Hoje sei que era, mas era a própria ingenuidade nobre sem a qual não se cria. E lá parti eu para tentar a filosofia, continuando com a poesia naturalmente. E o curioso é que estas águas não se mesclaram mais do que já estavam, senão a poesia poderia se tornar seca e não espontânea. Mas dei sorte (!) de não me tornar filósofa... Aliás, o mais que conseguiria seria ser uma professora de filosofia, isto é, uma técnica no assunto — e, bom, não era essa a finalidade. Nem dava; faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas do Normal só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito. 

 Não, concluí, a filosofia propriamente dita não é exatamente meu caminho, aliás nem mesmo me considero intelectual, só poeta, e ponto. Melhor criar que comentar, claro. A filosofia não me deu a resposta, a poesia só dá intuições, a estrela próxima está cada vez mais longe, mas continue-se a escrever... 

 Se fiquei insatisfeita com a filosofia explícita, isso não significa que foi inútil. Deu uma base cultural que eu não tinha, alargou meu mundo. E me deu o “status” de “filósofa”, universitária. É mais ou menos mito, mas mitos são excelentes para promover livros. 

 A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica — Helianto, do tempo da faculdade — e chegou à meta-poesia — Alba. Depois tentei voltar, tornar o papo mais concreto — Rosácea, Teia. Mais próxima do cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu também. Consequências da pobreza, do envelhecimento, das mágoas. Lamento ter perdido a passada ingenuidade (e imunidade) mas não que mudei de pele, não é possível. O futuro é propriamente falando o imprevisível — e não sei onde a pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei à minha salada o zen-budismo — com bons resultados, aliás — e agora procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem humano. 

O soneto a que me referi no princípio fala em 

despir os sortilégios, brumas, mitos. 

e taí uma tarefa bem filosófica, se a filosofia fosse só consciência crítica e lucidez, se não alimentasse também brumas e mitos próprios. Sem o que estaríamos tão nus que morreríamos, ou quem sabe — transmutávamo-nos —. Persigo a 

aguda trama 

da meta 

morfose,

e, para isso, poesia, filosofia, zen e o mais que vier, tudo serve — ruma ao não-dito, ao nunca dito, ao inexprimível. 

 Noutro poema, digo 

Amor 

cegueira exata. 

e, entendendo-se “amor” como a energia criativa primordial, então o saber poético se dá como uma “cegueira exata”: intuição, pensamento selvagem. A poesia, claro, não apresenta provas: isto é tarefa para a filosofia. Mas os filósofos — os criativos mesmo — também partem de intuições, e é a poesia que dá o que pensar. Que dizer dos incitantes fragmentos de Heráclito? Mistério religioso? Filosofia? Poesia? Tudo junto! E de Platão, aliás também poeta? E de Heidegger — que confesso ter lido como poesia — que, afinal, acaba no poético, por tentar algo indizível? Há muita poesia na filosofia, sim. Não poesia didática — como a dos pré-socráticos — mas poesia como fonte que incita e embriaga. E da filosofia na poesia já falamos, só que é “filosofia” que se ignora, que canta — que dá nervo aos poemas e tenta entrar onde o raciocínio não chega. 

 Filósofos podem servir de exemplo aos poeta, como digo 

Sócrates 

fiel ao seu daimon. 

pois, como os poetas, Sócrates era inspirado — e era fiel a sua inspiração. Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se interpenetrem, convivam, colaborem. 

 Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade".


(In. Poesia (e) Filosofia. Por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Pucheu, Alberto (org). Belo Horizonte: Moinhos, 2019 , p. 11- 14).

domingo, 28 de janeiro de 2018

Lou Andreas Salomé fala de Nietzsche

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

"Sem dúvida, um primeiro encontro com Nietzsche nada oferecia de revelador ao observador superficial. Esse homem de estatura mediana, de traços calmos e cabelos castanhos penteados para trás, vestido de maneira modesta apesar de extremamente bem cuidada, podia facilmente passar despercebido. Os traços finos e maravilhosamente expressivos de sua boca eram quase cobertos por completo pelo emaranhado de um espesso bigode pendente. Ele tinha um riso suave, uma maneira de falar sem barulho, um andar prudente e circunspecto que o fazia curvar ligeiramente os ombros. Era difícil imaginar essa silhueta no meio de uma multidão: ela tinha a marca que distingue aqueles que vivem sós e em movimento. O olhar, em contrapartida, era irresistivelmente atraído pelas mãos de Nietzsche, incomparavelmente belas e finas, que ele mesmo acreditava traírem seu gênio. (...) Seus olhos também o revelavam. Apesar de quase cegos, não tinham o olhar vacilante e involuntariamente perscrutador que caracteriza vários míopes. Antes pareciam guardiões protegendo seus próprios tesouros, defendendo segredos mudos sobre os quais nenhum olhar indesejável poderia chegar. Sua visão defeituosa conferia a seus traços um charme mágico sem igual; pois, ao invés de refletir as sensações fugidias provocadas elo turbilhão dos acontecimentos externos, eles reproduziam apenas o que vinha do interior dele mesmo. Seu olhar estava voltado para dentro, mas ao mesmo tempo - para além dos objetos familiares - ele parecia explorar o longínquo - ou, mais exatamente, explorar o que estava dentro dele como se estivesse longe".

Lou Andreas Salomé, Nietzsche e Paul Ree em 1882.

(In. Dorian Astor. Lou Andreas Salomé. Porto Alegre: LPM, 2015, p. 65).

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Não me fira - Caio Fernando Abreu

"Minha cara incendiava. Ele apagou o cigarro dentro do pequeno capacete militar invertido, sustentado por três espingardas cruzadas. E me olhou de frente, pela primeira vez, firme, sobrancelhas agudas sobre o nariz, fundo, um falcão atento à presa, forte. A mosca levantou vôo da ponta do meu nariz.
Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranquila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete, repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só resta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém.
Feito cometas, faíscas cruzaram na frente dos meus olhos. Tive medo de cair. Mas as folhas mais altas dos cinamomos começaram a se mover. O sol quase caindo no Guaíba. E não sei se pelo olhar dele, se pelo nariz livre da mosca, se pela minha história, pela brisa vinda do rio ou puro cansaço, parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências.
Pois, seu Hermes, então tu é o tal que tem pé chato, taquicardia e pressão baixa? O médico me disse. Arrimo de família, também?
Sim, meu sargento, menti apressado, aquele médico amigo de meu pai. Uma suspeita cruzou minha cabeça, e se ele descobrisse? Mas tive certeza: ele já sabia. O tempo todo. Desde o começo. Movimentei os ombros, mais leves. Olhei fundo no fundo frio do olho dele.
Trabalha?
Sim, meu sargento...menti outra vez.
Onde?
Num escritório, meu sargento.
Estuda?
Sim, meu sargento.
O quê?
Pré-vestibular, meu sargento.
E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?
Não, meu sargento.
Odontologia? Agronomia? Veterinária?
Filosofia, meu sargento.
Uma corrente elétrica percorreu os outros. Esperei que atacasse novamente. Ou risse. Tornou a me examinar lento. Respeito, aquilo, ou pena? O olhar se deteve, abaixo do meu umbigo. Acendeu outro cigarro, Continental sem filtro, eu podia ver, com o isqueiro em forma de bala.
Espiou pela janela. Devia ter visto o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte das ilhas. Voltou os olhos para mim. Pupilas tão contraídas que o verde parecia vidro liso, fácil de quebrar.
Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria.
Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. Olhou em volta, o alemão, o crioulo, os outros machos. E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte.
Caminhei para a porta, tão vitorioso que meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tardezinha. Abriram caminho para que eu parasse. Lerdos, vencidos. Antes de entrar na outra sala, ouvi o rebenque estalando conta a bota negra.
Sem-tido! Estão pensando que isso aqui é o "cu-da-mãe-joana"?"

(Trecho do conto Sargento Garcia, publicado originalmente no livro Morangos Mofados. In. Melhores Contos de Caio Fernando Abreu. São Paulo: Global, 2006).

segunda-feira, 31 de julho de 2017

A Odisséia de Penélope - Margaret Atwood (trechos)

"Agora que morri, sei de tudo. Era isso que eu esperava que acontecesse, mas, como muitos dos meus desejos, deixou de se realizar. Sei apenas alguns fatos dispersos que antes ignorava. Desnecessário dizer, trata-se de um preço alto demais a pagar pela satisfação da curiosidade.
Já que estou morta - já que atingi o estado desossado, deslabiado, despeitado -, aprendi coisas que preferia desconhecer, como ocorre quando alguém escuta debaixo da janela ou abre cartas alheias. Você gostaria mesmo de ler a mente? Pense bem.
Aqui todos chegam com um saco igual para guardar os ventos, mas todos os sacos estão cheios de palavras - palavras que a pessoa disse, palavras que ouviu, palavras que foram ditas a seu respeito. Alguns sacos são muito pequenos; outros, grandes; o meu tem tamanho razoável, mas boa parte das palavras se refere a meu distinto marido. Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos. Ele se safava de todas, outra de suas especialidades: safar-se.
Ele sempre foi muito convincente. Muita gente acreditava que sua versão dos acontecimentos era verdadeira, com, talvez mais, talvez menos, alguns assassinatos, algumas lindas mulheres seduzidas e vagos monstros de um olho só. Até eu acreditava nele, de vez em quando. Sabia que era ardiloso e mentia, mas não imaginava que fosse capaz de me enganar e de me contar mentiras. Não fui fiel? Não esperei, e esperei, e esperei, apesar da tentação - quase compulsão - de desistir? E o que me restou, quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras mulheres. Por que não podem todas ser tão circunspectas, confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os cantores, os rapsodos. Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês - sim, nos de vocês! Mas, quando tento gritar, pareço uma coruja.
Claro, eu desconfiava da ligeireza dele, da esperteza, da astúcia, da - como dizer? - da sua falta de escrúpulos, mas fingia não ver nada. Ficava de boca fechada; ou, se a abrisse, só elogiava. Não refutava, não fazia perguntas inconvenientes, não me aprofundava. Queria finais felizes naquela época, e os finais felizes são alcançados quando mantemos certas portas trancadas e dormimos na hora da confusão.
Contudo, quando os principais eventos passaram e o caso se tornou menos legendário, me dei conta de quantas pessoas riam de mim pelas costas - elas zombavam, contavam anedotas a meu respeito, piadas sujas e limpas; me transformaram numa história, ou em várias histórias, embora não fossem do tipo que eu gostaria de ouvir sobre minha pessoa. O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso esperei mais um pouco.
Agora que todos os outros perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma .
(...)
Antigamente, as pessoas ririam se eu bancasse o menestrel - não há nada mais ridículo do que uma aristocrata que se mete a artista -, mas a esta altura não me importo mais com a opinião pública. A opinião de quem está aqui: das sombras, dos ecos. Portanto, vou tecer minha própria narrativa.
A dificuldade é não ter boca pela qual falar. Não consigo que me compreendam, não as pessoas do mundo de vocês, do mundo dos corpos, das línguas e dos dedos; na maior parte do tempo não tenho ouvintes, não do seu lado do rio. Entre vocês, quem consegue captar um murmúrio perdido, um grito solto, facilmente confunde minhas palavras com o som da brisa dos juncos, morcegos ao crepúsculo, pesadelos.
Mas sempre fui determinada. Paciente, diziam.
Gosto de ver o final da história".
"Os deuses nunca desprezavam a chance de arranjar encrenca. Na verdade, adoravam. A visão dos olhos de um ou uma mortal a fritar nas órbitas graças a uma overdose de sexo com os deuses provocava gargalhadas terríveis. Havia certa maldade infantil nos deuses. Posso dizer isso porque não possuo mais um corpo, superei esse tipo de sofrimento, e além disso os deuses não estão escutando. No mundo de hoje as pessoas não recebem mais visitas dos deuses como antigamente, a não ser que tomem drogas".
"Esse era um dos seus grandes segredos para convencer os outros - ele conseguia fazer uma pessoa acreditar que os dois enfrentavam um obstáculo comum e que precisavam unir forças para superá-lo. Conseguia fazer qualquer um colaborar em sua pequena conspiração inventada. Ninguém era capaz de fazer isso melhor do que ele: aí, as histórias não mentem. E ele tinha mesmo uma voz maravilhosa, profunda e sonora".
*

domingo, 22 de janeiro de 2017

Bauman por Bauman

 
"Em nenhuma época esteve tão presente a máxima de John Donne ("Nenhum homem é uma ilha...Cada homem é parte do continente". "A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade. Por isso nunca procures saber por quem os sins dobram, eles dobram por ti."). Não se trata mais da evocação puramente  poética de uma compaixão nobre, porém idealista. É agora um relato factual de vínculos genuínos, tangíveis, que conectam a difícil condição de todos nós. Somos todos responsáveis por qualquer coisa que aconteça a qualquer um de nós, e o postulado de assumir responsabilidade por nossa responsabilidade envolve agora a necessidade de aliviar sofrimentos em qualquer canto do planta em que eles possam ocorrer, incluindo os sofrimentos mais distantes.
Esse novo desafio amplia até o limite (ou talvez mesmo além dele) a durabilidade do "impulso moral", considerando-se que por muitos séculos esse impulso costumava operar (e assim aprendeu a se sentir realmente em casa) apenas na proximidade do outro. Agora ele precisa abarcar um outro distante, na verdade "abstrato", um "outro" que é improvável conhecer, e que dificilmente será algum dia confrontado cara a cara.
Intrépidas e infatigáveis equipes de TV trazem para os nossos lares, de tempos em tempos, as imagens dessa miséria distante. Isso tem um efeito instantâneo, como acontece com toda proximidade do sofrimento humano. Ajusta a enormidade das novas responsabilidades à capacidade de nossa sensibilidade moral. Seria isso, contudo, suficiente para avaliar a magnitude dos desafios? O resultado comum das campanhas promovidas pela mídia é (...) uma sucessão de "farras piedosas" e períodos de "fadiga da caridade". De tempos em tempos ocorrem surtos de compaixão, mas é só isso, e não mais do que nossos sentimentos morais podem suportar por si mesmos. Logo aplacados, eles tiram uma soneca até o próximo "evento" em que serão uma vez mais brutalmente acordados para o fato de que nada pode ser alterado no que se refere ao volume e à profundidade da miséria humana, a despeito dessas breves explosões de piedade.
Por sua natureza, as "farras piedosas" conduzidas pela mídia são mal-equipadas para sedimentar um vínculo institucionalizado sólido, permanente e efetivo, para além dos surtos temporários de sentimentos do tipo "somos todos parte do mesmo continente". Comprovam a horrorosa semelhança do sofrimento humano, mas ficam muito longe de expor suas causas, como os meios de subsistência destruídos pelo livre comércio, os solos devastados pela monocultura imposta pelo mercado ou as inimizades tribais apoiadas e instigadas pela indústria e pelo tráfico de armamentos que enchem os cofres de nossos tesouro e aumentam o PIB doméstico.
Não admira que as raízes da miséria permaneçam intactas, independentemente do êxito que possam ter tido as sucessivas campanhas de "ajuda humanitária". Além disso, nossa própria responsabilidade direta ou indireta pela miséria que lamentamos com tanta sinceridade permanece encoberta. É como se não devêssemos coisa alguma a essas pessoas miseráveis. O que fazemos por elas não deveria ser visto como uma tentativa de quitar nossas dívidas e nos arrepender de nossos pecados, mas louvado como expressão de nossos nobres sentimentos, aumentando assim nossa glória moral".
 
(Bauman por Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 137-138).
 
 


sábado, 14 de novembro de 2015

Adeus à diferença - Vladimir Safatle

 
Se a primeira dimensão do igualitarismo diz respeito à luta contra a desigualdade econômica, a segunda se refere à estrutura das demandas de reconhecimento na vida social. Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos chamar de necessidade de uma política da indiferença. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da constatação do esgotamento da diferença como valor maior para a ação política.
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na "diferença" o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, as exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim.
Sabemos como multiculturalismo diz respeito, inicialmente, a uma lógica da ação política baseada no reconhecimento institucionalizado da diversidade cultural própria às sociedades multirraciais ou às sociedades compostas por comunidades linguísticas distintas. Isso implica transformar o problema da tolerância à diversidade cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidades culturais, no problema político fundamental. Dessa forma, abriram-se as portas para certa secundarização de questões marxistas tradicionais veiculadas à centralidade de processos de redistribuição e de conflito de classe na determinação da ação política. No limite, os conflitos fundamentais no interior do universo social foram compreendidos como conflitos culturais.
Por um lado, tal dinâmica teve sua importância por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade (como negros, mulheres e homossexuais). No entanto, a partir de um certo momento, começou a funcionar de maneira contrária àquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformação de conflitos sociais uma equação usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes árabes africanos e, assim, patrocinarem uma política brutal de estigmatização e exclusão política travestida de choque de civilizações.
Desse modo, posso estigmatizar pobres aproveitando-me do fato de eles serem culturalmente diferentes, criando com isso situações de profunda precarização do trabalho, de contínua insegurança de trabalhadores, que são espoliados de todo e qualquer direito por serem imigrantes. Um clássico conflito de classe e espoliação transformou-se em choque civilizatório.
Ou seja, há uma linha reta que vai da tolerância multicultural à perpetuação racista da exclusão daqueles para quem nossos valores nunca deram prova de inclusão modernizadora. Afinal, trata-se de dizer que o único lugar onde a diferença pode florescer em liberdade é em nosso Ocidente defendido por mega-aparatos securitários contra terroristas. Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que não se adaptam a nosso "campo das diferenças" não são diferentes, mas simplesmente irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão.
Este é um ponto importante por nos mostrar como a organização discursiva do campo social das diferenças é sempre solidária à exclusão de elementos que não poderão ser representados por esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que não serão mais ouvidos, elementos cujas palavras serão definidas por nós como desprovidas de racionalidade e de possibilidade de reconhecimento. A única maneira de evitar isso é organizar o campo social a partir da equação das diferenças.
A equação das diferenças, tão presente nas dinâmicas multiculturais, parte da seguinte questão: até onde podemos suportar uma diferença? Esta é, no entanto, uma péssima questão. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primeiramente a partir da sua diferença à minha identidade. Como se minha identidade já estivesse definida e simplesmente se comparasse à identidade do outro. Nada mais falso.
(...) O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado francês, kosovar, judeu, flamengo, inglês, brasileiro etc. Condição maior para discutir a possibilidade de construção de Estados pós-identitários, que não precisem repetir compulsivamente identidades ilusórias construídas pelos interesses políticos do dia.
(...) Contra aqueles que não veem relação alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionária do catolicismo e política multicultural das diferenças, valeria a pena fazer aqui algumas considerações. Não podemos perder de vista que se trata, no fundo, de impor uma escolha forçada. Ou de um modo de experiência social da diferença que se realiza na multiplicação de maneiras de ser coerente com os imperativos da modernidade capitalista. Ou a procura pela reconstituição social de vínculos identitários substanciais patrocinada pela polícia e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nação, família etc.).
Diante dessa situação, devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. Nossas formas hegemônicas de vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a geografia mental da liberalização e da restrição.
 
(In. A esquerda não ousa dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 26-33).


Agir para não pensar - Vladimir Safatle

 
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por que perder tempo com teoria e discussão sobre princípios se as urgências práticas da política parecerem tão prementes. Nesse sentido, valeria a pena lembra-lo dos parágrafos iniciais de Carta ao humanismo, em que Martin Heidegger é confrontado com uma pergunta a respeito da relação entre pensamento e práxis. Marx já dissera que a função da filosofia era transformar o mundo, e não simplesmente pensa-lo. Heidegger faz um adendo de rara precisão: o pensamento age enquanto pensa.
Na verdade, esse agir próprio ao pensamento é talvez o agir mais difícil e decisivo. Não se trata da velha crença de o pensamento, no fundo, ser um subterfúgio para a ação, uma compensação quando não somos capazes de agir. Se podemos dizer que o pensamento age quando pensa, é porque ele é a única atividade que tem  força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema, qual é o verdadeiro problema que temos diante de nós e que nos impulsiona a agir. É o pensamento que nos permite compreender como há uma série de ações que são, apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado já está decidido de antemão.
A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais "customizadas" e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.
Quando realmente pensamos, conseguimos ir além dessa redução da liberdade a um simples livre-arbítrio que me faz escolher no interior de um quadro que me é imposto sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando aparece, exige que toda ação não efetiva pare, a fim de que o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos como, muitas vezes, agimos para não pensar, pois pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento.
Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. E talvez devamos colocar novamente esta questão simples: para uma perspectiva de esquerda, quais são os verdadeiros problemas?
 
(In. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas, 2012, pp. 17-19).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme:









sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Um elogio ao desamparo - fragmento do livro "Circuito dos afetos" de Safatle

 
"Poderíamos recuperar a beatitude, como um dia falou Spinoza, poderíamos falar do contentamento, tal como um dia falou Kant, ou mesmo tentar recuperar a felicidade, como atualmente faz Badiou, mas essas seriam formas de ignorar que, para criar sujeitos, é necessário inicialmente desamparar-se. Pois é necessário mover-se para fora do que nos promete amparo, sair fora da ordem que nos individualiza, que nos predica no interior da situação atual. Há uma compreensão da inevitabilidade do impossível, do colapso do nosso sistema de possíveis que faz de um indivíduo um sujeito.
Nesse sentido, há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. Talvez fosse mais correto chamar tal demanda de cuidado pelo Outro de "frustração". Mas há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício da liberdade. Uma liberdade que consiste na não sujeição ao Outro, em uma, como bem disse uma vez Derrida, "heteronomia sem sujeição". Uma não sujeição que não é criação de ilusões autárquicas de autonomia, mas capacidade de se relacionar àquilo que, no Outro, o despossui de si mesmo. Capacidade de se deixar afetar por algo que me move como uma força heterônoma e que, ao mesmo tempo, é profundamente desprovido de lugar do Outro, algo que desampara o Outro. Assim, sou causa da minha própria transformação ao me implicar com algo que, ao mesmo tempo, me é heterônomo, mas me é interno sem me ser exatamente próprio. O que talvez seja o sentido mas profundo de uma heteronomia sem servidão. O que também não poderia ser diferente, já que amar alguém é amar suas linhas de fuga".
 
(In. Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 39-40).

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Entre judeus e palestinos - trecho do livro "Violência" de Slavoj Zizek

 
 
"Então vamos à grande questão: qual seria hoje o ato ético-político verdadeiramente radical no Oriente Médio? Tanto para os israelitas como para os árabes consistiria no gesto de renúncia ao controle (político) sobre Jerusalém, isto é, a promoção da transformação da Cidade Velha de Jerusalém em um lugar extraestatal de culto religioso sob o controle (temporário) de uma força internacional neutra. O que os dois lados deveriam aceitar é que, ao renunciarem ao controle político de Jerusalém, não estão efetivamente renunciando a nada. Antes, estão conseguindo a elevação de Jerusalém a um autêntico lugar sagrado e extrapolítico. O que perderiam seria precisamente e só o que já, por si próprio, merece ser perdido: a redução da religião a uma parada em jogo na peça do poder político. Seria um verdadeiro acontecimento no Oriente Médio a explosão da verdadeira universalidade política o sentido de São Paulo: "Para nós não existem nem judeus nem palestinos". Ambos os lados teriam de compreender que essa renúncia do Estado-nação etnicamente "puro" seria uma libertação para eles e não um simples sacrifício que cada um faria ao outro.
Recordemos a história do círculo de giz caucasiano em que Bertolt Brecht baseou uma de suas últimas peças. Em tempos antigos, em algum lugar no Cáucaso, uma mãe biológica e uma mãe adotiva recorreram a um juiz para que este decidisse a qual delas pertencia a criança. O juiz desenhou um círculo de giz no chão, pôs o bebê no meio dele e disse às duas mulheres que cada uma delas agarrasse a criança por um braço; a criança pertenceria àquela que a conseguisse tirar para fora do círculo. Quando a mãe real viu que a criança estava se machucando por ser puxada em direções opostas, a compaixão levou-a a soltar o braço que segurava. Evidentemente, foi a ela que o juiz deu o filho, alegando que a mulher demonstrara um autêntico amor maternal. Segundo a mesma lógica, poderíamos imaginar um círculo de giz em Jerusalém. Aquele que amasse verdadeiramente Jerusalém preferiria perde-la a vê-la dilacerada pela disputa. Evidentemente, a suprema ironia é aqui o  fato de a pequena história brechtiana ser uma evidente variante do juízo do Rei Salomão que aparece no Antigo Testamento, que, reconhecendo que não havia maneira justa de resolver o dilema maternal, propôs a seguinte solução de Estado: a criança deveria ser cortada em duas, ficando uma metade para cada mãe. A verdadeira mãe, é claro, desistiu da reivindicação.
O que os judeus e os palestinos têm em comum é o fato de uma existência diaspórica fazer parte de suas vidas, parte de sua própria identidade. E se ambos se unissem na base deste aspecto - não na base de ocuparem, possuírem ou dividirem o mesmo território, mas na de manterem-no partilhado, aberto como refúgio aos condenados à errância? E se Jerusalém se transformasse não no lugar de um ou do outro, mas no lugar dos sem-lugar? Tal solidariedade partilhada é a única base possível para uma verdadeira reconciliação: para o entendimento de que, ao combatermos o outro, combatemos o que há de mais vulnerável em nossa própria vida. É por isso que, com plena consciência da seriedade do conflito e de suas consequências potenciais, deveríamos insistir mais do que nunca na ideia de que estamos diante de um falso conflito, de um conflito que obscurece e mistifica a verdadeira linha de frente".
(Violência. Slavoj Zizek. São Paulo: Boitempo, 2014, pp. 106-107).
 


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Amor, poesia, sabedoria - Edgar Morin

 
 
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"Terminarei fornecendo à pesquisa sobre o amor a fórmula de Rimbaud, a da pesquisa de uma verdade que se situe, simultaneamente, numa alma e num corpo" .
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"A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro".
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"A totalidade é a não-verdade" .
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"Mas o amor é paradoxal como a vida e, por isso, há amores que duram, do mesmo modo que dura uma vida".
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Ebook disponível no link:
 

terça-feira, 22 de abril de 2014

Esperança do mundo - Albert Camus


"No mosteiro de São Francisco em Fiesole, um pequeno pátio guarnecido de arcadas, tomado por flores vermelhas, pelo sol e por abelhas amarelas e pretas. Em um canto, um regador verde. Por toda parte, o zunido de moscas. Temperado de calor, o pequeno jardim fumega suavemente. Sentado no chão, eu penso nos franciscanos cujos aposentos vi há pouco, cuja inspiração percebo agora, e sinto realmente que, se eles têm razão, é junto de mim que eles têm razão. Atrás da parede em que me apoio, sei que existe a colina que resvala em direção à cidade e essa dádiva de toda Florença com seus ciprestes. Mas esse esplendor do mundo é como a justificação desses homens. E deposito todo meu orgulho em acreditar que ele também é o meu e o de todos os homens de minha raça - que sabem que uma pobreza extrema encontra sempre o luxo e a riqueza do mundo. Se eles se despem, é por uma vida maior ( e não por uma outra vida). É o único sentido que posso atribuir à palavra "desnudamento". "Estar nu" conserva sempre um sentido de liberdade física e esse acordo da mão e das flores, esse entendimento amoroso da terra e do homem liberado do humano, ah eu bem que me converteria se essa já não fosse minha religião.
Hoje, me sinto livre em relação ao meu passado e ao que perdi. Só quero esse aperto e esse espaço fechado - esse fervor lúcido e paciente. E como pão quente que se aperta e que se reduz a quase nada, eu quero apenas ter minha vida nas mãos, como aqueles homens que souberam encerrar suas vidas entre flores e colunas. E ainda essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. Lamber a vida como um torrão doce, moldá-la, afiá-la, amá-la enfim, como se busca a palavra, a imagem, a frase definitiva, aquilo ou aquela que conclui, que detém, com o que se partirá e que fará dali em diante todo o colorido do nosso olhar. Eu bem que poderia parar aí, encontrar finalmente o termo de um ano de vida desenfreada e louca. Essa presença de mim diante de mim mesmo - meu esforço é levá-la até o limite, mantê-la diante de todas as faces de minha vida, mesmo ao preço da solidão, que eu sei agora o quanto é difícil suportar. Não ceder: tudo está ali. Não consentir, não trair. Toda minha violência me ajuda nisso e, no  ponto em que ela me leva, meu amor me reencontra e, com ele, a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
Sempre que cedemos (que eu cedo) às próprias vaidades, sempre que pensamos e vivemos para "parecer", nos traímos. Todas as vezes, sempre foi a desgraça de querer parecer que me diminuiu diante do verdadeiro. Não precisamos nos entregar aos outros, mas somente àqueles que amamos. Pois nesse caso não se trata mais de se entregar para parecer, mas somente para oferecer. Quando é necessário, um homem tem muito mais força do que parece. Ir até o limite é saber guardar seu segredo. Eu sofri por ser sozinho, mas, por ter guardado meu segredo, venci o sofrimento de ser sozinho. E hoje não conheço maior glória que viver sozinho e ignorado. Escrever, minha alegria profunda" Consentir ao mundo e ao prazer - mas somente no desnudamento. Eu não queria ser digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal "eu sou feliz".
Certa continuidade no desespero acaba por gerar a alegria. E os mesmos homens que, em San Francesco, vivem diante das flores vermelhas, têm seu aposento o crânio que alimenta suas meditações, com Florença pela janela e a morte sobre a mesa. Em minha opinião, se eu me sinto em um ponto decisivo da minha vida, não é por causa do que adquiri, mas do que perdi. Sinto que tenho uma extrema e profunda força. É graças a ela que devo viver, da maneira como desejo. Se hoje me encontro tão distante de tudo, é porque não tenho outra capacidade além de amar e admirar. Vida com a aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão.
Hoje não é como uma hesitação entre sim e não. Mas hoje é sim e é não. Não e revolta diante de tudo o que não são lágrimas e e sol. Sim para a minha vida da qual sinto pela primeira vez a promessa por vir. Um ano fervilhante e desordenado que termina e a Itália; a incerteza do futuro, mas a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo. Aí está minha pobreza e única riqueza. É como se eu recomeçasse a partida; nem mais feliz nem mais infeliz. Mas com a consciência de minhas capacidades e, o desprezo de minhas vaidades e essa febre, lúcida, que me lança diante de meu destino".


(Anotação feita em 15/09/1937 - do caderno: Esperança do mundo (1935-37). São Paulo: Hedra, 2014, p.66-69.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O olho e o espírito - Merleau Ponty

 
"É preciso que o pensamento de ciência - pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral- torne a se colocar num "há" prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os "outros", que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me freqüentam, que freqüento, com os quais freqüento um único Ser atual, presente, como animal nenhum freqüentou os de sua espécie, seu território ou seu meio" - (p.14-5).
*
"Mas a humanidade não é produzida como um efeito por nossas articulações, pela implantação de nossos olhos (e muito menos pela existência dos espelhos que, não obstante, são os únicos a tornar visível para nós nosso corpo inteiro). Essas contingências e outras semelhantes, sem as quais não haveria homem, não fazem, por simples soma, que haja um só homem.
A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras nem, aliás, a descida do autômato de um espírito vindo de alhures, o que suporia ainda que o próprio corpo é sem interior e sem "si". Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer..." - (p.17-8).
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"Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo"- (p.18).
*
"Não se pode fazer um inventário limitativo do visível como tampouco dos usos possíveis de uma língua ou somente de seu vocabulário e de suas frases. Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi ...sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade" (p.19-20).
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"...disse André Marchand na esteira de Klee: "Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram as árvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando [...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e não querer traspassá-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pinto talvez para surgir". O que chamam inspiração deveria ser tomado ao pé da letra: há realmente inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis que não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado. Diz-se que um homem nasceu no instante em que aquilo que no âmago do corpo materno era apenas um visível virtual se faz simultaneamente visível para nós e para
si. A visão do pintor é um nascimento continuado"- (p.22).


 (In. O olho e o espírito. São Paulo: Cosacnaify, 2004).



terça-feira, 3 de setembro de 2013

O inconsciente estético - Jacques Ranciere

Não se tratará, aqui, de psicanalisar Freud. As figuras literárias e artísticas por ele escolhidas não me interessam porque remeteriam ao romance analítico do Fundador.
Interessa-me saber a que servem de prova e o que lhes permite servir de... prova. Ora, em sua ampla generalidade, essas figuras servem para provar isto: existe sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece evidente, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe anódino. Tais figuras não são o material com que a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura. Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante. Em suma, se o médico Freud interpreta fatos "anódinos", desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses "exemplos" sirvam à sua demonstração, é porque eles são em si mesmos testemunhos de um determinado inconsciente" - (p.10-1).
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"Tudo fala, isso quer dizer também que as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. A grande regra freudiana de que não existem "detalhes" desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética. Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios.
Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra. Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo. (...) o romancista de Os miseráveis nos mergulha num esgoto que diz tudo, como um filósofo cínico, e reúne em pé de igualdade tudo aquilo que a civilização utiliza e rejeita, suas máscaras e insígnias, bem como seus utensílios cotidianos. O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos. Ele afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa ou o esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro, como farão o sonho ou o ato falho - mas também a mercadoria marxiana -, desde que sejam primeiro transformados em elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria" - (p.36-8).
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"O inconsciente estético, consubstancial ao regime estético da arte, se manifesta na polaridade dessa dupla cena da palavra muda: de um lado, a palavra escrita nos corpos, que deve ser restituída à sua significação linguageira por um trabal...ho de decifração e de reescrita; do outro, a palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do Inconsciente" - (p.41).
 
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"a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho - bobo ou sujo por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da "fantasia", que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica" - (p.47-8).
 
(O inconsciente estético. Jacques Ranciere. São Paulo: Editora 34, 2009).



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Diário de luto - Roland Barthes (trechos)

"Irritação. Não, o luto (a depressão) é bem diferente de uma doença. De que desejam curar-me? Para encontrar que estado, que vida? Se há trabalho, aquele que nascer dele não será um ser comum, mas um ser moral, um sujeito do valor - e não da integração" (p.8).
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"Solidão = não ter ninguém em casa a quem dizer: voltarei a tantas horas, ou a quem poder telefonar (dizer): pronto, cheguei" - (p.42).
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"Meu espanto - e, por assim dizer, minha inquietude (meu mal-estar) vem do fato de que, na verdade, não é uma falta (não posso descrever isso como uma falta, minha vida não está desorganizada), mas uma ferida, algo que dói no coração do amor" - (p.63).
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"Frio, noite, inverno. Estou aquecido, porém sozinho. E compreendo que será preciso habituar-me a estar naturalmente nesta solidão, nela agir, trabalhar, acompanhado, colado à "presença da ausência" - (p. 67).
"Não posso suportar que reduzam - que generalizem - meu pesar (...) é como se o roubassem de mim" - (p.69).
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"O Irremediável é, ao mesmo tempo, o que me dilacera e o que me contém..." - (p.87).
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"Recomeçar sem descanso. Sísifo" - (p.136).
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Em mim, lutam a morte e a vida (descontinuidade e como que ambiguidade do luto) (quem vencerá?) - mas, por enquanto, uma vida boba (pequenas ocupações, pequenos interesses, pequenos encontros).
O problema dialético é que a luta desemboque numa vida inteligente, e não uma vida-écran" - (p. 147).
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"Luto.
Impossibilidade - indignidade - de confiar a uma droga - sob pretexto de depressão - o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma "possessão" - uma alienação (algo que nos torna estrangeiros) - enquanto ele é um bem essencial, íntimo..." - (p. 159).
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"Habito minha tristeza e isso me faz feliz.
Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" - (p.169).
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"Continuo (dolorosamente) espantado de poder - finalmente - viver com minha tristeza, o que quer dizer, literalmente, que ela é suportável. Mas - sem dúvida - é porque posso, bem ou mal (isto é, com o sentimento de não o conseguir) dizê-la, fraseá-la. Minha cultura, meu gosto pela escrita me dá esse poder apotropaico, ou de integração: integro, pela linguagem.
Minha tristeza é inexprimível mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra "intolerável" realiza, imediatamente, certa tolerância" - (p. 171).
 
(In. Diário de Luto. Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2011).
 


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Carta a D. - André Gorz (trechos).

"...carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher" - (p.5).
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"Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de "experiência fundadora": a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós" - (p.11).
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"Você estava condenada a ser forte porque todo o seu universo era precário. Eu sempre senti, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade subjacente. Eu gostava da sua fragilidade superada, admirava sua força frágil. Nós éramos, eu e voc...ê, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado" - (p.12).
"...o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais (...). Era isso: vo...cê havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia (...). Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima (...). Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei não existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou" - (p.16).
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"Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas trinta páginas de O Ser e O Nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras.
Na época..., não procurei a resposta para tal questão na experiência que estava vivendo. Não descobri, como faço agora, qual era o alicerce do nosso amor. Nem que o fato de estar dolorosa e deliciosamente obcecado pela coincidência sempre prometida e evanescente do gosto que temos pelos nossos corpos - e quando digo corpo, não esqueço que "a alma é o corpo" tanto para Merleau-Ponty como para Sartre -, nos remete a experiências fundadoras cujas raízes estão mergulhadas na infância: na descoberta primeira, originária, das emoções que uma voz, um cheiro, uma cor de pele, um jeito de se mover e de ser, que serão para sempre a norma ideal, têm ressonância em mim. É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou com ela. Estamos aquém e além da filosofia" - (p.20).

(In. Carta a D. São Paulo: CosacNaify, 2012).
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André Gorz, jornalista austríaco radicado na França, reconhecido por seus trabalhos nas áreas de filosofia e sociologia, surpreendeu ao mundo ao escrever Carta a D., uma pungente declaração de amor a Dorine, sua companheira por quase sessenta anos. Dirigindo-se à mulher doente, Gorz relata a história de paixão, cumplicidade e militância (com propostas inovadoras no setor trabalhista e uma atuação pioneira em ecologia política) que os uniu para sempre desde que se conheceram em Lausanne, na Suíça, em outubro de 1947. Com o agravamento irremediável da doença de Dorine, os dois se suicidaram e seus corpos foram encontrados lado a lado em 24 de setembro de 2007.