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quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sim, eu a amava - Samuel Beckett

 


"Sim, eu a amava, é o nome que eu dava, que ainda dou, ai de mim, ao que eu fazia, naquela época. Eu não tinha dados sobre isso, nunca tendo amado antes, mas tinha ouvido falar da coisa, naturalmente, em casa, na escola, no bordel, na igreja, e tinha lido romances, em prosa e em verso, sob a direção do meu tutor, em inglês, francês, italiano, alemão, nos quais ele era tratado em detalhes. Portanto eu era capaz, apesar de tudo, de dar um nome ao que eu fazia, quando me via de repente escrevendo a palavra Lulu (...). Eu pensava em Lulu e, se isso não é tudo, já é o suficiente, na minha opinião. Aliás, já estou farto desse nome, Lulu, e vou lhe dar outro, de uma sílaba dessa vez, Anne por exemplo, não é uma sílaba mas não importa. Então eu pensava em Anne, eu que tinha aprendido a não pensar em nada, a não ser nas minhas dores, muito rapidamente, depois nas medidas para não morrer de fome, ou de frio, ou de vergonha, mas jamais, sob nenhum pretexto, nos seres vivos enquanto tais (eu me pergunto o que isso quer dizer), não importando o que eu possa ter dito ou possa me acontecer dizer a esse respeito. Pois eu sempre falei, sempre falarei de coisas que nunca existiram, ou que existiram, se quiserem, e que provavelmente sempre existirão, mas não com a existência que atribuo a elas (...). Eu a admirava, apesar da escuridão, apesar do meu incômodo, o modo como a água parada, ou que corre lentamente, se ergue, como que sedenta, em direção à que cai (...). É preciso considerar que eu estava fora de mim naquela época. Eu não me sentia bem ao lado dela, mas pelo menos me sentia livre para pensar em outra coisa que não ela, e isso já era enorme, nas velhas coisas experimentadas, uma depois da outra, e assim pouco a pouco em nada, como que descendo gradualmente em águas profundas. E eu sabia que, abandonando-a, perderia essa liberdade (...).Teriam sido necessários outros amores, talvez. Mas o amor não se encomenda".

(In. Primeiro amor. Samuel Beckett. São Paulo: Cosacnaify, 2004).

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A gorda - Isabela Figueiredo

"Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo. Ou seja, que arrastava. Foi como se os médios me tivessem separado de um gêmeo siamês que se suicidara de desgosto e me dissessem, no final, "fiemos o osso trabalho, faça agora o seu e aguente-se". Aprenda a viver sozinha".
 Com a gastrectomia deixei de conseguir comer. Bebia caldos, leite e sumos. Sentia doer o corpo e a mente. Sentia fome profunda, mas tinham-me cortado metade do estômago e o que me restava era uma ferida. Nos primeiros meses perdi força e cabelo, e caminhava lentamente, adaptando-me. O meu corpo diminuía à razão de duzentos e cinquenta gramas por dia, e comecei a ficar leve, quase a levantar voo, como não me sentia desde a infância. Subia oito andares sem ficar a arfar e podia continuar mais oito, os que fossem necessários, porque nada me detinha. Testava-me através de diversos esforços. "Vamos lá ver se consigo caminhar vinte quilômetros", e conseguia. Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida" - (p. 17-18).
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"Sabia viver sem os que amava, mas sem escrita a vida não tinha por onde continuar. A estrada acabava. O ruído colossal das marés de setembro, nas praias de Comporta, esvaziava-se. Sem escrita não havia uma casa onde chegar, tirar o casaco, pendurá-lo, acarinhar a cadela, leva-la à rua, regressar, alimentá-la, sentar-me no sofá e apreciar o gesto. Podia viver sem tomar banho, sem beijos, mas sem escrita não. Ninguém entendia isso, e viraram-me as costas como se referisse uma mania, um vício de gente bastada que se pode dar a luxos. "Estás maluca". Houve uma altura, quando a prisão que a minha vida constituía se tornou demasiado clara e crua, em que comecei a ver cada vez pior. à medida que aumentava a minha visão interior do mundo, piorava a exterior. A oftalmologista teve de me aumentar as diotropias afirmando ser coisa incompreensível, porque a miopia tinha tendência a estabilizar na adultícia, não existindo outras doenças, mas em mim cavalgava sem razão. Acordava com dificuldade e escrevia para me aguentar, dia após dia, mesmo que nada tivesse a dizer. Escrevia, estou só aqui à espera". A compreensão é um castigo. Nunca mais se consegue ignorar a jaula nem o julgo" - (p. 45).
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"A história não se compadece com emoções privadas e é sua frieza implacável que concede à pequena resistência uma dimensão épica. Tudo se atravessa como se não estivéssemos sempre mortos e vivos, no mesmo instante, lutando por adiar a transição" - (p. 76).
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"Ninguém merece estar vivo e impedido de viver" - (p. 93).
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"Dir-me-ão que foi uma pena desperdiçar a minha vida esperando por um homem que passou ausente por toda a minha juventude. As pessoas têm sempre resposta fácil, mas eu não podia saber que não viria a existir outro homem para mim. Era este ou nada.
Imagino-nos abraçados de novo, quando ele regressar. As minhas fantasias de sempre. Dirão, "ah, que parvoíce de adolescente". Talvez, mas não podem imaginar como esta carta e este sonho me alentam, me dão um sentido, me tornam aquilo naquilo que vim cá ser.
Respondo imediatamente. Escrevo que aguardo a sua volta com ansiedade. Que imagino que não possa ser amanhã, mas que venha quando puder. Que o espero. Que tenho a chave debaixo do tapete. Que se eu não estiver, entre e se sente na sala à minha espera (...). Escrevo sim, vem, volta, vem, regressa (...). Nada no mundo é capaz de conter o amor incompleto, decepado por uma porta que a vida nos fechou n cara, sem contemplações" - (p. 201). 
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(In. A gorda. São Paulo: Todavia: 2018).

Sobre o livro:
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domingo, 13 de janeiro de 2019

O amor - por Valter Hugo Mãe

"Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido" - (p. 26).
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"O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução" (p.45).
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(In. O paraíso são os outros. São Paulo: Biblioteca azul: 2018). 


terça-feira, 20 de novembro de 2018

Christopher Robin - um reencontro inesquecível (trecho).

"- Christopher Robin. Que dia é hoje?
- É hoje.
- Meu dia favorito.
- O meu também, Pooh. O meu também.
- Ontem, quando era amanhã, foi um dia muito agitado pra mim".

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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Mamãe & eu & Mamãe - Maya Angelou (trechos)

"Com frequência me perguntam como consegui vir a ser o que sou. Como eu, nascida negra num país branco, pobre numa sociedade em que a riqueza é adorada e buscada a todo custo, mulher em um ambiente que apenas grandes embarcações e algumas locomotivas são favoravelmente descritas com o pronome feminino - como consegui tornar-me Maya Angelou?
Muitas vezes senti vontade de citar Topsy, a menina negra de A cabana do Pai Tomás. Eu me senti tentada a dizer: "Num sei. Eu cresci, só isso". Mas nunca usei essa resposta, por diversos motivos. Primeiro, porque li esse livro no início da minha adolescência e fiquei constrangida coma garota negra ignorante. Segundo, eu sabia a mulher que me tornei por causa da avó que eu amava e da mãe que vim a adorar.
O amor das duas me instruiu, educou e libertou. Morei com a minha avó paterna dos três aos treze anos de idade. Minha avó nunca me deu um beijo durante todos esses anos. Porém, sempre que havia visitas, ela me intimava a ficar na frente delas (...). "Certo, irmã, põe aí 242, depois 380, depois 174, depois 419; agora some tudo". Falava para as visitas: "Agora prestem atenção. Seu tio Willie já cronometrou o tempo dela. Ela consegue terminar em dois minutos. Esperem só".
Quando eu respondia, ela sorria, toda orgulhosa. "Viram? Minha professorinha".
O amor cura. Cura e liberta. Eu uso apalavra amor não como sentimentalismo, mas como uma condição tão forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir disciplinadamente por nossas veias" - pp.7-8.
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"Senti saudades, mas saia que estavam no melhor lugar para vocês. Eu teria sido uma péssima mãe. Não tinha a menor paciência. Maya, quando você tinha mais ou menos dois anos, você me pediu alguma coisa. Eu estava ocupada conversando, daí você bateu na minha mão, e, sem pensar duas vezes, te dei um tapa tão forte que você caiu da varanda. Isso não significa que eu não te amava; só significa que eu não estava preparada para ser mãe. Estou te explicando isso, não pedindo desculpas. Todos nós estaríamos arrependidos se eu tivesse ficado com vocês" pp.29-30 [Vivian Baxter explicando para a filha Maya o porquê de ter deixado ela e o irmão na casa da avó para que esta os criasse].
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"A única maneira de alguém tirar vantagem e vocês é se vocês acharem que podem conseguir alguma coisa de graça" -p.32
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"Pensei em minha mãe e percebi que ela era impressionante. Ela nunca me fez sentir como se tivesse envergonhado nossa família. O bebê não fora planejado e eutéria que repensar meus planos de estudos, mas, para Vivian Baxter, isso era simplesmente a vida sendo o que é. Ter um filho sem se casar não tinha sido errado. Era apenas algo ligeiramente inconveniente" - p.71
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"Vivian me deu tudo o que podia dar (...). Não refletiu que, sendo ela uma mulher, não poderia ser um homem, que como mãe, era incapaz de ser pai" - p.164

(In. Mamãe & eu & Mamãe. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018).

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sei porque canta o pássaro na gaiola - Maya Angelou (trecho)

"Esse incidente tornou-se uma das pequenas lendas de Stamps. Uns anos antes de o Bailey e eu chegarmos à povoação, um homem foi perseguido por ter agredido sexualmente uma mulher branca. Quando tentava fugir, correu para dentro da Loja. A Mãezinha e o Tio Willie esconderam-no atrás do guarda-fatos até ser noite, deram-lhe mantimentos para uma viagem e mandaram-no ir à sua vida. Foi, no entanto, detido, e no tribunal, quando foi interrogado acerca dos seus movimentos no dia do crime, respondeu que, quando soube que andavam à sua procura, se refugiou na Loja de Mrs. Henderson.
O juiz pediu para convocarem Mrs. Henderson para ser ouvida e, quando a Mãezinha chegou e disse que era Mrs. Henderson, o juiz, o meirinho e outros brancos presentes na sala riram-se. O juiz tinha cometido uma gafe ao chamar "senhora" a uma mulher negra, mas ele era de Pine Bluff e nem lhe passou pela cabeça que a proprietária de uma loja na tal vila pudesse ser negra. Os brancos divertiram-se durante muito tempo à custa desse incidente, e os negros acharam que o corrido era prova do valor e excelência da minha avó" - (p.52).
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   "As pessoas de Stamps costumavam dizer que os brancos da nossa terra eram tão preconceituosos, que um negro nem sequer podia comprar gelado de baunilha. A não ser em 4 de Julho. Nos outros dias, tinha que se contentar com chocolate" - (p.53).
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"Mas, acima de tudo, o que suscitava mais inveja era a riqueza que lhes consentia o desperdício. Tinham tanta roupa que até davam vestidos em perfeito estado, só ligeiramente puídos debaixo dos braços, à turma de costura da nossa escola, para que as meninas mais velhas pudessem treinar.
Embora houvesse sempre generosidade no bairro negro, ela assentava na dor do sacrifício. O que quer que os negros dessem a outros negros provavelmente era tão desesperadamente necessário para quem dava como para quem recebia. Isto levava a que o dar e o receber fossem um intercâmbio precioso.
Eu não compreendia os brancos, nem porque tinham eles o direito de esbanjar dinheiro daquela maneira. Claro está que sabia que Deus também era branco, mas ninguém me convenceria nunca de que era preconceituoso" - (p.53).
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"Mas que mãe e filha se compreendem mutuamente ou sequer se compadecem da sua falta de compreensão recíproca?" -(p.72).


(In. Sei porque canta o pássaro na gaiola. Lisboa: Antígona, 2017).

domingo, 29 de outubro de 2017

A vida com Lacan - Catherine Millot

"Houve um tempo em que eu tinha a sensação de ter aprendido o ser de Lacan em sua essência. De ter uma espécie de intuição de sua relação com o mundo, um acesso misterioso ao lugar íntimo de onde emanava sua ligação com os seres e as coisas, e também com ele próprio. Era como se eu houvesse deslizado para dentro dele.
Essa sensação de apreender sua essência ia de par com a impressão de estar compreendida, no sentido de estar integralmente incluída nessa sua compreensão, cuja extensão me ultrapassava. Seu espírito - sua amplitude, sua profundidade -, seu espírito mental, englobava o meu como uma esfera que contivesse outra menor (...). Não ter nada a dissimular, nenhum mistério a preservar, dava-me uma total liberdade com ele, mas não só. Uma parte essencial de meu ser lhe era entregue, ele tinha sua guarda, eu me sentia aliviada. Vivi a seu lado anos a fio nessa leveza.
Um dia, contudo, ele manipulando as rodelas de barbante que ele tanto gostava de modelar e, de repente, me disse: "está vendo, isso é você". Eu era - como qualquer um, não importa quem - aquele real que escapava ao seu controle, que tanto mal lhe fazia. Vi-me bruscamente compelida a levar em conta o que em mim lhe resistia como só o real resiste.
Quando digo "seu ser", o que entendo por isso? Sua particularidade, sua singularidade, o que nele era irredutível, seu peso de real. Quando hoje tento apreender novamente esse ser, é seu poder de concentração que retorna, sua concentração quase permanente em um objeto de pensamento que ele nunca abandonava. Com o tempo, ele se simplificara ao extremo. De certa maneira, não era nada além disso, essa concentração no estado puro. Ela se confundia com seu desejo, o qual se tornava tangível.
Eu a encontrava em sua maneira de andar, projetado para a rente, a cabeça primeiro, como se carregado por seu peso, recuperando o equilíbrio no passo seguinte. Nessa própria instabilidade, contudo, via-se determinação, ele não se afastava uma polegada de seu caminho, ia até o fim, sempre em linha reta, indiferente aos obstáculos, que ele parecia ignorar e que, de todo modo, não lhe inspiravam qualquer consideração. Gostava de lembrar que era do signo de Capricórnio" (p.5-7).
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"O real é aquilo contra o qual nada podemos, com o que nos chocamos, é o intransponível, o impossível de contornar, de negociar. Para ele, tanto na vida como numa análise, tratava-se de alcança-lo, esse indestrutível núcleo d realidade, e tudo o que o isola, o mantém à distância ou máscara pertence à esfera da frivolidade" - (p.12).
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"Lacan tinha grande apreço pela Roma católica. A tal ponto que fomos visitar um cardeal amigo seu, com quem deixara um exemplar dos Escritos para que entregasse ao papa" - (p.17).
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"Nos primeiros tempos, Lacan, implicante, me dizia que as mulheres assemelhavam-se sempre a algum flagelo. Eu e meu gênero éramos uma inundação. In petto, eu ruminava que ele não erguia nenhum dique contra o pacífico dessa invasão" - (p.26).
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"O real é quando "os pinos não entram nos buraquinhos", ele gostava de dizer. Lacam exprimia frequentemente essa cólera no cotidiano, que fornecia diversos ensejos para al. Então ele nada tinha de teatral e geralmente não se dirigia a ninguém a não ser, digamos, à má vontade do real. Esperar fazia-o quicar de impaciência, fosse num sinal vermelho ou numa passagem de nível. Se demorassem a servi-lo num restaurante, ele reagia imediatamente soltando um grito estridente ou um suspiro semelhante a um grito. E se voltasse ao local, a presteza estava garantida" - (p.35-36).
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"Quando não fazia um monte de perguntas a respeito de um assunto que o intrigava, preferia ficar calado. Saindo de seu silêncio, intervinha com uma tirada brusca, não raro desconcertante: "Quando um homem não é mais um homem, sua mulher o esmaga", lançara subitamente. "Esmaga mesmo?", eu repeti, pasma. Sollers, por sua vez, entendera uma coisa completamente diferente: "Quando uma mulher não é mas uma mulher, ela esmaga seu homem" - (p.42).
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"Um dia, quando eu lhe falava do que vivenciava com o desconforto de ser mulher, ele me disse: "Você não é a única, isso não a torna menos sozinha". Ele não deixava sua plateia se iludir com uma esperança sobre o futuro terapêutico de seus doentes. Na discussão que se seguia à apresentação, depois que o doente saía, não hesitava em afirmar a respeito de um ou outro que ele estava "fodido". Às vezes, aliás, dizia-o ao próprio paciente, o que espantosamente tinha o efeito de aliviá-lo" - (p. 52).

(A vida com Lacan  - Rio de Janeiro: Zahar, 2017).

Sobre o livro:

Catherine Millot no Brasil:

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Dias de abandono - Elena Ferrante (trechos)

"Mostrar-se resistente, sê-lo. Eu tinha que dar um bom exemplo do que eu era. Somente impondo-me esta obrigação poderia me salvar".
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"...estava lá no meio da densidade das árvores sem nome, a mim me parecia mais uma aquarela do que a realidade. Estavam atrás de mim e aos meus lados. Álamos? Cedros? Acácias? Rubiáceas? Nomes ao acaso, o que eu sabia? Ignorava tudo, até o nome das árvores debaixo da minha casa. Se tivesse de escrever, não teria conseguido. Os troncos apareciam-me todos sob uma lupa poderosa. Não havia dist~^anciã entre mim e eles e, ao contrário, a regra reza que para contar é necessário, antes de qualquer coisa, tomar a distância, um metro, um calendário, calcular quanto tempo passou, quando espaço se colocou entre nós e os fatos, as emoções a serem narradas. Eu, ao contrário, sentia que tudo estava sempre em mim, respiração contra respiração. Mesmo naquela ocasião me parecia, por um momento, não estar vestida com minha camisola mas com um longo manto no qual estava pintada a vegetação do parque Valentino, as avenidas, a ponte Principessa Isabella, o rio, o prédio onde morava, até o cão pastor. Por isso estava tão pesada e inchada. Levantei-me choramingando de vergonha e de dor de barriga, a bexiga cheia, eu não aguentava mais".
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"Eu não dava tapas, nunca o havia feito, no máximo eu ameaçava. Mas talvez para as crianças não houvesse diferença alguma entre a ameaça e o que realmente se faz. Eu, pelo menos - agora me lembrava -, quando pequena era assim, talvez até já depois de grande. O que poderia me acontecer caso eu violasse uma proibição de minha mãe acontecia de qualquer jeito, independentemente da violação. As palavras realizavam de imediato o futuro e queimava-me ainda hoje a ferida da punição quando eu nem mesmo me lembrava da culpa do que eu poderia ou gostaria de ter feito. Lembrei-me de uma frase recorrente da minha mãe: "Pare ou te corto as mãos", dizia quando tocava os seus materiais de costureira. E aquelas suas palavras para mim eram como tesouras internas, longas e com um metal bem afiado, que saíam pela boca, mandíbulas de lâmina que se fechavam sobre os pulsos deixando tocos costurados com agulha e linha do carretel.
"Eu nunca te dei tapa nenhum", disse.
"Não é verdade".
"No máximo eu disse que daria. Tem uma boa diferença".
Não há diferença alguma, pensei, e me assustei ouvindo esse pensamento na minha mente".
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"...eu não sabia encontrar uma resposta para a interrogação, qualquer resposta possível parecia-me absurda. Eu estava perdida no onde estou, no que faço. Estava muda ao lado do por quê".
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"Preciso, para escrever bem, para ir até o âmago de cada pergunta, de um lugar menor, mais seguro. Apagar o supérfluo. Restringir o campo. Escrever a verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo".
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"O que aconteceu com você naquela noite?"
"Tive uma reação de excesso que rompeu a superfície das coisas".
"E depois?"
"Caí".
"E onde você parou?"
"Em lugar nenhum. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada".

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A outra cena.... por Amos Oz

 
Muitas vezes os fatos ameaçam a verdade. Escrevi uma ocasião sobre o verdadeiro motivo da morte de minha avó: minha avó Shlomit chegou a Jerusalém diretamente de Vilna, num dia quente de verão do ano de 1933. Lançou um olhar atônito aos mercados suarentos, às barracas multicoloridas, às ruelas vilhando de gente, de gritos e vendedores, de zurrar de burros, de balidos de bodes, de cacarejar de galinhas amarradas pelos pés, de pescoços mudos e sangrentos de aves agonizantes, olhou para os ombros e braços dos homens orientais e para o escândalo das cores berrantes das frutas e verduras, olhou para as montanhas em volta e para as rochas solitárias nas encostas, e proferiu a sentença inapelável: "O Levante é cheio de micróbios".
(...) Como parte de sua inflexível guerra cotidiana contra os micróbios, vovó manteve, sem concessões, a rotina de ferver frutas e verduras. O pão era esfregado uma ou duas vezes com uma toalhinha umedecida em uma solução de desinfetante químico cor de rosa, chamado Káli. Depois de cada refeição, vovó não lavava os talheres, mas, como se se tratasse dos preparativos para o Pessach, submetia-os a prolongada fervura, e fazia o mesmo com ela própria: cozinhava-se três vezes ao dia. Fosse inverno ou verão, costumava tomar três banhos de imersão quase fervendo, como parte do seu combate diário aos micróbios. Ela foi muito longeva, os micróbios e os vírus a reconheciam de longe e se apressavam em mudar de calçada. Quando ela tinha mais de oitenta anos de idade, depois de dois ou três ataques cardíacos, o dr. Kumholtz a advertiu: Minha cara senhora, se não desistir desses banhos escaldantes, não me responsabilizo pelo que poderá, D´us não permita, lhe acontecer.
Mas vovó não podia abrir mão de seus banhos. O horror dos micróbios era soberano. Morreu no banho.
De fato, teve um infarto.
Mas a verdade é que minha avó morreu por excesso de limpeza, e não de um ataque cardíaco. Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos. A limpeza a matou. Talvez o lema de sua vida em Jerusalém, "O Levante é cheio de micróbios", aponte para uma verdade anterior, mais essencial que o demônio da limpeza, uma verdade sufocada e escondida dos olhares, pois, afinal, vovó Shlomit viera para Jerusalém do norte da Europa Oriental, lugar não menos hospitaleiro aos micróbios do que Jerusalém, sem falar de todos os outros tipos de agressores.
Eis aí, talvez, uma fresta por onde será possível dar uma espiada e reconstituir um pouco do efeito das visões do Oriente, suas cores e cheiros, sobre minha avó e talvez sobre os outros imigrantes refugiados, que também vieram de aldeias cinzento-outonais da Europa Oriental e ficaram tão apavorados com a transbordante sensualidade do Levante que decidiram se proteger de suas ameaças construindo um gueto para si próprios.
Ameaças? A verdade é que não era para se proteger das ameaças do Levante que minha avó mortificara e purificara o corpo em banhos escaldantes nas manhãs, tardes e noites de todos os dias de sua vida em Jerusalém, mas sim, ao contrário, pelo fascínio que seus encantos sensuais exerciam sobre ela, pela voluptuosidade de seu próprio corpo, pela atração poderosa dos mercados que transbordavam e fluíam e ondulavam impetuosos à sua volta, deixando-a quase sem respirar, com uma vertigem na boca do estômago e um incontrolável tremor nos joelhos pela abundância de verduras, frutas e queijos tentadores e pelos perfumes penetrantes, entorpecentes de todas essas comidas estrangeiras e estranhas que a excitavam (...). Quem sabe se o culto à limpeza de minha avó não passava de um traje de astronauta, hermético e esterilizado? Ou um anti-séptico cinto de castidade com que ela cingira voluntariamente a cintura para se resguardar das seduções, desde seu primeiro dia em Israel? E que trancara a sete chaves, jogando-as fora depois?
Por fim, sofreu um ataque cardíaco que a matou. Um ataque, de fato. Mas não foi o coração que a matou, e sim o excesso de limpeza. Ou antes, nem foi a limpeza, mas seus desejos ardentes e secretos a mataram. Ou melhor, nem foram os desejos, mas o pavor de vir a ser tentada pelos desejos. Ou - nem a limpeza, nem os desejos, nem o pavor dos desejos, mas a raiva inconfessa e permanente que tinha desse pavor, uma raiva sufocada, maligna, inesgotável, raiva de seu próprio corpo, raiva do seu desejo, e também outra raiva, ainda mais profunda, a raiva de fugir de seus próprios desejos, raiva opaca, venenosa, raiva da prisioneira e da carcereira, anos e anos de luto secreto pelo tempo vazio que passa e repassa sobre o corpo encolhido pela voracidade sufocada desse mesmo corpo. Foram esses os desejos, lavados ilhares de vezes e ensaboados até a náusea, e desinfetados, e fervidos, esse desejo do Levante, malcheiroso, suado, animalesco, delicioso até o desmaio, mas cheio de micróbios"
 
(De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 45-48).


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Nana faz Filosofia sem saber - diálogo de "Vivre sa vie" - Godard - 1962


- É engraçado. De repente não sei o que dizer; isso acontece muito comigo. Eu sei o que quero dizer. Eu reflito sobre o que quero dizer. Mas no momento de dizer, eu não consigo.
- Sim, claro. Você leu "Os três mosqueteiros?"
- Não. Eu vi o filme. Por quê?
- Porque nele, Porthos (...) o grande, o forte, um pouco besta, ele nunca pensou em sua vida, compreende? Então uma vez ele tem de impantar uma bomba numa adega, para explodí-la. Ele o faz. Ele coloca a bomba, acende-a, e sai correndo, naturalmente. Mas de golpe, ele começa a pensar. Ele pensa no que? Ele se pergunta como ele pode colocar um pé após o outro...você já deve ter pensado sobre isso também...E então ele pára de correr. Ele não pode mais, não pode avançar. Tudo explode, a adega cai sobre ele. Ele a segura em seus ombros, ele é forte. Mas depois de um dia, ou dois, ele cede, e morre. A primeira vez que pensa ele morre.
- Por quê me conta essa história?
- Sem razão, só por falar.
- E por quê a gente precisa sempre falar? Muitas vezes devíamos nos calar, viver em silêncio. Quanto mais fala-se, menos as palavras significam.
- Talvez, mas como se pode?
- Eu não sei.
- Eu acho que não podemos viver sem falar.
- Então é isso, eu gostaria de viver sem falar.
- Sim, isso seria bom, não? É como se não amássemos mais. Mas não é possível, nunca vai ser .
- Mas por quê? As palavras deviam exprimir exatamente o que queremos dizer. Elas nos traem?
- Mas nós as traímos também. Nós devíamos poder dizer o que queremos como já foi feito com a boa escrita. É mesmo extraordinário que um homem como Platão - a gente pode ainda compreender - a gente compreende. Ainda sim ele escreve em greg, há 2500 anos, Ninguém sabe realmente a lígnau daquela época, ao menos exatamente. Mas ainda sim passa alguma coisa, então nós devemos poder nos expressar. E nós precisamos.
- E por quê devemos nos exprimir? Para se compreender?
- Nós precisamos pensar, e para pensar, é preciso falar, Não há outro jeito de pensar. E para comunicar, deve-se falar; é a vida.
- Sim, mas ao mesmo tempo é muito difícil. Eu acho que a vida devia ser fácil. Você sabe, a história dos três mosqueteiros pode ser muito boa mas é terrível.
- Sim, mas é uma indicação. Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase...o preço...
- Então falar é mortal?
- Falar é quase uma ressureição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar. Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem até olharmos a vida com desapego.
- Mas não se pode viver a vida com...Eu não sei...
- com desapego...Sim, mas nós balanceamos, é por isso que devemos passar do silêncio às palavras. Nós balançamos entre os dois porque é o movimento da vida. Da vida cotidiana nós nos elevamos a uma vida que chamamos de superior ...é a vida do pensamento ...mas essa vida pressupõe a morte da vida cotidiana ... a vida demais elementar...
- Mas então pensar e falar se parecem?
- Eu acredito. Platão o disse; é uma ideia antiga. Nós não podemos distinguir do pensamento o que é o pensamento e as palavras que o exprimem. Analisando a consciência, você não consegue separar o momento de pensar das palavras.
- Falando, então, a gente arrisca mentir?
- Sim, porque as mentiras são também parteda nossa busca. Há pouca diferença entre erro e mentira. Não quero dizer as mentiras comuns como "prometo ir amanhã, mas não vou porque não queria". Entende, esses são truques. Mas uma mentira sutil é um pouco distante de um erro. A gente procura, e não consegue achar as palavras certas. É por isso que você não conseguia saber o que ía dizer. Você tinha medo de não achar a palavra certa. E eu acho que é isso.
- Sim, mas como ter certeza de ter encontrado a palavra certa?
- Deve-se trabalhar. É necessário um esforço. Deve-se falar de um modo que é certo, não machuque, diga o que há para ser dito, faça o que tem de fazer, sem machucar, nem ferir ...
- Sim, um deve tentar ser de boa fé . Uma vez alguém me disse "a verdade está em tudo, mesmo no erro".
- Isso é verdade.Isso não foi visto na França do século XVII. Eles achavam que podiam evitar o erro, e ainda mais que isso, que podia-se viver na verdade diretamente. Creio que não seja possível. Por isso há Kant, Hegel, a filosofia alemã: para nos conduzir à vida e nos fazer ver que devemos passar pelo erro para chegar na verdade.
- O que você pensa do amor?
- O corpo tinha de chegar nisto. Leibnitz introduziu o contingente. Verdades contigentes e verdades necessárias fazem a vida cotidiana. Aos poucos chegamos na filosofia alemã onde pensamos, na vida, com os erros da vida, com as servitudes da vida. E deve-se lidar com isso, é verdade,
- O amor não deveria ser a única verdade?
- Mas para isso, o amor deveria ser sempre verdadeiro. Você conhece alguém que sabe de cara quem ele ama? Não é verdade. quando você tem vinte anos não sabe o que ama. Você sabe migalhas, se agarra só a sua experiência. Você diz "eu amo isso", é sempre uma mistura. Mas para ser constituído inteiramente daquilo que se ama, é preciso a maturidade. Isso significa buscar. E é essa a verdade da vida. É por isso que o amor é uma solução, na condição que seja verdadeiro....   

Trailer do filme:









sexta-feira, 31 de julho de 2015

A vida bate - Ferreira Gullar

 Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
— a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida! 
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
(3/2/66)

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só garotos - Patti Smith

 
 
"Só garotos" é um livro em que Patti Smith conta do seu encontro com Robert Mapplethorpe, encontro que rendeu uma jornada para além das vivências sexuais, das infinitas possibilidades e finitas impossibilidades do amor.
Quando Patti e Robert se esbarraram eles eram apenas "garotos" e o germe que faria deles donos de um estilo único estava a espreita de florescer. Em comum havia a paixão pela pintura, poesia, música e tudo que dissesse respeito as agonias ínverbalizáveis do ser humano.
Eles compartilharam vivências peculiares e cuidaram um do outro. Mantiveram-se juntos mesmo quando a vida os lançou em caminhos diferentes. O que tiveram não  foi uma dita "parte importante" da vida de cada um...não, foi mais. Foi algo fermentador da maturação de cada um enquanto sujeito, foi o que os fortaleceu para se empossarem plenamente da existência. Não foi "parte da vida" pois foi a própria vida. Foi "para além" da vida. Foi o que deu a certeza para o que era uma suspeita de ambos: a arte como única saída viável para a sufocante absurdidade das conveniências mundanas.
Patti desde cedo não se rendeu. Ela foi a garotinha que não viu sentido em repetir as ladainhas que a sua mãe lhe impingia todas as noites antes de dormir; para ela rezar de acordo com sentenças ditadas era tão pecaminoso quanto crer em um Deus com o qual não pudesse ser sincera. Patti ousou criar seu próprio modo de conversar com Deus, e aí vemos o primeiro vestígio da artista.
Mais tarde, quando uma gravidez inesperada a assaltou, Patti não quis sequestrar a liberdade de um jovem parceiro em troca de reconhecimento social, tal como os "bons costumes" previam. Ela deu vida à filha e a deixou a salvo sem sacrificar a felicidade de outrem.
Patti seguiu adiante. Saiu de casa, morou na rua, roubou pincéis.
 Escapou de um curso universitário medíocre e usou, sem se permitir ser usada, de empregos que garantiam parcamente suas necessidades básicas enquanto ela corria atrás do que queria.
Robert também não se rendeu. Ele, que tinha do "bom e do melhor" (menos amor) com os pais, que lhe pagavam os estudos e esperam que ele se tornasse um profissional gráfico de sucesso, pai de família e dito cidadão respeitável, também saiu de casa. Passou fome, teve febre, e sobreviveu de migalhas até encontrar na fotografia o seu modo de estar dignamente no mundo.
No meio do caminho de Patti e Robert houve pedras, diversas pedras...daquelas grandes e brutas. Mas no meio do caminho de Patti e Robert houve Patti....e houve Robert, para lapidar uma vida possível.
"Só garotos" é a inesquecível narrativa de Patti sobre este caminho.
 
 
Trecho do livro:
 
"A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.
 
Querido Robert,
Sempre que estou na cama acordada me pergunto se você também está acordado na cama. Você está com alguma dor ou se sentindo sozinho? Você me tirou do período mais negro da minha juventude, dividindo comigo o mistério sagrado do que é ser artista. Aprendi a ver com você e nunca faço um verso ou desenho uma curva que não venha do conhecimento que consegui durante o nosso valioso tempo juntos. O seu trabalho, oriundo de uma fonte fluida, remonta à canção nua da sua juventude. E você fala em ficar de mãos dadas com Deus. Lembre-se, aconteça o que acontecer, você sempre esteve segurando essa mão, aperte-a com força Robert, não solte.
Na outra tarde, quando você dormiu no meu ombro, eu também cochilei. Mas antes pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você ainda é o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti".
 
*
 
(Só Garotos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 252).
 
 
 
 
 


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Amor, poesia, sabedoria - Edgar Morin

 
 
*
"Terminarei fornecendo à pesquisa sobre o amor a fórmula de Rimbaud, a da pesquisa de uma verdade que se situe, simultaneamente, numa alma e num corpo" .
*
"A autenticidade do amor não consiste apenas em projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim de nos deixar contaminar pela verdade do outro".
*
"A totalidade é a não-verdade" .
*
"Mas o amor é paradoxal como a vida e, por isso, há amores que duram, do mesmo modo que dura uma vida".
*
 
Ebook disponível no link:
 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Flores raras - filme (trecho)

"Elisabeth: - Eu não bebo porque as coisas vão mal. Eu quero beber a cada minuto de cada dia. As coisas indo mal são só desculpas para ficar bêbada.
Lota: - Mas por quê?
Elisabeth: - Porque quando eu não tenho o que quero eu me sinto sozinha e triste...e quando eu tenho o que quero tenho certeza que vou perder. E a espera é insuportável".

Trailer do filme:

Cena do filme:

Reportagem sobre o filme:

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"As coisas não existem..." - Hilda Hilst

"O que nós vemos das coisas são as coisas"
(Ferbnando Pessoa).

As coisas não existem.
O que existe é a idéia
melancólica e suave

que fazemos das coisas.

A mesa é feita de amor
e de submissão.
No entanto
Ninguém a vê
como eu a vejo.
Para os homens
é feita de madeira
e coberta de tinta.
Para mim também
mais a madeira
somente lhe protege o interior
e o interior é humano.

Os livros são criaturas
Cada página um ano de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecem inquietos
em resposta às suas inquietudes.

As coisas não existem
A idéia, sim.

A idéia é infinita
igual ao sonho das crianças.

(In. Baladas. São Paulo: Globo, 2003, p. 91-2).

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Terceira - Anna Akhmatova

"A mim, como a um rio,
A época severa desviou-me.
A mim substituíram-me a vida. Para outro curso,
Passou a fluir perto de outro,
E eu as minhas margens não conheço,
Oh, quantos espetáculos eu perdi,
E a cortina erguia-se sem mim
E sem mim caía. Quantos amigos
Meus nenhuma vez na vida encontrei,
E quantos contornos de cidades
Aos meus olhos poderiam fazer vir lágrimas,
Mas eu conheço uma única cidade no mundo
E às cegas encontrá-la-ia no sono.
E quantos versos não escrevi,
 E o seu coro secreto vagueia em meu redor,
E, talvez ainda em qualquer altura
Me estrangulem...
Por mim são conhecidos os princípios e os fins,
E a vida depois do fim, e algo
Que não vale a pena lembrar agora.
E uma mulher qualquer o meu
Lugar único ocupou,
Leva o meu nome legítimo,
Tendo-me deixado a alcunha, da qual,
Eu fiz, julgo, tudo o que foi possível.
Eu não me deito, ah, no meu túmulo.
*
Mas por vezes o travesso vento primaveril,
Ou a combinação das palavras num livro de acaso,
Ou o sorriso de alguém puxam-me de repente
Para a vida que não se realizou.
Nesse ano teria acontecido isso e aquilo,
Nessoutro - isto: viajar, ver, pensar
E lembrar, e em novo amor
Entrar, como num epselho, com a consciência obtusa
Da traição e com, ontem não a tinha,
Uma pequena ruga...
Mas se eu olhasse de algures
Para a minha vida de agora,
Teria finalmente conhecido a inveja...
*
(2/9/1945 - Leningrado)



(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.77).

Sobre os anos 10 - Anna Akhmatova

E nenhuma infância cor-de-rosa
Nem pequeninas sardas, nem ursinhos, nem anéis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras de rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio
Ou o reflexo em expelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raízes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
"Ela chegou, ela por si própria chegou!"
Mas eu olhava com espanto
E pensava: "Perderam o juízo!"
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicômio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu - mas continuava a tortura da felicidade!"
*
(4/7/1955 - Moscovo).
(In. Poemas. Rio de Janeiro: Relógio D´água, 2003, p.85).

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A carta de Joyce & a resposta de Nora


29 de agosto de 1904.
"Minha querida Nora Acabei de fazer a refeição da noite mas não tinha o menor apetite. Quando estava no meio descobri que comia com os dedos. Me senti mal ontem à noite. Estou muito angustiado. Perdoa esta pena horrível e este papel medonho.
Devo ter-lhe atormentado esta noite com o que disse mas certamente é bom que você conheça a minha opinião sobre a maioria das coisas. Minha consciência rejeita toda a ordem social atual e o cristianismo - lar, as virtudes reconhecidas, classes sociais e doutrinas religiosas. Como posso gostar da ideia de lar? Meu lar foi simplesmente um de classe média arruinado por hábitos pródigos os quais herdei. Minha mãe foi morta lentamente, penso, pelo péssimo tratamento do meu pai, por anos de dificuldades e pela cínica franqueza da minha conduta. Quando olhei para o seu rosto no caixão - um rosto cinza e consumido pelo câncer - percebi que olhava para o rosto de uma vítima e amaldiçoei o sistema que fizera dela uma vítima. Nós éramos uma família de dezessete. Meus irmãos e minhas irmãs não são nada para mim. Só um irmão é capaz de me entender.
Abandonei a igreja católica há seis anos, odiando-a profundamente. Descobri que me era impossível permanecer em seu seio devido aos impulsos da minha natureza. Quando era estudante travei uma guerra secreta contra ela e recusei aceitar as posições que me oferecia. Ao fazer isso eu me tornei um mendigo, mas mantive o meu orgulho. Agora travo uma guerra aberta contra ela por meio do que escrevo, digo e faço. Não posso fazer parte da ordem social senão como um vagabundo. Comecei a estudar medicina três vezes, direito uma vez. Há uma semana planejava ir embora como ator ambulante. Não consegui por nenhuma energia nesse projeto porque você não parava de me puxar pelo braço. As dificuldades atuais da minha vida são inacreditáveis mas eu as desprezo.
Assim que você se recolheu esta noite eu caminhei até a rua Grafton onde fiquei fumando por muito tempo, recostado a um poste. A rua estava cheia de animação na qual verti um jorro da minha juventude. Enquanto permanecia ali recordei certas frases que escrevi há alguns anos quando morava em Paris - essas frases são - "Passam em dois ou três em meio à animação do boulevard, caminhando como pessoas desocupadas num lugar iluminado para elas. Estão numa confeitaria, tagarelando, triturando os edificiozinhos de massa folhada ou sentadas silenciosamente às mesas perto da porta do café, ou descendo de carruagens com a viva agitação de trajes suaves como a voz do adúltero. Passam num ar perfumado. Sob os perfumes seus corpos têm um cheiro quente e úmido".
Enquanto repetia isso para mim mesmo me dei conta de que essa vida ainda me esperava caso eu decidisse entrar nela. Talvez ela não me embriagasse como fez um dia mas ainda estava lá e agora que sou mais sábio e mais disciplinado ela era segura. Não faria perguntas, não esperaria nada de mim exceto alguns momentos da minha vida, deixando o resto livre, e me prometeria em troca o prazer. Pensei nisso tudo e o rejeitei sem arrependimento. Era inútil para mim; não poderia dar-lhe o que eu queria.
Acho que você não entendeu bem algumas passagens de uma carta que te escrevi e notei certa reserva no teu comportamento como se a lembrança daquela noite te perturbasse. No entanto, eu a considero um tipo de sacramento e sua lembrança me enche de assombrosa alegria. Você talvez não compreenda imediatamente por que é que eu te venero tanto por isso, pois não conhece bem as minhas opiniões. Mas ao mesmo tempo foi um sacramento que me deixou uma sensação final de tristeza porque vi em você uma extraordinária ternura melancólica que havia escolhido esse sacramento como um compromisso, e aviltamento porque compreendi que a seus olhos eu era inferior a uma convenção da nossa sociedade atual.
Falei sarcasticamente esta noite mas falava do mundo e não de você. Sou inimigo da baixeza e da escravização de pessoas mas não de você. Você não consegue ver a simplicidade que está por trás de todos os meus disfarces? Todos nós usamos máscaras. Certas pessoas que sabem que estamos unidos frequentemente me insultam falando de você. Eu os escuto calmamente, desdenhando lhes responder mas a menor palavra deles faz meu coração soçobrar como um pássaro na tempestade.
Não me é agradável ter que ir agora para a cama com a lembrança da última expressão do teu olhar - um olhar de indiferença cansada - a lembrança da tortura na sua voz na outra noite. Penso que nunca um ser humano esteve tão próximo da minha alma como você, e contudo você pode tratar minhas palavras com uma rudeza penosa ("Agora sei o que é falação", você diz). Quando eu era mais novo tive um amigo com quem ficava à vontade - às vezes mais, às vezes menos do que fico com você. Ele era irlandês, quer dizer, ele me traiu.
Não disse nem a metade do que queria dizer mas é muito trabalhoso escrever com esta maldita pena. Não sei o que você vai achar desta carta. Por favor me escreva, está bem? Minha querida Nora, eu te respeito muito, creia-me, mas quero mais do que as tuas carícias. Você me deixou com uma dúvida angustiante".
JAJ - (p. 37-9).


12 de setembro de 1904
"Espero que não tenha ficado molhado se você estava hoje na cidade ficarei aguardando para te ver às 8:15 a manhã à noite esperando que vá ser ótimo eu me sinto muito melhor desde a noite passada mas sente (sic) um pouco solitária hoje à noite pois está tão úmido eu fiquei lendo as tuas cartas o dia inteiro pois não tinha mais o que fazer eu li aquela carta longa várias vezes mas não pude entender vou te levar amnhã à noite - e talvez você poderia me fazer entender
nada mais no momento da tua garota carinhosa
Nora
desculpe escrever com pressa
Suponho que soltará fogos quando receber isso" -  (p. 137).
(*os erros de grafia foram preservados tais como nas cartas)
(In. Cartas a Nora. James Joyce. São Paulo: Iluminuras, 2013).

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Masculin, Feminin - Jean-Luc Godard (trechos)



" - Por que você quer sair comigo esta noite?
- Porque você é linda, e todos precisamos de ternura.
- Não há mais nada em mim que o atraia?
- Sim. Tudo".
*
Não se pode viver sem ternura. Seria mortal".
*
"É difícil dizer o que se quer se não se está acostumado".
*
"Se matar um homem, você é um assassino.
Se matar milhões, é um conquistador.
Se matar todos os homens, é Deus".

 


Link do youtube com o filme legendado: