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quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sim, eu a amava - Samuel Beckett

 


"Sim, eu a amava, é o nome que eu dava, que ainda dou, ai de mim, ao que eu fazia, naquela época. Eu não tinha dados sobre isso, nunca tendo amado antes, mas tinha ouvido falar da coisa, naturalmente, em casa, na escola, no bordel, na igreja, e tinha lido romances, em prosa e em verso, sob a direção do meu tutor, em inglês, francês, italiano, alemão, nos quais ele era tratado em detalhes. Portanto eu era capaz, apesar de tudo, de dar um nome ao que eu fazia, quando me via de repente escrevendo a palavra Lulu (...). Eu pensava em Lulu e, se isso não é tudo, já é o suficiente, na minha opinião. Aliás, já estou farto desse nome, Lulu, e vou lhe dar outro, de uma sílaba dessa vez, Anne por exemplo, não é uma sílaba mas não importa. Então eu pensava em Anne, eu que tinha aprendido a não pensar em nada, a não ser nas minhas dores, muito rapidamente, depois nas medidas para não morrer de fome, ou de frio, ou de vergonha, mas jamais, sob nenhum pretexto, nos seres vivos enquanto tais (eu me pergunto o que isso quer dizer), não importando o que eu possa ter dito ou possa me acontecer dizer a esse respeito. Pois eu sempre falei, sempre falarei de coisas que nunca existiram, ou que existiram, se quiserem, e que provavelmente sempre existirão, mas não com a existência que atribuo a elas (...). Eu a admirava, apesar da escuridão, apesar do meu incômodo, o modo como a água parada, ou que corre lentamente, se ergue, como que sedenta, em direção à que cai (...). É preciso considerar que eu estava fora de mim naquela época. Eu não me sentia bem ao lado dela, mas pelo menos me sentia livre para pensar em outra coisa que não ela, e isso já era enorme, nas velhas coisas experimentadas, uma depois da outra, e assim pouco a pouco em nada, como que descendo gradualmente em águas profundas. E eu sabia que, abandonando-a, perderia essa liberdade (...).Teriam sido necessários outros amores, talvez. Mas o amor não se encomenda".

(In. Primeiro amor. Samuel Beckett. São Paulo: Cosacnaify, 2004).

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