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sexta-feira, 16 de julho de 2021

O amigo - Sigrid Nunez

 


"Durante a década de 1980, na Califórnia, um grande número de mulheres cambojanas foi ao médico com a mesma queixa: elas não podiam enxergar. Eram todas refugiadas de guerra. Antes de fugirem de sua terra natal, elas testemunharam as atrocidades pelas quais o Khmer Vermelho, que estivera no poder de 1975 a 1979, era bem conhecido.  Muitas delas haviam sido estupradas, torturadas ou, sob outros aspectos, brutalizadas. A maioria testemunhara membros da família serem assassinados. Uma mulher, que nunca mais viu o marido e os três filhos depois que os soldados vieram e os levaram, disse que havia perdido a visão após ter chorado todos os dias durante quatro anos. Ela não era a única que parecia ter chorado até ficar cega. Outras sofriam de visão turva ou parcial, os olhos perturbados por sombras e dores. 
Os médicos que examinaram as mulheres - cerca de cento e cinquenta ao todo - descobriram que os olhos delas eram todos normais. Outros testes mostraram que o cérebro delas também era normal. Se as mulheres estivessem dizendo a verdade - e havia quem duvidasse disso, quem achasse que fingiam porque queriam atenção ou esperavam receber algum benefício graças à deficiência -, a única explicação seria cegueira psicossomática.
Em outras palavras, a mente das mulheres, forçada a absorver tanto horror e incapaz de assimilar mais, conseguiu apagar as luzes" - (pp.7-8).
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"Eu mesmo estou inclinado a concordar com pessoas como Doris Lessing, que achava que a imaginação faz o melhor trabalho em conseguir a verdade. E não engoli essa ideia de que a ficção não é mais uma questão de retratar a realidade. Eu diria que o problema está em outro lugar. E eis outra coisa que notei os alunos: como eles se tornaram hipócritas, como são intolerantes a qualquer fraqueza ou falha no personagem criado por um escritor. E não estou falando sobre racismo e misoginia flagrantes, por exemplo. Estou falando de qualquer pequeno sinal de insensibilidade ou preconceito, qualquer prova de problema psicológico, neurose, narcisismo, obsessividade, maus hábitos.... qualquer excentricidade. Se o escritor não se encaixar no tipo de pessoa que os alunos gostariam de ter como amigo, o que invariavelmente significa alguém progressista e com um estilo de vida saudável, foda-se ele. Uma vez tive uma turma inteira concordando que não importava quão grande fosse o escritor Nabokov, um homem assim - esnobe e pervertido, conforme o viam - não deveria constar da bibliografia obrigatória de ninguém. Um romancista, como qualquer bom cidadão, tem que se sujeitar às regras, e a ideia de que uma pessoa poderia escrever exatamente o que quisesse, independentemente da opinião dos outros, era impensável para eles. É claro que a literatura não pode cumprir seu papel em uma cultura como essa. O fato de a escrita ter se tornado tão politizada me perturba, mas meus alunos estão mais do que bem com isso. Na realidade, alguns deles querem ser escritores precisamente por causa disso. E, se você se opuser a qualquer coisa, se tentar falar com eles sobre, digamos, arte pela arte, eles tapam os ouvidos, eles o acusam de "profexplicar". É por isso que decidi não voltar a lecionar. Sem querer ser auto compassivo demais, mas, quando alguém está tão em desacordo com a cultura e seus temas do momento, de que adianta?" - (pp.190-191).

(In. O amigo. Sigrid Nunez. São Paulo: Editora Instante, 2019).


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