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terça-feira, 22 de agosto de 2023

Não é um rio - Selva Almada (trecho)

 


"Justo nessa hora um vento se mete pelas árvores, e tudo está tão calado, por conta da hora, que o rumor das folhas cresce como a respiração de um animal enorme. Escute só como respira. Um bufar. Os galhos se mexem como costelas, inflando-se como o ar que se mete pelas entranhas.

Não são apenas árvores. Nem arbustos.

Não são apenas pássaros. Nem insetos.

O jacurutu não é um gato-do-mato, se bem que às vezes, pareça.

Não são uns preás. É este preá.

Esta urutu.

Este caraguatá, único, com seu centro vermelho como o sangue de uma mulher.

Se espicha a vista, descendo a rua, chega a ver o rio. Um brilho que umedece os olhos. E de novo: não é um rio, é este rio. Aguirre passou mais tempo com ele que com qualquer pessoa.

Pois bem.

Quem lhes deu permissão?

Não era uma arraia. Era aquela arraia. Um bicho lindo, toda aberta no barro do fundo, devia estar brilhando branca feito uma noiva na profundidade sem luz. Rente ao limo ou planando com seus tules, magnólia das águas, procurando comida, perseguindo a transparência das lavas, as raízes esqueléticas. Os anzóis enganchados nas asas, os puxões ao longo da tarde inteira, até que se desse por vencida. Os tiros. Arrancada do rio só para ser devolvida depois.

Morta".



(Não é um rio. São Paulo: Todavia, 2021, p. 51-52).


Com Selva Almada, em SP - Agosto/2023.