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domingo, 22 de janeiro de 2017

Bauman por Bauman

 
"Em nenhuma época esteve tão presente a máxima de John Donne ("Nenhum homem é uma ilha...Cada homem é parte do continente". "A morte de qualquer homem me diminui porque sou parte da humanidade. Por isso nunca procures saber por quem os sins dobram, eles dobram por ti."). Não se trata mais da evocação puramente  poética de uma compaixão nobre, porém idealista. É agora um relato factual de vínculos genuínos, tangíveis, que conectam a difícil condição de todos nós. Somos todos responsáveis por qualquer coisa que aconteça a qualquer um de nós, e o postulado de assumir responsabilidade por nossa responsabilidade envolve agora a necessidade de aliviar sofrimentos em qualquer canto do planta em que eles possam ocorrer, incluindo os sofrimentos mais distantes.
Esse novo desafio amplia até o limite (ou talvez mesmo além dele) a durabilidade do "impulso moral", considerando-se que por muitos séculos esse impulso costumava operar (e assim aprendeu a se sentir realmente em casa) apenas na proximidade do outro. Agora ele precisa abarcar um outro distante, na verdade "abstrato", um "outro" que é improvável conhecer, e que dificilmente será algum dia confrontado cara a cara.
Intrépidas e infatigáveis equipes de TV trazem para os nossos lares, de tempos em tempos, as imagens dessa miséria distante. Isso tem um efeito instantâneo, como acontece com toda proximidade do sofrimento humano. Ajusta a enormidade das novas responsabilidades à capacidade de nossa sensibilidade moral. Seria isso, contudo, suficiente para avaliar a magnitude dos desafios? O resultado comum das campanhas promovidas pela mídia é (...) uma sucessão de "farras piedosas" e períodos de "fadiga da caridade". De tempos em tempos ocorrem surtos de compaixão, mas é só isso, e não mais do que nossos sentimentos morais podem suportar por si mesmos. Logo aplacados, eles tiram uma soneca até o próximo "evento" em que serão uma vez mais brutalmente acordados para o fato de que nada pode ser alterado no que se refere ao volume e à profundidade da miséria humana, a despeito dessas breves explosões de piedade.
Por sua natureza, as "farras piedosas" conduzidas pela mídia são mal-equipadas para sedimentar um vínculo institucionalizado sólido, permanente e efetivo, para além dos surtos temporários de sentimentos do tipo "somos todos parte do mesmo continente". Comprovam a horrorosa semelhança do sofrimento humano, mas ficam muito longe de expor suas causas, como os meios de subsistência destruídos pelo livre comércio, os solos devastados pela monocultura imposta pelo mercado ou as inimizades tribais apoiadas e instigadas pela indústria e pelo tráfico de armamentos que enchem os cofres de nossos tesouro e aumentam o PIB doméstico.
Não admira que as raízes da miséria permaneçam intactas, independentemente do êxito que possam ter tido as sucessivas campanhas de "ajuda humanitária". Além disso, nossa própria responsabilidade direta ou indireta pela miséria que lamentamos com tanta sinceridade permanece encoberta. É como se não devêssemos coisa alguma a essas pessoas miseráveis. O que fazemos por elas não deveria ser visto como uma tentativa de quitar nossas dívidas e nos arrepender de nossos pecados, mas louvado como expressão de nossos nobres sentimentos, aumentando assim nossa glória moral".
 
(Bauman por Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, pp. 137-138).
 
 


domingo, 15 de janeiro de 2017

A filha perdida - Elena Ferrante

 
" Eu observava minhas filhas quando elas estavam distraídas e sentia por elas uma complicada alternância entre simpatia e antipatia. Bianca é antipática, eu pensava às vezes, e sofria por isso. Depois eu descobria que ela era muito querida, tinha amigas e amigos,  sentia que só quem a achava antipática era eu, a mãe dela, e aquilo me dava remorso. Eu não gostava de sua risadinha de escárnio. Não gostava de sua ânsia de querer sempre mais do que os outros: à mesa, por exemplo, ela pegava mais comida do que todos, não para comer, mas para ter certeza de que não perderia nada, deque não seria negligenciada ou passada para trás. Eu não gostava da sua mudez teimosa quando ela percebia que havia errado, mas não conseguia admitir o erro.
Você também é assim, dizia meu marido. Talvez fosse verdade, e o que me parecia antipático em Bianca se tratasse somente do reflexo da antipatia que eu sentia por mim mesma. Ou não, não era tão simples, tudo era mais intrincado. Mesmo quando reconhecia nas duas garotas aquilo que eu considerava minhas qualidades, sentia que algo não funcionava. Tinha a impressão de que elas não sabiam usá-las bem, de que a melhor parte de mim mesma, no corpo delas, resultava em um enxerto equivocado, uma paródia, e ficava com raiva, sentia vergonha.
Na verdade, pensando bem, o que eu mais amava nas minhas filhas era o que me parecia estranho. Delas - eu sentia - agradavam-me mais os traços que haviam puxado ao pai, mesmo após o fim tempestuoso do casamento. Ou os traços que tinham vindo de seus antepassados, dos quais eu nada sabia. Ou os traços que pareciam, na combinação dos organismos, uma invenção caprichosa do acaso. Em outras palavras, quanto mais eu me sentia próxima delas, mais parecia não carregar a responsabilidade por seus corpos.
Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sofrimentos delas. Acusavam-me em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos, justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte. Tons de voz quase imperceptíveis. Um gesto pequeno, um modo de bater as pálpebras, um sorriso-careta. O passo, o ombro que pende um pouquinho à esquerda, um balançar gracioso dos braços. A impalpável mistura de movimentos mínimos que, combinados de um certo modo, tornam Bianca sedutora e Marta, não, ou vice-versa, e então causam soberba, dor. Ou ódio, porque a potência da mãe parece sempre se dar de maneira injusta, desde o nicho vivo do ventre".
 
(In. A filha perdida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 59-60).


quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Os garotos da minha vida - Beverly Donofrio (trecho)



"Então, um dia, Olivia, a única italiana do prédio, habitado quase que só por porto-riquenhos, decidiu que seria minha amiga e começou a contar a história da sua vida em capítulos. Olivia era uma autêntica solteirona. Tinha uns sessenta anos, era baixa e gorda, dando a ideia de um tijolo. Seu cabelo era pintado de preto-azulado, e na rua ela usava uma capa preta horrível batendo nos tornozelos e uma boina escocesa vermelha (...). Toda vez que eu subia as escadas o apartamento de Olivia estava aberto, e ela me convidava para bater papo, o que significava que me contaria mais uma parte da história da sua vida.
(...) Na última vez em que fui lá, Olivia nem me ofereceu café solúvel antes de começar a falar, numa voz entrecortada, como se o ar estivesse preso no peito. Percebi que naquele dia chegaríamos ao ponto importante da sua história.
- Minha vida foi arruinada. Está vendo esses sapatos pretos horríveis? São sapatos ortopédicos. Você nunca notou como eu ando? Devagar, como o tique-taque do relógio. As crianças caçoavam de mim quando a gente ia para a escola. Eu nunca podia manter o mesmo paço que elas. Nunca me casei por causa dos meus pés. Falo três línguas mas nunca viajei. Desisti de ser religiosa porque sou muito amarga. 
Naquela noite, fui acordada com um bater de asas histérico. Um pardal estava voando dentro da minha sala, batendo nas paredes, esbarrando a cabeça no teto. Como eu não conseguia ver o passarinho, muito menos pegá-lo, chamei Jason.
Ele encurralou o pardal na prateleira de baixo da estante de livros e pegou-o com as mãos em concha. Olhou para o bichinho um instante, fez um carinho na sua cabeça com o dedo, esticou a mão na janela e o passarinho saiu voando.
Quando voltei para a cama não consegui mais dormir. Fiquei pensando nos passarinhos que saíam dos ninhos voando e ficavam presos em algum lugar. Depois me lembrei dos pés de Olivia, que lhe haviam atrapalhado a vida. Na verdade, ela é que tinha atrapalhado sua vida pensando nos pés.
Durante metade da minha vida, desde que fiquei grávida, sempre pensei que Jason tinha atrapalhado a minha vida. Mas essa era uma forma de ver as coisas. Outra forma era achar que Jason havia enriquecido a minha vida, e talvez evitado que eu entrasse em mais encrenca. Com um filho para cuidar, por pior que eu agisse, tinha que manter pelo menos um pé no chão, sempre. Talvez eu tenha tido vantagem com isso. Talvez nunca tivesse oportunidade de ir para a faculdade se não fosse uma mãe vivendo à custa do seguro social. Talvez não me sentisse tão mais velha agora se não tivesse tido um filho; ao ser forçada a crescer depressa, me rebelei e me mantive criança muito mais tempo, o que contribuiu para minha vida boêmia (que começava a ficar fora de moda na metade da década de oitenta) e minha falta de dinheiro (idem), mas também manteve minhas perspectivas frescas, com amigas que queriam comprar Harley-Davidsons aos 45 anos de idade, e uma porção de interesses focalizados na alegria.
Jason tinha arruinado ou enriquecido a minha vida. A escolha era minha. A gente passa por umas coisas na vida que não pode controlar, portanto é melhor aprender com elas do que se deixar vencer por elas. Como Olivia, cheia de fel e amargura num apartamento branco brilhante, sozinha com passarinhos presos na janela".
(In. Os garotos da minha vida. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 193-195).
 
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Site oficial de Beverly Donofrio:
 
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Trailer do filme baseado em Riding in cars with boys:
 
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