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terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A gorda - Isabela Figueiredo

"Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia: era um segundo corpo que transportava comigo. Ou seja, que arrastava. Foi como se os médios me tivessem separado de um gêmeo siamês que se suicidara de desgosto e me dissessem, no final, "fiemos o osso trabalho, faça agora o seu e aguente-se". Aprenda a viver sozinha".
 Com a gastrectomia deixei de conseguir comer. Bebia caldos, leite e sumos. Sentia doer o corpo e a mente. Sentia fome profunda, mas tinham-me cortado metade do estômago e o que me restava era uma ferida. Nos primeiros meses perdi força e cabelo, e caminhava lentamente, adaptando-me. O meu corpo diminuía à razão de duzentos e cinquenta gramas por dia, e comecei a ficar leve, quase a levantar voo, como não me sentia desde a infância. Subia oito andares sem ficar a arfar e podia continuar mais oito, os que fossem necessários, porque nada me detinha. Testava-me através de diversos esforços. "Vamos lá ver se consigo caminhar vinte quilômetros", e conseguia. Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida" - (p. 17-18).
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"Sabia viver sem os que amava, mas sem escrita a vida não tinha por onde continuar. A estrada acabava. O ruído colossal das marés de setembro, nas praias de Comporta, esvaziava-se. Sem escrita não havia uma casa onde chegar, tirar o casaco, pendurá-lo, acarinhar a cadela, leva-la à rua, regressar, alimentá-la, sentar-me no sofá e apreciar o gesto. Podia viver sem tomar banho, sem beijos, mas sem escrita não. Ninguém entendia isso, e viraram-me as costas como se referisse uma mania, um vício de gente bastada que se pode dar a luxos. "Estás maluca". Houve uma altura, quando a prisão que a minha vida constituía se tornou demasiado clara e crua, em que comecei a ver cada vez pior. à medida que aumentava a minha visão interior do mundo, piorava a exterior. A oftalmologista teve de me aumentar as diotropias afirmando ser coisa incompreensível, porque a miopia tinha tendência a estabilizar na adultícia, não existindo outras doenças, mas em mim cavalgava sem razão. Acordava com dificuldade e escrevia para me aguentar, dia após dia, mesmo que nada tivesse a dizer. Escrevia, estou só aqui à espera". A compreensão é um castigo. Nunca mais se consegue ignorar a jaula nem o julgo" - (p. 45).
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"A história não se compadece com emoções privadas e é sua frieza implacável que concede à pequena resistência uma dimensão épica. Tudo se atravessa como se não estivéssemos sempre mortos e vivos, no mesmo instante, lutando por adiar a transição" - (p. 76).
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"Ninguém merece estar vivo e impedido de viver" - (p. 93).
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"Dir-me-ão que foi uma pena desperdiçar a minha vida esperando por um homem que passou ausente por toda a minha juventude. As pessoas têm sempre resposta fácil, mas eu não podia saber que não viria a existir outro homem para mim. Era este ou nada.
Imagino-nos abraçados de novo, quando ele regressar. As minhas fantasias de sempre. Dirão, "ah, que parvoíce de adolescente". Talvez, mas não podem imaginar como esta carta e este sonho me alentam, me dão um sentido, me tornam aquilo naquilo que vim cá ser.
Respondo imediatamente. Escrevo que aguardo a sua volta com ansiedade. Que imagino que não possa ser amanhã, mas que venha quando puder. Que o espero. Que tenho a chave debaixo do tapete. Que se eu não estiver, entre e se sente na sala à minha espera (...). Escrevo sim, vem, volta, vem, regressa (...). Nada no mundo é capaz de conter o amor incompleto, decepado por uma porta que a vida nos fechou n cara, sem contemplações" - (p. 201). 
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(In. A gorda. São Paulo: Todavia: 2018).

Sobre o livro:
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domingo, 13 de janeiro de 2019

O amor - por Valter Hugo Mãe

"Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, de empenho. Precisa de respeito. Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido" - (p. 26).
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"O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa de ser uma solução" (p.45).
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(In. O paraíso são os outros. São Paulo: Biblioteca azul: 2018). 


salazar em minúscula - Valter Hugo Mãe

"Éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os melhores pais de família. um homem havia de ser medido pelos seus actos, pouco importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte adentro. essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse" - (p. 131).
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"que melhor discurso pode haver para os padres do que a promoção da beleza de ser pobrezinho. a promoção da beleza de ser pobrezinho. é um casamento perfeito. o político que gosta dos pobrezinhos e os mantém pobrezinhos. mas, quer o político, quer a igreja, dominam ou podem dominar o fausto. não é brilhante. isto inventado seria mentira. ninguém teria cabeça para inventar tal porcaria, só sendo verdade mesmo" - (p.150).
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"sabe o que é que afinal foi mesmo uma máquina para roubar a metafísica aos homens. perguntou aquilo e suspendeu-se no nosso ar, expectante, à espera de esclarecimento. a ditadura é que nos quis pôr a todos rasos como as tábuas, sem nada lá dentro, apenas o andamento quase mecânico de cumprir uma função e bico calado. a ditadura, colega silva, a ditadura é que foi uma terrível máquina de roubar a metafísica aos homens" - (p.161).
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"hoje é possível reviver o fascismo, quer saber. é possível na perfeição. basta ser-se trabalhador dependente. é o suficiente para perceber o que é comer e calar, e por vezes nem comer, só calar" - (p.167).
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"O salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que os tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. a maioria silenciosa terá de emergir um dia, dissera-me por outras palavras o estudante comunista. tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma e nos portássemos apenas como engrenagem de uma máquina a passar por cima de nossos ombros, complexa e grande de mais para lhe percebermos o início, o fim e o fito de cultivar a soberba de um só homem. tudo contribuía para que essa cidadania de abstenção, para que apenas a recebêssemos por título honorífico enquanto prosseguíssemos sem manifestação. como se humilham as mulheres enquanto homens honorários, nós éramos gente exclusivamente por generosidade do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como tantos, um porco" - (p.188). 
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(In. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016).